Rev. bras. psicoter. 2019; 21(1):85-98
Alckmin-Carvalho F, Pereira RF, Rafihi-Ferreira RE, Melo MHS. Terapia Cognitivo-Comportamental para bulimia nervosa crônica e severa: estudo de caso. Rev. bras. psicoter. 2019;21(1):85-98
Relato de Caso
Terapia Cognitivo-Comportamental para bulimia nervosa crônica e severa: estudo de caso
Cognitive-Behavioral Therapy for chronic and severe bulimia nervosa: case study
Terapia Cognitivo-Comportamental para bulimia nervosa crônica e severa: estudo de caso
Felipe Alckmin-Carvalhoa; Rodrigo Fernando Pereirab; Renatha El Rafihi-Ferreirac; Márcia Helena da Silva Melod
Resumo
Abstract
Resumen
INTRODUÇÃO
A Bulimia Nervosa (BN) é um transtorno alimentar (TA) caracterizado por episódios recorrentes de compulsão alimentar acompanhados de comportamentos compensatórios inapropriados para impedir o ganho de peso, além de autoavaliação indevidamente influenciada pela forma do corpo e pelo peso1. O quadro de BN traz prejuízos significativos ao funcionamento psicológico, social e à saúde física2,3. É associado a altas taxas de complicações médicas, comprometimento psicossocial, comorbidades psiquiátricas e mortalidade3,4.
O tratamento da BN é feito, normalmente, em contexto ambulatorial, e envolve uma equipe multidisciplinar mínima composta por psicólogo, psiquiatra e nutricionista5. Entre as diversas modalidades de psicoterapia disponíveis para o tratamento de BN, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é a que apresenta mais evidências de eficácia, até o momento, sendo considerada "padrão ouro" para o tratamento deste transtorno mental6,7,8,9.
A perspectiva cognitivo-comportamental da BN supõe um modo de autoavaliação exageradamente baseado na imagem, no peso e na capacidade de controlar o próprio corpo10. As múltiplas tentativas de controle, envolvendo restrição alimentar, constantes medidas e checagem do corpo, aumentam a probabilidade de ocorrência de episódios de compulsão alimentar que, por sua vez, são seguidos de novas tentativas de controle, que podem envolver uso de laxantes, diuréticos, exercícios físicos extenuantes, autoindução de vômito e períodos de severa restrição alimentar, criando um círculo vicioso que mantém o quadro.
O protocolo de tratamento cognitivo-comportamental para o tratamento da BN, conhecido como CBT-E11, envolve uma sequência flexível de intervenções focadas na mudança dos aspectos que mantêm o transtorno.
Dividido em estágios, a TCC para BN abrange inicialmente psicoeducação, automonitoração e alimentação em intervalos regulares. Posteriormente, o foco passa a ser a checagem das crenças sobre a imagem corporal, do "sentir-se gordo", da autoestima e do perfeccionismo, bem como de outros possíveis determinantes do comportamento alimentar alterado.
Estudos de seguimento mostram taxa de remissão de 70%, caracterizando a não-remissão após cinco anos como um curso crônico da doença12. Quanto mais frequentes, severos e duradouros os sintomas de BN, maior a chance de recaída após recuperação13. A cronicidade do quadro é um dos indicadores de mau prognóstico, e a detecção e tratamento precoces indicam para prognósticos mais favoráveis14,15. Deste modo, pacientes com BN crônica e severa tendem a apresentar resultados mais moderados, com necessidade de acompanhamento por um período mais longo. No entanto, faltam evidências de como esses casos respondem à TCC. O objetivo deste estudo é apresentar os resultados de uma intervenção psicoterápica cognitivo-comportamental para o tratamento de uma paciente com BN crônica e grave.
MÉTODO
Delineamento
Trata-se de um estudo de caso apresentado de acordo com as diretrizes propostas por Kazdin (1981)16, com a finalidade de aumentar a validade interna da pesquisa, e, portanto, a qualidade da evidência científica produzida. Para tal, o presente estudo contou com avaliação de medidas objetivas (dados antropométricos) e avaliação de medidas repetidas autorreferidas dos comportamentos de compulsão e purgação. Os dados das avaliações foram acessados em quatro momentos: pré-tratamento, durante o tratamento, pós-tratamento e em período de seguimento de dois meses.
