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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2019; 21(1):99-109



Relato de Caso

Atitudes Transferenciais na Psicoterapia Centrada na Pessoa: um estudo de caso

Transferential Attitudes in Person Centered Psychotherapy: a case study

Atitudes Transferenciais na Psicoterapia Centrada na Pessoa: um estudo de caso

José Alves de Souza-Filhoa; Vilma Maria Barreto Paivab

Resumo

Relataremos nossa experiência clínica sobre a compreensão das atitudes transferenciais a partir de um estudo de caso. Trata-se de uma discussão advinda do trabalho conjunto entre estagiário e supervisora na formação de psicologia da Universidade Federal do Ceará, nos períodos de 2014.2 e 2015.1. Partimos do referencial teórico da psicoterapia centrada na pessoa, de Carl Rogers. Esta discussão se faz relevante por partilhar os conhecimentos teórico-práticos construídos a partir de nossa experiência na atuação clínica. Inicialmente, situaremos alguns aspectos da vida da cliente, bem como apresentaremos narrativas do episódio de atitudes transferenciais no processo psicoterapêutico. Posteriormente, com base no nosso testemunho clínico a partir da escuta para com a cliente, compreenderemos as intrínsecas relações entre os mecanismos projetivos transferenciais e a emergência de novos sentidos e sentimentos configuradores de uma nova noção de si. Por fim, apresentaremos as possíveis relações entre atitudes transferenciais e tendência de atualização do eu como uma nova via de compreensão de condução de casos clínicos dentro da psicoterapia centrada na pessoa.

Descritores: Atitudes transferenciais; psicoterapia centrada na Pessoa; atualização; estudo de caso.

Abstract

We will report a case study of our clinical experience on an understanding of transference attitudes. It is a discussion about the joint work between trainee and supervisor in the psychological formation of the Federal University of Ceará, in the periods 2014.2 and 2015.1. We start from the theoretical reference of psychotherapy centered on the person of Carl Rogers. It is a relevant discussion which share the theoretical-practical knowledge built from our experience in clinical practice. Initially, we will look at some aspects of the client life as well as the current narratives of the episodes of transferential attitudes in the psychotherapeutic process. Subsequently, based on our clinical testimony from listening to the client, we will understand the intrinsic relationships between transference project mechanisms and the emergence of new senses and feelings that shape a new notion of self. Finally, we will present the possible relationships between transference attitudes and the tendency to update the self as a new way of understanding clinical case management within person centered psychotherapy.

Keywords: Transferential attitudes; Person Centered Psychotherapy; Update; Case Study

Resumen

Divulgamos nuestra experiencia clínica acerca de la comprensión de las actitudes de la transferencia de un estudio de caso. Esta es una discusión en el trabajo conjunto entre aprendiz y supervisor en la formación de la psicología, Universidad Federal de Ceará, en los períodos de 2014.2 y 2015.1. Partimos del marco teórico de la psicoterapia centrada en la persona de Carl Rogers. Esta discusión es relevante compartir conocimiento hace teórico-práctico construido a partir de nuestra experiencia en el desempeño clínico. Situaremos al principio, algunos aspectos de la vida del cliente, así como narraciones presentes del episodio de transferencia en las actitudes del proceso psicoterapéutico. Más tarde, basado en nuestro testimonio clínico de escuchar al cliente, comprender la relación intrínseca entre los mecanismos de transferencia proyectiva y la aparición de nuevos sentidos y sentimientos un nuevo concepto de setters ellos mismos. Finalmente, presentaremos la posible relación entre las actitudes de la transferencia y actualizar tendencia como una nueva forma de comprensión de la conducción de casos clínicos dentro de la psicoterapia centrada en la persona.

Descriptores: Actitudes de transferencia. Psicoterapia centrada en la persona. actualización. estudio de caso.

 

 

INTRODUÇÃO

Segundo a obra Gobbi, Missel, Justo & Holanda1, Carl Rogers não elaborou em sua teoria clínica uma discussão profunda sobre o fenômeno da transferência. Segundo Rogers2 sua proposta de psicoterapia não teria o mesmo interesse clínico pela transferência como a Psicanálise possui. Na sua abordagem não-diretiva e acolhedora, a transferência seria tomada como uma atitude do cliente tão importante como outras que o mesmo venha a desenvolver pelo terapeuta, diferente da Psicanálise que a elege com via estruturante do processo terapêutico. Dessa forma, tal fenômeno clínico passa a ser discutido sobre a conceituação de atitudes transferenciais.

