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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2019; 21(1):85-98



Relato de Caso

Terapia Cognitivo-Comportamental para bulimia nervosa crônica e severa: estudo de caso

Cognitive-Behavioral Therapy for chronic and severe bulimia nervosa: case study

Terapia Cognitivo-Comportamental para bulimia nervosa crônica e severa: estudo de caso

Felipe Alckmin-Carvalhoa; Rodrigo Fernando Pereirab; Renatha El Rafihi-Ferreirac; Márcia Helena da Silva Melod

Resumo

OBJETIVO: apresentar o processo e os resultados de uma intervenção psicoterápica de orientação Cognitivo-Comportamental (TCC) para o tratamento de uma paciente adulta com bulimia nervosa crônica e severa.
MÉTODO: o processo de psicoterapia ocorreu em 20 sessões, em um período de seis meses. Foram utilizadas as seguintes técnicas: psicoeducação, treinamento de habilidades de comunicação, biblioterapia, balança decisória, identificação de crenças disfuncionais associadas ao corpo, à comida e à alimentação, automonitoramento e análise funcional dos episódios de compulsão alimentar e de comportamentos compensatórios. A gravidade do transtorno alimentar, a ocorrência de compulsão alimentar, os comportamentos compensatórios e as medidas antropométricas foram acessadas por medidas de autorrelato nos períodos pré, pós-tratamento e em seguimento.
RESULTADOS: Ao final da intervenção, houve remissão da compulsão alimentar e redução significativa dos comportamentos compensatórios. Não houve variação expressiva dos indicadores antropométricos. Todavia, crenças disfuncionais permaneceram ao final do tratamento, sobretudo com relação à forma física.
CONCLUSÕES: No presente estudo, a recuperação comportamental foi anterior à normalização cognitiva e verificou-se a presença de sintomas cognitivos residuais. A TCC produziu efeitos positivos e mostrou-se aplicável e viável, apesar da severidade e cronicidade do caso.

Descritores: Transtornos Alimentares, Bulimia Nervosa, Terapia Cognitivo-Comportamental, Psicoterapia, Estudo de Caso.

Abstract

AIM: to present the process and the results of a Cognitive-Behavioral Therapy (CBT) intervention for the treatment of chronic and severe bulimia nervosa of an adult patient.
METHOD: The psychotherapy process took 20 sessions, along 6 months. The following techniques were used: psychoeducation, communication skills training, bibliotherapy, decision scale, identification of dysfunctional beliefs about body image, food and nutrition, self-monitoring, and functional analysis of of binge eating and compensatory episodes. The severity of the eating disorder, the occurrence of binge eating, the compensatory behaviors and the anthropometric measurements were accessed by self-report measures in the pre, post-treatment and during the follow-up.
RESULTS: At the end of treatment, the patient did not present binge eating and there was a significant reduction of compensatory behaviors. There was no significant variation in the anthropometric indicators. Dysfunctional beliefs remained, especially regarding shape.
CONCLUSIONS: in this clinical case, behavioral recovery was prior to cognitive normalization and the presence of residual cognitive symptoms was verified. CBT was feasible and produced positive effects, despite the severity and chronicity of the case.

Keywords: Eating Disorders, Bulimia Nervosa, Cognitive-Behavioral Therapy, Psychotherapy, Case Study.