Local de realização do estudo e considerações éticas
O estudo foi realizado no Laboratório de Terapia Comportamental, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (LTC-IP-USP), entre março e dezembro de 2017. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição (CAAE: 67037317.3.00005561). A participante assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os dados foram deformados de acordo com as recomendações de Gabbard (2000)17, de modo a impossibilitar a identificação da paciente.
Descrição do caso
Kátia, negra, 38 anos, bissexual, nasceu prematura, filha mais velha de prole de três, divorciada, ensino superior completo, professora de Ensino Fundamental, mãe de dois filhos (um de 17 e outro de um ano), classe média-baixa. Reside com seus dois filhos em um bairro da periferia da capital paulista. Reportou prisão de ventre severa desde a infância. Apenas conseguia evacuar na presença da mãe, com quem mantinha uma relação conflituosa e distante. Quando sua mãe passou a trabalhar fora de casa, em três turnos, ficou, aos 10 anos, 15 dias sem evacuar e precisou ser submetida à lavagem retal. Foi sexualmente molestada aos 13 anos por uma pessoa próxima à família, com diferença de idade aproximada de 20 anos. Nunca reportou o ocorrido aos familiares ou amigos.
Iniciou comportamentos de restrição alimentar aos 14 anos porque "não queria ter peito nem bunda" (sic). Tinha medo de que o corpo chamasse atenção de homens e, por isso, "não queria ter curvas e gostava de usar roupas largas" (sic). Teve a primeira compulsão alimentar aos 15 anos. Ainda com a mesma idade, teve o primeiro episódio de purgação, por vômito autoinduzido. Aos 16 anos, começou a fazer uso abusivo de laxantes. Com índice de massa corporal (IMC) mínimo de 16,7 kg/m2, aos 18 anos, a paciente preenchia os critérios diagnósticos para Anorexia Nervosa do subtipo purgativo. Dos 16 até 38 anos, fez uso de laxante para provocar diarreia aproximadamente três vezes por semana, e induzia vômito aproximadamente quatro vezes por semana.
Teve períodos de melhora durante a gravidez dos dois filhos, mas nunca deixou de ter compulsões alimentares e comportamentos compensatórios. Procurou tratamento porque recentemente descobriu que sua filha mais velha também apresenta comportamentos de compulsão alimentar e purgação. Katia apresentou relatos de culpa e manifestou desejo de se tratar para poder ajudar a filha. Posteriormente, relatou que apresentava vômitos sanguinolentos, o que a fez perceber que precisava de tratamento. Disse ainda que sua mãe também tinha uma relação difícil com a comida e com o corpo, evitando alimentos calóricos e fazendo exercícios físicos de maneira vigorosa e com comportamentos de purgação eventuais. Nunca foi atendida por profissionais da área da saúde mental. Iniciou o tratamento eutrófica (54,5kg, IMC=20,2 kg/m2).
Instrumentos utilizados para avaliação de desfechos
(1) Diário alimentar: estratégia empregada para avaliar a ingestão de alimentos da paciente, pensamentos e sentimentos associados, presença de compulsão alimentar e de comportamentos compensatórios. Foi orientada, na segunda sessão, a anotar todas essas variáveis, a fim de que as trouxesse para análise em sessão.
(2) Questionário de Exame para Transtornos Alimentares (EDE-q): de autopreenchimento com 28 perguntas, que objetivam avaliar sintomas de TA associados a quatro subescalas: restrição, preocupação com a massa corporal, com a forma do corpo e com a alimentação. As opções de respostas variam de 0 a 6, de acordo com o número de dias ou de vezes nas últimas quatro semanas em que o paciente apresentou algum dos sintomas de TA. Escores mais elevados significam maior gravidade do TA. Estudos internacionais têm apresentado evidências de validade do EDE-q, no entanto, embora o instrumento esteja traduzido e adaptado para a língua portuguesa, não há estudos nacionais apresentando evidências de validade para a população brasileira.