Para melhor esclarecer a visão rogeriana, Albertoni3 esclarece as dimensões conceituais das atitudes transferenciais na psicoterapia da Abordagem Centrada na Pessoa. Sua discussão, que inicialmente situa as leituras de Rogers sobre Freud, esclarece que as atitudes transferenciais constituem um conjunto de vivências e afetos, que, atuando sobre o funcionamento da projeção, estruturam um esquema defensivo frente à emergência de sentimentos de ameaça que venham a surgir na relação terapêutica. Em busca da autopreservação do organismo, o cliente, deparando-se com as ameaças de julgamento, busca, na figura do terapeuta, uma tutela para lidar com seu funcionamento incongruente e adoecido. "Na relação terapêutica, o terapeuta se torna o bode expiatório da distorção que a pessoa cria para proteger-se do conteúdo que a ameaça e ele (terapeuta) acaba por receber todas as projeções desses conteúdos" (3:79)3.

Tal situação descrita acima teoricamente, tem testemunho pelas narrativas de um caso clínico conduzido por nós, na época em condição de psicoterapeuta e supervisora, nos anos iniciais de atuação clínica do primeiro, sobre as orientações da experiência da segunda. Discutir as atitudes transferenciais no processo de mudança de personalidade, a partir da psicoterapia de Carl Rogers, é o que pretende a presente produção. Proposta que acredita na relevância de partilhar com a academia a experiência clínica de um neo-psicoterapeuta, junto com a atenção de sua supervisora, sobre os subsídios teórico-clínicos para a compreensão do caso. Cremos que o trabalho formativo, pela parceria de ambos, garante a construção da consciência clínica do psicólogo e psicoterapeuta em formação, através do estudo conjunto, discussão clínica e apoio na formação pessoal4.

Inicialmente, situamos de modo breve, uma história de vida de um caso clínico. Em seguida, narramos um episódio do processo terapêutico, onde a cliente apresenta atitudes transferenciais para seu terapeuta. A escolha dessa cena deve-se pela sua sintonia com as demandas advindas dos conflitos com as figuras masculinas de sua vida. Por fim, apresentaremos uma breve explanação sobre as atitudes transferenciais. Pretendemos discutir como essa experiência de transferência se situa dentro do quadro de mudança de personalidade, especialmente direcionado para atualização do eu. Importante salientar que adotamos pseudônimos, selecionamos e adequamos informações para que não comprometesse a identidade das pessoas envolvidas.

As obras da proposta clínica da Abordagem Centrada na Pessoa baseiam nossas discussões, as quais serão referenciadas ao longo do estudo. Privilegiamos o pensamento rogeriano por reconhecer nele os subsídios teóricos necessários para a construção de uma discussão congruente com o presente estudo de caso. Auxiliam essas reflexões os registros clínicos das sessões e das supervisões, as versões de sentido e experiências que foram registradas a cada encontro5,6. Tal recurso metodológico situa nossa experiência particular com o pensamento rogeriano à medida que aprendemos com ele as singularidades de nossas vivências, sentimento e discussões. De ante mão, usamos de pseudônimos e realizamos as adequação da narrativas para que a identidades dos envolvido seja preservada. Para o início do processo terapêutico, na instituição onde ocorreu o caso, o usuário tem conhecimento, por meio da assinatura de um Termo de Ciência, que informações referentes a seu caso clínico está passível de estudos e pesquisas por parte dos acadêmicos envolvidos, bem como que, se ocorrer publicação, sua identidade e informações pertinentes serão protegidas e resguardadas.

O Caso Vânia

Vânia, 40 anos, casada, mãe de três filhos, procurou o serviço de psicologia devido grande angústia e ansiedade que atrapalhavam sua vida. Relatou que piora quando trabalha no comércio com marido. Tal ambiente ansiogênico provocaria falta de memória. Por indicação de uma vizinha, Vânia fez sua inscrição para ser atendida na clínica-escola.