Resumen

OBJETIVO: presentar el proceso y resultados de una intervención psicoterápica de orientación Cognitivo-Comportamental (TCC) para el tratamiento de una paciente adulta con bulimia nerviosa crónica y severa.
MÉTODO: el proceso de psicoterapia ocurrió en 20 sesiones, en un período de seis meses. Se utilizaron las siguientes técnicas: psicoeducación, entrenamiento de habilidades de comunicación, biblioterapia, balanza decisoria, identificación de creencias disfuncionales asociadas al cuerpo, a la comida y alimentación, automonitoramiento y análisis funcional de los episodios de compulsión alimentaria y comportamientos compensatorios. La gravedad del trastorno alimentario, la ocurrencia de compulsión alimentaria, los comportamientos compensatorios y las medidas antropométricas fueron accedidas por medidas de autorelato en los períodos pre y post-tratamiento y en seguimiento.
RESULTADOS: Al final del tratamiento, hubo remisión de la compulsión alimentaria y reducción significativa de los comportamientos compensatorios. No hubo variación expresiva de los indicadores antropométricos. Sin embargo, las creencias disfuncionales permanecieron al final del tratamiento, sobre todo en relación con la forma física.
CONCLUSIONES: En el presente caso, la recuperación comportamental fue anterior a la normalización cognitiva y se verificó la presencia de síntomas cognitivos residuales. La TCC produjo efectos positivos y se mostró aplicable y viable, a pesar de la severidad y cronicidad del caso.

Descriptores: Trastornos de la alimentación, Bulimia nerviosa, Terapia Cognitiva-Conductual, Psicoterapia, Estudio de caso.

 

 

INTRODUÇÃO

A Bulimia Nervosa (BN) é um transtorno alimentar (TA) caracterizado por episódios recorrentes de compulsão alimentar acompanhados de comportamentos compensatórios inapropriados para impedir o ganho de peso, além de autoavaliação indevidamente influenciada pela forma do corpo e pelo peso1. O quadro de BN traz prejuízos significativos ao funcionamento psicológico, social e à saúde física2,3. É associado a altas taxas de complicações médicas, comprometimento psicossocial, comorbidades psiquiátricas e mortalidade3,4.

O tratamento da BN é feito, normalmente, em contexto ambulatorial, e envolve uma equipe multidisciplinar mínima composta por psicólogo, psiquiatra e nutricionista5. Entre as diversas modalidades de psicoterapia disponíveis para o tratamento de BN, a Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é a que apresenta mais evidências de eficácia, até o momento, sendo considerada "padrão ouro" para o tratamento deste transtorno mental6,7,8,9.

A perspectiva cognitivo-comportamental da BN supõe um modo de autoavaliação exageradamente baseado na imagem, no peso e na capacidade de controlar o próprio corpo10. As múltiplas tentativas de controle, envolvendo restrição alimentar, constantes medidas e checagem do corpo, aumentam a probabilidade de ocorrência de episódios de compulsão alimentar que, por sua vez, são seguidos de novas tentativas de controle, que podem envolver uso de laxantes, diuréticos, exercícios físicos extenuantes, autoindução de vômito e períodos de severa restrição alimentar, criando um círculo vicioso que mantém o quadro.

O protocolo de tratamento cognitivo-comportamental para o tratamento da BN, conhecido como CBT-E11, envolve uma sequência flexível de intervenções focadas na mudança dos aspectos que mantêm o transtorno.

Dividido em estágios, a TCC para BN abrange inicialmente psicoeducação, automonitoração e alimentação em intervalos regulares. Posteriormente, o foco passa a ser a checagem das crenças sobre a imagem corporal, do "sentir-se gordo", da autoestima e do perfeccionismo, bem como de outros possíveis determinantes do comportamento alimentar alterado.

Estudos de seguimento mostram taxa de remissão de 70%, caracterizando a não-remissão após cinco anos como um curso crônico da doença12. Quanto mais frequentes, severos e duradouros os sintomas de BN, maior a chance de recaída após recuperação13. A cronicidade do quadro é um dos indicadores de mau prognóstico, e a detecção e tratamento precoces indicam para prognósticos mais favoráveis14,15. Deste modo, pacientes com BN crônica e severa tendem a apresentar resultados mais moderados, com necessidade de acompanhamento por um período mais longo. No entanto, faltam evidências de como esses casos respondem à TCC. O objetivo deste estudo é apresentar os resultados de uma intervenção psicoterápica cognitivo-comportamental para o tratamento de uma paciente com BN crônica e grave.


