Rev. bras. psicoter. 2019; 21(1):99-109
Souza-Filho JA, Paiva VMB. Atitudes Transferenciais na Psicoterapia Centrada na Pessoa: um estudo de caso. Rev. bras. psicoter. 2019;21(1):99-109
Relato de Caso
Atitudes Transferenciais na Psicoterapia Centrada na Pessoa: um estudo de caso
Transferential Attitudes in Person Centered Psychotherapy: a case study
Atitudes Transferenciais na Psicoterapia Centrada na Pessoa: um estudo de caso
José Alves de Souza-Filhoa; Vilma Maria Barreto Paivab
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
Segundo a obra Gobbi, Missel, Justo & Holanda1, Carl Rogers não elaborou em sua teoria clínica uma discussão profunda sobre o fenômeno da transferência. Segundo Rogers2 sua proposta de psicoterapia não teria o mesmo interesse clínico pela transferência como a Psicanálise possui. Na sua abordagem não-diretiva e acolhedora, a transferência seria tomada como uma atitude do cliente tão importante como outras que o mesmo venha a desenvolver pelo terapeuta, diferente da Psicanálise que a elege com via estruturante do processo terapêutico. Dessa forma, tal fenômeno clínico passa a ser discutido sobre a conceituação de atitudes transferenciais.
Para melhor esclarecer a visão rogeriana, Albertoni3 esclarece as dimensões conceituais das atitudes transferenciais na psicoterapia da Abordagem Centrada na Pessoa. Sua discussão, que inicialmente situa as leituras de Rogers sobre Freud, esclarece que as atitudes transferenciais constituem um conjunto de vivências e afetos, que, atuando sobre o funcionamento da projeção, estruturam um esquema defensivo frente à emergência de sentimentos de ameaça que venham a surgir na relação terapêutica. Em busca da autopreservação do organismo, o cliente, deparando-se com as ameaças de julgamento, busca, na figura do terapeuta, uma tutela para lidar com seu funcionamento incongruente e adoecido. "Na relação terapêutica, o terapeuta se torna o bode expiatório da distorção que a pessoa cria para proteger-se do conteúdo que a ameaça e ele (terapeuta) acaba por receber todas as projeções desses conteúdos" (3:79)3.
Tal situação descrita acima teoricamente, tem testemunho pelas narrativas de um caso clínico conduzido por nós, na época em condição de psicoterapeuta e supervisora, nos anos iniciais de atuação clínica do primeiro, sobre as orientações da experiência da segunda. Discutir as atitudes transferenciais no processo de mudança de personalidade, a partir da psicoterapia de Carl Rogers, é o que pretende a presente produção. Proposta que acredita na relevância de partilhar com a academia a experiência clínica de um neo-psicoterapeuta, junto com a atenção de sua supervisora, sobre os subsídios teórico-clínicos para a compreensão do caso. Cremos que o trabalho formativo, pela parceria de ambos, garante a construção da consciência clínica do psicólogo e psicoterapeuta em formação, através do estudo conjunto, discussão clínica e apoio na formação pessoal4.
Inicialmente, situamos de modo breve, uma história de vida de um caso clínico. Em seguida, narramos um episódio do processo terapêutico, onde a cliente apresenta atitudes transferenciais para seu terapeuta. A escolha dessa cena deve-se pela sua sintonia com as demandas advindas dos conflitos com as figuras masculinas de sua vida. Por fim, apresentaremos uma breve explanação sobre as atitudes transferenciais. Pretendemos discutir como essa experiência de transferência se situa dentro do quadro de mudança de personalidade, especialmente direcionado para atualização do eu. Importante salientar que adotamos pseudônimos, selecionamos e adequamos informações para que não comprometesse a identidade das pessoas envolvidas.