Em sua vida, sentimentos e sensações de ameaça e medo foram muito presentes. Quando criança, fora molestada pelo pai por toques de masturbação: "Meu pai não me tinha como filha, me tinha como mulher!".

Esses abusos se prolongaram por sua infância e adolescência, com o conhecimento da mãe, que tinha pavor da personalidade grosseira do patriarca. No lar, o constante clima de tensão e ameaça sobre as mulheres impediam reação contrária a ele. Declara ter gratidão pelo pai, pois, "foi ele que me colocou no mundo", mas o considera ignorante e abusado. Sobre sua mãe, que é "santa, maravilhosa, o meu porto seguro", culpa-a "de eu ser do jeito que sou", pois "não me deixou viver e ser uma Vânia forte e batalhadora".

Aos vinte anos, casa grávida com seu atual marido, uma relação de 20 anos. Para ela, o casamento foi uma fuga. Do matrimônio, têm três filhos: Ricardo de 20 anos, Luís de 13 e Pablo de 5 anos. Fala do marido como um homem rude, ignorante, impaciente. No trabalho, sente-se tensa pelas vezes que ele a chama de burra devido sua dificuldade de calcular. Sente-se solitária no lar, pois não conta com apoio do marido para lidar com os problemas. Com o filho mais velho, Ricardo, também não tem boa relação, pois o mesmo a trata com atitudes grosseiras e humilhantes. Quando Vânia comprou um smartphone e solicitou sua ajuda para manuseá-lo, ele a tratou como uma ignorante afirmando que não saberia nunca mexer naquele aparelho. Descreveu o episódio com sentimento de revolta com a atitude do filho e mágoa de ver "o meu filho mais velho que tanto amei me machucar tanto". Machucados acumulados por Vânia dentro de suas difíceis relações com os homens importantes de sua história de vida.

A atitude de transferência No último mês do processo terapêutico, a frequência de Vânia havia caído drasticamente, na proporção de uma presença para duas faltas. Nas últimas duas sessões que esteve presente, a cliente falou, com sentimentos de ansiedade e vergonha, os problemas que a terapia trazia para o seu dia-a-dia por novos pensamentos e sentimentos. Ao ampliarmos essa fala, a cliente colocou que a terapia vinha promovendo coisas boas. Ter um espaço e uma pessoa de confiança com quem podia desabafar problemas de sua vida, permitiam que ela pudesse "aliviar o fardo que tanto incomoda".

Todavia, também surgiram sentimentos tidos como confusos e vergonhosos, dos quais Vânia apresentava dificuldades em expressar: "José, eu ainda não estou preparada para te falar essas coisas. Por favor, me espera". No pedido que era solicitado, também era reconhecida a dificuldade de uma pessoa em verbalizar aquilo que sentia. Empaticamente reconhecemos os sentimentos de nervosismo e temor tão visíveis no balbuciar de sua voz trêmula, em sua posição cabisbaixa e respiração ofegante. Após comunicar o seu o estado, o convite para esclarecer o que vivia também situava a psicoterapia como o seu espaço seguro para versar sobre esses sentimentos de sua vida.

Na sessão seguinte, a cliente trouxe um conjunto de sentimentos confusos e vergonhosos que a acompanhavam. Precisamente, relatou um devaneio e um sonho nos quais pensava no seu terapeuta com fortes sentimentos de amor, saudades, carinho e segurança. Sobre o devaneio, falou que quando se encontrava em casa sozinha ou em situações estressoras, surgia a memória de seu terapeuta. Tal lembrança era permeada pela segurança de saber que alguém a escutava e, ao mesmo tempo, ajudava-a "a enfrentar a sua vida". Sobre o sonho, contou que estava caminhando com seu terapeuta em frente a um lago, ao entardecer. Ambos estavam vestidos de branco e de mãos dadas. Durante todo o sonho ambos caminhavam pelo lago sem falar. Declarou que, sentia-se extremamente feliz pela companhia do terapeuta.