MÉTODO

Delineamento


Trata-se de um estudo de caso apresentado de acordo com as diretrizes propostas por Kazdin (1981)16, com a finalidade de aumentar a validade interna da pesquisa, e, portanto, a qualidade da evidência científica produzida. Para tal, o presente estudo contou com avaliação de medidas objetivas (dados antropométricos) e avaliação de medidas repetidas autorreferidas dos comportamentos de compulsão e purgação. Os dados das avaliações foram acessados em quatro momentos: pré-tratamento, durante o tratamento, pós-tratamento e em período de seguimento de dois meses.

Local de realização do estudo e considerações éticas

O estudo foi realizado no Laboratório de Terapia Comportamental, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (LTC-IP-USP), entre março e dezembro de 2017. Foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição (CAAE: 67037317.3.00005561). A participante assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os dados foram deformados de acordo com as recomendações de Gabbard (2000)17, de modo a impossibilitar a identificação da paciente.

Descrição do caso

Kátia, negra, 38 anos, bissexual, nasceu prematura, filha mais velha de prole de três, divorciada, ensino superior completo, professora de Ensino Fundamental, mãe de dois filhos (um de 17 e outro de um ano), classe média-baixa. Reside com seus dois filhos em um bairro da periferia da capital paulista. Reportou prisão de ventre severa desde a infância. Apenas conseguia evacuar na presença da mãe, com quem mantinha uma relação conflituosa e distante. Quando sua mãe passou a trabalhar fora de casa, em três turnos, ficou, aos 10 anos, 15 dias sem evacuar e precisou ser submetida à lavagem retal. Foi sexualmente molestada aos 13 anos por uma pessoa próxima à família, com diferença de idade aproximada de 20 anos. Nunca reportou o ocorrido aos familiares ou amigos.

Iniciou comportamentos de restrição alimentar aos 14 anos porque "não queria ter peito nem bunda" (sic). Tinha medo de que o corpo chamasse atenção de homens e, por isso, "não queria ter curvas e gostava de usar roupas largas" (sic). Teve a primeira compulsão alimentar aos 15 anos. Ainda com a mesma idade, teve o primeiro episódio de purgação, por vômito autoinduzido. Aos 16 anos, começou a fazer uso abusivo de laxantes. Com índice de massa corporal (IMC) mínimo de 16,7 kg/m2, aos 18 anos, a paciente preenchia os critérios diagnósticos para Anorexia Nervosa do subtipo purgativo. Dos 16 até 38 anos, fez uso de laxante para provocar diarreia aproximadamente três vezes por semana, e induzia vômito aproximadamente quatro vezes por semana.

Teve períodos de melhora durante a gravidez dos dois filhos, mas nunca deixou de ter compulsões alimentares e comportamentos compensatórios. Procurou tratamento porque recentemente descobriu que sua filha mais velha também apresenta comportamentos de compulsão alimentar e purgação. Katia apresentou relatos de culpa e manifestou desejo de se tratar para poder ajudar a filha. Posteriormente, relatou que apresentava vômitos sanguinolentos, o que a fez perceber que precisava de tratamento. Disse ainda que sua mãe também tinha uma relação difícil com a comida e com o corpo, evitando alimentos calóricos e fazendo exercícios físicos de maneira vigorosa e com comportamentos de purgação eventuais. Nunca foi atendida por profissionais da área da saúde mental. Iniciou o tratamento eutrófica (54,5kg, IMC=20,2 kg/m2).

Instrumentos utilizados para avaliação de desfechos

(1) Diário alimentar: estratégia empregada para avaliar a ingestão de alimentos da paciente, pensamentos e sentimentos associados, presença de compulsão alimentar e de comportamentos compensatórios. Foi orientada, na segunda sessão, a anotar todas essas variáveis, a fim de que as trouxesse para análise em sessão.