(3) Avaliação Antropométrica: durante o tratamento, a paciente não conseguiu ser atendida por uma nutricionista pelo Sistema Único de Saúde brasileiro, pois os ambulatórios específicos para tratamento de TA tinham uma longa fila de espera. Por esse motivo, as medidas antropométricas foram verificadas e reportadas pela própria paciente, que foi orientada a fazê-las e verificar sua massa corporal na mesma balança no início, ao final do tratamento e no período de seguimento.
(1) Psicoeducação: envolveu: (a) orientações sobre a etiologia dos TA, comportamentos e fatores de risco e de proteção para a BN; (b) apresentação dos prejuízos fisiológicos e emocionais associados à condição; (c) explicitação do ciclo de restrição alimentar, compulsão e purgação; (d) explicação do que é uma compulsão alimentar e diferenciação de compulsão alimentar (ingestão rápida de uma imensa quantidade de alimentos, normalmente calóricos, associados à sensação de falta de controle e posterior sentimentos de vergonha ou culpa) de exagero alimentar.
(2) Balança Decisória: técnica cognitivo-comportamental utilizada para clarificar as perdas e ganhos em curto, médio e longo prazo, associados aos comportamentos de restrição alimentar e comportamentos compensatórios, como utilização de laxantes e indução de vômito. Essa técnica é particularmente útil em casos em que há ambivalência quanto ao desejo de melhora, e favorece o engajamento no processo de psicoterapia.
(3) Diário Alimentar: é uma técnica de automonitoramento, que foi utilizada para auxiliar na avaliação do padrão alimentar da participante. A paciente foi orientada a registrar dia, horário e local onde foi realizada cada refeição, o tipo e a quantidade de alimentos ingeridos. Ao lado, deveria marcar se houve ou não a ocorrência de indução de vômito desta refeição e os pensamentos e sentimentos associados.
(4) Identificação de crenças disfuncionais associadas ao corpo, à comida e à alimentação: trata-se de um procedimento com a finalidade de ajudar o paciente a identificar, externalizar e "desobedecer" aos sintomas de TA, que se traduzem em crenças distorcidas com relação à alimentação. Alguns exemplos: "Se eu comer um prato de comida, ganharei um quilo", "Se eu me permitir comer, não conseguirei mais parar" e "Alguns alimentos são perigosos".
(5) Análise funcional molecular dos episódios de compulsão alimentar e de comportamentoscompensatórios: trata-se de uma ferramenta analítico-comportamental para formulação do caso e para explicitação das variáveis ambientais antecedentes e consequentes dos comportamentos de restrição alimentar, compulsão e purgação. Ensinar o paciente a fazer análises funcionais contribui para que este faça associação entre eventos ambientais e seus comportamentos, o que favorece aquisição de repertório de autoconhecimento.
(6) Treinamento de habilidades de comunicação: temcomoobjetivoevidenciar os padrõesde comunicação passivo, agressivo ou assertivo, bem como identificar suas consequências, em curto e longo prazo, com ilustrações e exemplos da vida cotidiana do próprio paciente. Abrange a clarificação dos prejuízos associados à passividade e à agressividade e os potenciais benefícios de uma comunicação mais assertiva.
(7) Biblioterapia: esta é uma técnica autodirigida em que se utiliza livros como intervenção para problemas de comportamento e psicopatologias. O método postula que é possível, a partir da leitura, acessar informações e estratégias de enfrentamento, modelação e modelagem18. Neste contexto, o livro intitulado "O peso das dietas", de autoria de Sophie Deram, foi dado à paciente. Foi pedido a ela que lesse um capítulo a cada encontro, para que os temas fossem discutidos em sessão. Trata-se de uma obra que explica, de modo acessível a leigos, entre outras coisas, o ciclo de restrição alimentar, que favorece a ocorrência de compulsões e, consequentemente, de comportamentos compensatórios. Além disso, a autora explica como o corpo "entende" e reage a episódios prolongados de restrição alimentar, e como as dietas restritivas, em longo prazo, podem prejudicar o organismo e produzir ganho de peso. Há dicas nutricionais que ajudam o paciente a escolher alimentos com mais qualidade, em vez de ter como foco os indicadores de gorduras e calorias.
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