Após descrever esses relatos, a cliente trouxe a inviabilidade de continuar o processo terapêutico, pois "não posso eu ficar sonhando essas coisas com você que tem idade para ser meu filho". Ou seja, uma mulher nutria um conjunto de sentimento por seu terapeuta e, ao mesmo tempo, recriminava-se por não poder tê los. Com o espelhamento da recriminação, começou a tratar sobre a impossibilidade de ter o que chamava de "aqueles sentimentos". Nessa situação, a mesma intensificou o autojulgamento, especialmente por tratar essas questões frente a seu terapeuta.

Em seguida, comunicou o desejo de abandonar a terapia, pois gerava a "confusão de sentimentos" que tinha por ele. O terapeuta comunicou a percepção de uma grande ansiedade pela situação por ela vivida. Para curar essa ansiedade, segundo Vânia, o fim da terapia seria a solução: "Eu não posso sentir isso. Isso é loucura de minha cabeça". O terapeuta partilhou que sentia que a mesma parecia ser muito rígida consigo sobre os sentimentos para com ele. Por conseguinte, a cliente reconheceu sua tentativa de criar estratégias para não lidar com tais sentimentos, pois não sabia suas dimensões.

Após um longo período de silêncio, Vânia declarou: "Você é o homem que sempre sonhei na minha vida!". Afirmou que com o terapeuta alcançou tudo o que ela queria de um homem: sentir-se segura e compreendida, sem medo de ser humilhada. Quando espelhada sobre a importância do terapeuta na sua vida, discretamente ela fala: "Mas você é só o terapeuta que eu conheço". Nesse momento, a alegria deu lugar para o estranhamento junto com um longo silêncio interrompido com a pontuação: "Eu só conheço o terapeuta que encontro toda semana". Após esse momento, com um semblante triste, Vânia quis finalizar o encontro.

Na sessão seguinte, Vânia trouxe a decisão pelo fim do processo. Queria encerrar a relação terapêutica que propiciava sentimentos poucos experimentados na sua vida, os quais estavam apavorando-a e confundindo-a. Finalizou sua decisão falando:

Muito obrigado por tudo que você fez por mim. Vir para cá muitas vezes foi difícil, mas sempre que lembrava que você estava aqui, sentia-me mais segura. Estou deixando a terapia porque sei que não consigo te ver toda semana sem que fique confusa sobre o que sinto com você. Sei que se continuar essa confusão vai aumentar e tenho medo de não aguentar. Obrigado por tudo.


Testemunhos de transferência e atualizações

Para Amatuzzi7, a terapia seria um intensivo processo de contato subjetivo com vistas para o desenvolvimento pessoal. Por meio dela, o cliente é quem realiza sua própria psicoterapia à medida que explora, revisa e reconstrói a experiência de si pelos sentimentos e intenções que tem para consigo mesmo. O terapeuta, enquanto testemunha qualificada, acompanha esse investimento. Durante esse processo, o terapeuta também se transforma através destes testemunhos, quando reconhece movimento positivo e atualizador do cliente, reconstruindo seus conhecimentos sobre aquela história clínica. Compreendemos que o sentimento de amor de Vânia evidencia atitudes transferenciais, muito próximo como Rogers2 as descreveu:

Há muitos casos, porém, em que as atitudes emocionalizadas [sic] dos clientes em relação ao orientador são muito mais fortes. Pode haver um desejo de dependência, acompanhado de um profundo afeto; [...] em alguns casos, há expressões de afeto e desejo de uma relação amorosa entre cliente e orientador (2:230).


Interessante salientar que a experiência transferencial se estrutura por um mecanismo projetivo do cliente2. Especificamente, Vania projetou em seu terapeuta o desejo de vivenciar com um homem uma relação de amor diferente das relações anteriores. Esse desejo constitui-se como um sonho de vida alternativo frente as relações conflituosas. Cremos que a expressão "Você é o homem que sempre sonhei na minha vida!", organiza uma série de sentimentos latentes que expressam a riqueza de vida do próprio organismo da cliente.