As obras da proposta clínica da Abordagem Centrada na Pessoa baseiam nossas discussões, as quais serão referenciadas ao longo do estudo. Privilegiamos o pensamento rogeriano por reconhecer nele os subsídios teóricos necessários para a construção de uma discussão congruente com o presente estudo de caso. Auxiliam essas reflexões os registros clínicos das sessões e das supervisões, as versões de sentido e experiências que foram registradas a cada encontro5,6. Tal recurso metodológico situa nossa experiência particular com o pensamento rogeriano à medida que aprendemos com ele as singularidades de nossas vivências, sentimento e discussões. De ante mão, usamos de pseudônimos e realizamos as adequação da narrativas para que a identidades dos envolvido seja preservada. Para o início do processo terapêutico, na instituição onde ocorreu o caso, o usuário tem conhecimento, por meio da assinatura de um Termo de Ciência, que informações referentes a seu caso clínico está passível de estudos e pesquisas por parte dos acadêmicos envolvidos, bem como que, se ocorrer publicação, sua identidade e informações pertinentes serão protegidas e resguardadas.
O Caso Vânia
Vânia, 40 anos, casada, mãe de três filhos, procurou o serviço de psicologia devido grande angústia e ansiedade que atrapalhavam sua vida. Relatou que piora quando trabalha no comércio com marido. Tal ambiente ansiogênico provocaria falta de memória. Por indicação de uma vizinha, Vânia fez sua inscrição para ser atendida na clínica-escola.
Em sua vida, sentimentos e sensações de ameaça e medo foram muito presentes. Quando criança, fora molestada pelo pai por toques de masturbação: "Meu pai não me tinha como filha, me tinha como mulher!".
Esses abusos se prolongaram por sua infância e adolescência, com o conhecimento da mãe, que tinha pavor da personalidade grosseira do patriarca. No lar, o constante clima de tensão e ameaça sobre as mulheres impediam reação contrária a ele. Declara ter gratidão pelo pai, pois, "foi ele que me colocou no mundo", mas o considera ignorante e abusado. Sobre sua mãe, que é "santa, maravilhosa, o meu porto seguro", culpa-a "de eu ser do jeito que sou", pois "não me deixou viver e ser uma Vânia forte e batalhadora".
Aos vinte anos, casa grávida com seu atual marido, uma relação de 20 anos. Para ela, o casamento foi uma fuga. Do matrimônio, têm três filhos: Ricardo de 20 anos, Luís de 13 e Pablo de 5 anos. Fala do marido como um homem rude, ignorante, impaciente. No trabalho, sente-se tensa pelas vezes que ele a chama de burra devido sua dificuldade de calcular. Sente-se solitária no lar, pois não conta com apoio do marido para lidar com os problemas. Com o filho mais velho, Ricardo, também não tem boa relação, pois o mesmo a trata com atitudes grosseiras e humilhantes. Quando Vânia comprou um smartphone e solicitou sua ajuda para manuseá-lo, ele a tratou como uma ignorante afirmando que não saberia nunca mexer naquele aparelho. Descreveu o episódio com sentimento de revolta com a atitude do filho e mágoa de ver "o meu filho mais velho que tanto amei me machucar tanto". Machucados acumulados por Vânia dentro de suas difíceis relações com os homens importantes de sua história de vida.
A atitude de transferência No último mês do processo terapêutico, a frequência de Vânia havia caído drasticamente, na proporção de uma presença para duas faltas. Nas últimas duas sessões que esteve presente, a cliente falou, com sentimentos de ansiedade e vergonha, os problemas que a terapia trazia para o seu dia-a-dia por novos pensamentos e sentimentos. Ao ampliarmos essa fala, a cliente colocou que a terapia vinha promovendo coisas boas. Ter um espaço e uma pessoa de confiança com quem podia desabafar problemas de sua vida, permitiam que ela pudesse "aliviar o fardo que tanto incomoda".
Todavia, também surgiram sentimentos tidos como confusos e vergonhosos, dos quais Vânia apresentava dificuldades em expressar: "José, eu ainda não estou preparada para te falar essas coisas. Por favor, me espera". No pedido que era solicitado, também era reconhecida a dificuldade de uma pessoa em verbalizar aquilo que sentia. Empaticamente reconhecemos os sentimentos de nervosismo e temor tão visíveis no balbuciar de sua voz trêmula, em sua posição cabisbaixa e respiração ofegante. Após comunicar o seu o estado, o convite para esclarecer o que vivia também situava a psicoterapia como o seu espaço seguro para versar sobre esses sentimentos de sua vida.