(2) Questionário de Exame para Transtornos Alimentares (EDE-q): de autopreenchimento com 28 perguntas, que objetivam avaliar sintomas de TA associados a quatro subescalas: restrição, preocupação com a massa corporal, com a forma do corpo e com a alimentação. As opções de respostas variam de 0 a 6, de acordo com o número de dias ou de vezes nas últimas quatro semanas em que o paciente apresentou algum dos sintomas de TA. Escores mais elevados significam maior gravidade do TA. Estudos internacionais têm apresentado evidências de validade do EDE-q, no entanto, embora o instrumento esteja traduzido e adaptado para a língua portuguesa, não há estudos nacionais apresentando evidências de validade para a população brasileira.

(3) Avaliação Antropométrica: durante o tratamento, a paciente não conseguiu ser atendida por uma nutricionista pelo Sistema Único de Saúde brasileiro, pois os ambulatórios específicos para tratamento de TA tinham uma longa fila de espera. Por esse motivo, as medidas antropométricas foram verificadas e reportadas pela própria paciente, que foi orientada a fazê-las e verificar sua massa corporal na mesma balança no início, ao final do tratamento e no período de seguimento.


Tratamento Cognitivo-Comportamental

O processo de psicoterapia foi estruturado em seis meses, período no qual foram realizadas 20 sessões.

O tratamento foi conduzido pelo primeiro autor, psicólogo clínico especialista em TA, doutor em psicologia clínica, sob supervisão do último autor. As seguintes intervenções e/ou técnicas foram utilizadas:

(1) Psicoeducação: envolveu: (a) orientações sobre a etiologia dos TA, comportamentos e fatores de risco e de proteção para a BN; (b) apresentação dos prejuízos fisiológicos e emocionais associados à condição; (c) explicitação do ciclo de restrição alimentar, compulsão e purgação; (d) explicação do que é uma compulsão alimentar e diferenciação de compulsão alimentar (ingestão rápida de uma imensa quantidade de alimentos, normalmente calóricos, associados à sensação de falta de controle e posterior sentimentos de vergonha ou culpa) de exagero alimentar.

(2) Balança Decisória: técnica cognitivo-comportamental utilizada para clarificar as perdas e ganhos em curto, médio e longo prazo, associados aos comportamentos de restrição alimentar e comportamentos compensatórios, como utilização de laxantes e indução de vômito. Essa técnica é particularmente útil em casos em que há ambivalência quanto ao desejo de melhora, e favorece o engajamento no processo de psicoterapia.

(3) Diário Alimentar: é uma técnica de automonitoramento, que foi utilizada para auxiliar na avaliação do padrão alimentar da participante. A paciente foi orientada a registrar dia, horário e local onde foi realizada cada refeição, o tipo e a quantidade de alimentos ingeridos. Ao lado, deveria marcar se houve ou não a ocorrência de indução de vômito desta refeição e os pensamentos e sentimentos associados.

(4) Identificação de crenças disfuncionais associadas ao corpo, à comida e à alimentação: trata-se de um procedimento com a finalidade de ajudar o paciente a identificar, externalizar e "desobedecer" aos sintomas de TA, que se traduzem em crenças distorcidas com relação à alimentação. Alguns exemplos: "Se eu comer um prato de comida, ganharei um quilo", "Se eu me permitir comer, não conseguirei mais parar" e "Alguns alimentos são perigosos".

(5) Análise funcional molecular dos episódios de compulsão alimentar e de comportamentoscompensatórios: trata-se de uma ferramenta analítico-comportamental para formulação do caso e para explicitação das variáveis ambientais antecedentes e consequentes dos comportamentos de restrição alimentar, compulsão e purgação. Ensinar o paciente a fazer análises funcionais contribui para que este faça associação entre eventos ambientais e seus comportamentos, o que favorece aquisição de repertório de autoconhecimento.