Kinget8 lembra que no percurso do processo terapêutico, para além dos conteúdos já simbolizados pela consciência de si, o cliente entra em contato com sentimentos e intenções que, em termos gestálticos, "pertenciam ao 'fundo' e que não tinham relação com a 'figura' da experiência" (8:63). Entretanto, com a promoção da atmosfera segura da psicoterapia, novas experiências ganham potencial de simbolização na consciência do cliente, muitas vezes transformando a demanda da terapia. Tal fenômeno aconteceu com Vânia, à medida que a demanda ocasionada por alta angústia e ansiedade deu lugar para os conflitos familiares advindos dos diferentes tipos de abuso que foi vítima: do pai, abuso sexual; do marido, traições e abusos morais; e do filho mais velho, desmoralização e descrédito. Entretanto, junto às demandas e conflitos para com os outros, estrutura-se uma nova questão pessoal e íntima de Vânia para consigo mesma.

Ao entrar na psicoterapia, a cliente descrevia uma noção de si permeada de sentimentos de conformismo para com suas limitações intelectuais, sobre as quais só deseja alcançar algumas melhoras. Entretanto, reconhecendo a segurança e aceitação do terapeuta, Vânia tornou-se permissiva para novos sentimentos e desejos que ganharam contornos de novas possibilidades de vida. Essas novas percepções de si organizam-se pelo projeto de tirar a sua carteira de motorista. Sonhava ter por meio dessa qualificação maior liberdade de locomoção, para assim desenvolver trabalhos comerciais independentes do marido, construir novas relações de amizade e até voltar a estudar. Assim, vemos que "realidade" se transforma à medida que, no campo fenomenológico, novas percepções são simbolizadas, permitindo a construção de uma nova possibilidade de percepção de si9. Ou seja, seria "a totalidade de experiências nas quais o indivíduo toma consciência do que se passa no organismo, em seus mais diversos níveis perceptivos."10 Assim, permitindo a construção de novos sentidos e significados sobre si.

Para alcançar essa nova experiência, dentro do processo psicoterápico, o terapeuta exerce uma importante função para o processo de mudança de personalidade: pessoa-critério. Segundo Rogers, à medida que a cliente experimenta uma atmosfera terapêutica segura, estruturada pela ausência de julgamento e ameaças pelo terapeuta, mecanismos de defesas perdem sua função de conservação do quadro de autoimagem ideal. Assim, experiências e sentimentos não simbolizados ganham potência rumo à integração da constituição de uma nova noção de si a ser experimentada pela pessoa. "Em consequência disto, a consideração positiva de pessoas pelas quais os indivíduos experimentam uma consideração particularmente positiva (pessoas-critério) pode se tornar uma força diretriz e reguladora mais forte que o processo de avaliação organísmica" (11:198)11.

Por um lado, os fortes sentimentos de Vânia para com seu terapeuta evidenciaram novas possibilidades de relações humanas, para além de seu funcionamento enrijecido. Essa nova noção de si aparecia na psicoterapia quando a mesma começava a reconhecer que poderia se tornar uma "mulher tranquila e forte", mesmo que alguns sentimentos de medo se fizessem concomitantemente presentes. Interessante ressaltar que a emergência desses momentos de movimento12 onde a cliente saía da cristalização de auto percepção para a experimentação de novo sentidos e sentimentos de si, resultou no fortalecimento da sua liberdade experiencial:

Desta forma, o indivíduo é psicologicamente livre quando não se sente obrigado a negar ou a deformar aquilo que experimenta a fim de conservar seja o afeto ou estima daqueles que representam um papel importante na sua economia interna, seja sua auto-estima (8:47)8.


No caso de Vânia, os sentimentos de amor pelo homem que ela sempre havia sonhado explicitam duas simbolizações em potencial: a primeira, sobre a viabilidade de um novo tipo de relacionamento com masculino, que discrepou dos relacionamentos abusivos e violentos vividos com seu pai, marido e filho; segundo, a permissividade da experiência discrepou um funcionamento cristalizado que se reconhece por uma noção de si mais livre e forte.