Na sessão seguinte, a cliente trouxe um conjunto de sentimentos confusos e vergonhosos que a acompanhavam. Precisamente, relatou um devaneio e um sonho nos quais pensava no seu terapeuta com fortes sentimentos de amor, saudades, carinho e segurança. Sobre o devaneio, falou que quando se encontrava em casa sozinha ou em situações estressoras, surgia a memória de seu terapeuta. Tal lembrança era permeada pela segurança de saber que alguém a escutava e, ao mesmo tempo, ajudava-a "a enfrentar a sua vida". Sobre o sonho, contou que estava caminhando com seu terapeuta em frente a um lago, ao entardecer. Ambos estavam vestidos de branco e de mãos dadas. Durante todo o sonho ambos caminhavam pelo lago sem falar. Declarou que, sentia-se extremamente feliz pela companhia do terapeuta.
Após descrever esses relatos, a cliente trouxe a inviabilidade de continuar o processo terapêutico, pois "não posso eu ficar sonhando essas coisas com você que tem idade para ser meu filho". Ou seja, uma mulher nutria um conjunto de sentimento por seu terapeuta e, ao mesmo tempo, recriminava-se por não poder tê los. Com o espelhamento da recriminação, começou a tratar sobre a impossibilidade de ter o que chamava de "aqueles sentimentos". Nessa situação, a mesma intensificou o autojulgamento, especialmente por tratar essas questões frente a seu terapeuta.
Em seguida, comunicou o desejo de abandonar a terapia, pois gerava a "confusão de sentimentos" que tinha por ele. O terapeuta comunicou a percepção de uma grande ansiedade pela situação por ela vivida. Para curar essa ansiedade, segundo Vânia, o fim da terapia seria a solução: "Eu não posso sentir isso. Isso é loucura de minha cabeça". O terapeuta partilhou que sentia que a mesma parecia ser muito rígida consigo sobre os sentimentos para com ele. Por conseguinte, a cliente reconheceu sua tentativa de criar estratégias para não lidar com tais sentimentos, pois não sabia suas dimensões.
Após um longo período de silêncio, Vânia declarou: "Você é o homem que sempre sonhei na minha vida!". Afirmou que com o terapeuta alcançou tudo o que ela queria de um homem: sentir-se segura e compreendida, sem medo de ser humilhada. Quando espelhada sobre a importância do terapeuta na sua vida, discretamente ela fala: "Mas você é só o terapeuta que eu conheço". Nesse momento, a alegria deu lugar para o estranhamento junto com um longo silêncio interrompido com a pontuação: "Eu só conheço o terapeuta que encontro toda semana". Após esse momento, com um semblante triste, Vânia quis finalizar o encontro.
Na sessão seguinte, Vânia trouxe a decisão pelo fim do processo. Queria encerrar a relação terapêutica que propiciava sentimentos poucos experimentados na sua vida, os quais estavam apavorando-a e confundindo-a. Finalizou sua decisão falando:
Muito obrigado por tudo que você fez por mim. Vir para cá muitas vezes foi difícil, mas sempre que lembrava que você estava aqui, sentia-me mais segura. Estou deixando a terapia porque sei que não consigo te ver toda semana sem que fique confusa sobre o que sinto com você. Sei que se continuar essa confusão vai aumentar e tenho medo de não aguentar. Obrigado por tudo.
Há muitos casos, porém, em que as atitudes emocionalizadas [sic] dos clientes em relação ao orientador são muito mais fortes. Pode haver um desejo de dependência, acompanhado de um profundo afeto; [...] em alguns casos, há expressões de afeto e desejo de uma relação amorosa entre cliente e orientador (2:230).
Desta forma, o indivíduo é psicologicamente livre quando não se sente obrigado a negar ou a deformar aquilo que experimenta a fim de conservar seja o afeto ou estima daqueles que representam um papel importante na sua economia interna, seja sua auto-estima (8:47)8.
A consistência última não está no nível de sua utilidade ou mesmo de sua eficácia, mas no nível do seu valor. Se não tenho sensibilidade para valores, jamais entenderei a abordagem centrada na pessoa; a não ser que a entenda como mera técnica. Mas, em última instância, ela não se justifica como uma técnica e sim, como uma ética: uma ética das relações humanas (interpessoais, comunitárias, sociais, políticas). Justificar a ACP é explicitar e fundamentar, no plano teórico, os valores que ela expressa (7:23).
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