Com a emergência desses novos quadros de experiências, percebemos que Vânia apresenta possíveis sinais de liberdade experiencial de seu funcionamento antes enrijecido. Especificamente, quando as atitudes transferências sinalizaram novos modos de experiência de sua relação com o masculino. Trata-se do que Rogers qualificou de aumento da vivência existencial, ou seja, "um máximo de adaptabilidade, uma descoberta da estrutura na experiência, uma organização fluente, mutável, do eu e da personalidade" (13:169)13. Especialmente, no presente estudo caso, a amplificação dessas vivências, que se materializaram nos sonhos que arquitetava e desejava junto com o terapeuta, explicitavam a tendência de atualização de sua condição de pessoa. "Seu comportamento representa um esforço constante orientado (goal-directed)[sic] do organismo a fim de satisfazer suas necessidades de atualização tal como ele as percebe, na realidade, tal como a percebe" (8: 196)8.

A partir da emergência das tendências atualizadoras, acreditamos que, juntamente, surge uma situação conflituosa. Devemos situar que, mesmo com a liberdade experiencial vivida pela cliente para novos movimentos na sua vida, os conteúdos morais e padrões sociais ainda tinham força dentro da visão de mundo de Vânia. Cremos que, com o aumento existencial, tenha também surgido fortes tensões, em formas de dúvidas e incertezas, frente aos padrões e normas morais solidificados na sua noção de si. Esse conflito fica evidente sobre as ambivalências de julgamentos que a cliente tem para com a psicoterapia e o seu psicoterapeuta, respectivamente: da terapia, que a faz sentir-se bem e segura, como causadora de sentimentos confusos; e de seu terapeuta, o qual tem um amor e carinho, mas para quem não pode ter "certos sentimentos".

Rogers2 havia discutido uma interessante peculiaridade no processo de mudança de personalidade. Com emergência de uma nova noção de si pelas experimentações das atualizações e as ainda persistentes estruturas morais cristalizadas no Ideal de Eu, "a discrepância entre a estrutura do self e o mundo da experiência passa a ser expressa, gradualmente, como um sentimento de tensão e angústia" (2:582). Configura-se uma situação conflituosa nas operações da reconstrução de uma experiência mais ampla do sujeito sobre si mesmo. Os sentimentos ali presentes também podem ser acompanhados por sensações de desespero frente a essa reconstrução, pela suposta perda de seus referenciais, como nossa cliente que versou em algumas situações sobre seu medo de perder seu marido ao tornar-se uma mulher independente. Outra forma de tensão apresenta-se como sentimento de insegurança, especialmente quando Vânia experimentou por não saber sobre suas habilidades em poder realizar seus sonhos.

Atitudes de transferenciais como atualizações

Como versamos anteriormente, a compreensão das atitudes transferenciais, pelo pensamento rogeriano2, indicam um funcionamento de defesa que opera por mecanismo de projeção. Trata-se da fixação em um determinado movimento experiencial que figura no terapeuta a oportunidade de dar vazão às questões a serem resolvidas pelo cliente. Percebemos tal movimento experiencial de nossa cliente Vânia, quando o seu sentimento de amor visava materializar o tipo de homem ideal que se aproximava com as atitudes de seu terapeuta. Cremos que a conceituação de Rogers para com esse fenômeno, enquanto mecanismo psíquico projetivo, evidenciou os sentimentos de nossa cliente. Entretanto, as mesmas atitudes transferenciais nos trouxeram outras evidências.

Nosso testemunho sobre o processo psicoterapêutico de Vânia, descrito acima, também versou que, junto do mecanismo de projeção, também estavam operando a emergência de novos fluxos de sentimentos de permissividade e liberdade existencial, graças à atmosfera segura que a cliente afirmou experienciar. Concomitantemente, a tendência de atualização da noção de si de Vânia também dava sinais quando a mesma imaginava a possibilidade de ser uma nova mulher, especialmente, por sonhar sentir-se mais forte e livre.

Rogers9, no desenvolvimento de sua teoria não-diretiva sustentava-se, além de em vários estudos sobre as teorias da época, na sua própria experiência clínica. Foram seus clientes que mostraram os caminhos para superação e resolução de suas demandas, bem como ensinaram ao cientista Rogers a dinâmica e as nuances do processo de mudança de personalidade. Junto com pensamento rogeriano, também percebemos que nossa experiência clínica nos trouxe vários questionamentos.

Será que as atitudes transferenciais operam somente por mecanismos de defesa? A experiência da transferência não seria também uma abertura à atualização do organismo? Não estaria também o Self reconstruindo sua noção de si pela oportunidade de experienciar novamente dimensões incongruentes de sua vida?

Discutir o presente estudo de caso com tais questionamentos é convidar os leitores a também se mobilizarem com o caso clínico narrado. Cremos que a comunidade científica, pelo diálogo e o encontro, pode apontar os caminhos e meios para fortalecimento da psicoterapia centrada na pessoa. Para tanto, cremos que as relações de dialogicidade e fortalecimento científico devem se pautar na proposta de Amatuzzi7sobre a característica principal da Abordagem Centrada na Pessoa:

A consistência última não está no nível de sua utilidade ou mesmo de sua eficácia, mas no nível do seu valor. Se não tenho sensibilidade para valores, jamais entenderei a abordagem centrada na pessoa; a não ser que a entenda como mera técnica. Mas, em última instância, ela não se justifica como uma técnica e sim, como uma ética: uma ética das relações humanas (interpessoais, comunitárias, sociais, políticas). Justificar a ACP é explicitar e fundamentar, no plano teórico, os valores que ela expressa (7:23).


Esperamos implicar nos leitores curiosos com desenvolvimento da ACP o anseio de compartilhar também suas experiências e reflexões que permeiam a construção de "seu jeito de ser" terapeuta. Com vias de comunicação, como o presente artigo, poderemos, além do progresso da própria teoria, fortalecer outros terapeutas curiosos e preocupados com desenvolvimento pessoal de cada pessoa que facilitamos sua psicoterapia.


REFERÊNCIAS

1. Gobbi S, Missel S, Justo H, Holanda A. Vocabulário e noções básicas da abordagem centrada na pessoa. 2ª ed. São Paulo: Vetor; 2005.

2. Rogers CR. Terapia Centrada no Cliente. São Paulo: Martins Fonte; 1992.

3. Albertoni LB. As atitudes transferenciais e a ACP. Revista do NUFEN. 2011; 3(1): 65-91.

4. Henriques WM, Morato HTP. Supervisão: lugar de fronteiras, ato clínico em ação. In: Morato HTP, Barreto CLBT, Nunes AP, ed. Aconselhamento psicológico numa perspectiva fenomenológica existencial: uma introdução. 1ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2009. p. 281-295.

5. Boris GDJB. Versões de Sentido: Um Instrumento Fenomenológico-Existencial para a Supervisão de Psicoterapeutas Iniciantes. Revista Psicologia Clínica (PUCRJ. Impresso). 2008; 20(1): 165-180.

6. Amatuzzi MM. Por Uma Psicologia Humana. 1ª ed. Campinas: Alínea; 2001.

7. Amatuzzi MM Rogers: ética humanista e psicoterapia. 1ª ed. Campinas: Editora Alínea; 2010.

8. Kinget GM. O método não-diretivo. In: Rogers CR, Kinget GM, ed. Psicoterapia e relações humanas. 2ª ed. Belo Horizonte: Interlivros; 1997. p. 23-142.

9. Rogers CR, Kinget GM. Psicoterapia e relações humanas. 2ª ed. Belo Horizonte: Interlivros; 1977.

10. Castelo Branco PC. A noção de organismo no fieri teórico de Carl Rogers: uma investigação epistemológica. [Dissertation]. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará; 2010.

11. Rogers CR. Teoria e Pesquisa. In: Rogers CR, Kinget GM, ed. Psicoterapia e relações humanas. 2ª ed. Belo Horizonte: Interlivros; 1977.10

12. Rogers CR. A essência da psicoterapia: momentos de movimentos. in: Santos A, Bowen M, Rogers CR, ed. Quando fala o coração: a essência da psicoterapia centrada na pessoa. São Paulo: Vetor; 2004. 11

13. Rogers CR. Tornar-se Pessoa. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 1990.










a. Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará
b. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará

Correspondência
José Alves de Souza-Filho
e-mail: josefilhoss@gmail.com
Vilma Maria Barreto Paiva
e-mail: vilmabarretopaiva@gmail.com

Submetido em: 12/06/2019
Aceito em: 19/06/2019

Contribuições: José Alves de Souza-Filho - Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição; Vilma Maria Barreto Paiva - Redação - Revisão e Edição.

Instituição: Universidade Federal do Ceará

 

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