(6) Treinamento de habilidades de comunicação: temcomoobjetivoevidenciar os padrõesde comunicação passivo, agressivo ou assertivo, bem como identificar suas consequências, em curto e longo prazo, com ilustrações e exemplos da vida cotidiana do próprio paciente. Abrange a clarificação dos prejuízos associados à passividade e à agressividade e os potenciais benefícios de uma comunicação mais assertiva.

(7) Biblioterapia: esta é uma técnica autodirigida em que se utiliza livros como intervenção para problemas de comportamento e psicopatologias. O método postula que é possível, a partir da leitura, acessar informações e estratégias de enfrentamento, modelação e modelagem18. Neste contexto, o livro intitulado "O peso das dietas", de autoria de Sophie Deram, foi dado à paciente. Foi pedido a ela que lesse um capítulo a cada encontro, para que os temas fossem discutidos em sessão. Trata-se de uma obra que explica, de modo acessível a leigos, entre outras coisas, o ciclo de restrição alimentar, que favorece a ocorrência de compulsões e, consequentemente, de comportamentos compensatórios. Além disso, a autora explica como o corpo "entende" e reage a episódios prolongados de restrição alimentar, e como as dietas restritivas, em longo prazo, podem prejudicar o organismo e produzir ganho de peso. Há dicas nutricionais que ajudam o paciente a escolher alimentos com mais qualidade, em vez de ter como foco os indicadores de gorduras e calorias.



RESULTADOS

O diagnóstico de BN foi realizado em duas sessões, anteriores ao processo de psicoterapia, por meio de entrevista clínica baseada nos critérios descritos no DSM-5. Nessa entrevista, e nas sessões posteriores, foi avaliado que Kátia não apresentava transtornos de personalidade, tampouco outros de transtornos mentais do eixo I, embora sintomas de ansiedade e de fobia social fossem evidentes.

O diário alimentar evidenciou um padrão de alimentação caótico e bastante restritivo. Por diversos dias, a paciente fez apenas uma ou duas refeições. Foram verificados episódios de purgação mais frequentes em dias com menos refeições. Os episódios de compulsão alimentar, mais frequentes no início do tratamento, diminuíram à medida que a alimentação se normalizou e o padrão restritivo diminuiu. Na Figura 1, estão apresentadas as frequências semanais de compulsão alimentar e utilização de método compensatório para prevenção de ganho de peso.


Figura 1. Evolução dos episódios de compulsão alimentar e comportamento compensatório (Fonte: dados da
pesquisa)



A normalização do padrão alimentar não implicou em alterações de peso significativas ao final do tratamento e em período de seguimento. Na avaliação inicial de Katia, verificou-se estatura de 1,64m, sem variações ao longo do tratamento. Durante a intervenção houve variações nos demais indicadores antropométricos, como massa (kg), IMC (Kg/m²), status da menstruação e severidade do TA, conforme demonstrado na Tabela 1.

As alterações cognitivas e comportamentais associadas à BN estiveram bastante elevadas no início do tratamento. A pontuação média do EDE-q, instrumento que avalia a severidade do TA foi quase correspondente ao escore máximo do instrumento, evidenciando-se, assim, a gravidade do TA. Essas alterações reduziram-se após o tratamento em todas as subescalas e a pontuação média foi menor que 0,5 na avaliação de seguimento. A Figura 2 apresenta a evolução da gravidade dos sintomas alimentares nas três fases de avaliação.


* O nível de severidade da Bulimia Nervosa foi avaliado com base nas diretrizes do DSM-5, segundo o qual a média de 8 a 13 episódios de comportamentos compensatórios inapropriados por semana caracteriza nível grave.


Figura 2. Evolução dos escores do EDE-q ao longo do acompanhamento.(Fonte: dados da pesquisa).



Os resultados indicaram que os sintomas cognitivos de BN diminuíram ao longo do tratamento. Essa redução manteve-se na avaliação realizada no seguimento, momento em que se identificou a menor frequência de compulsões e os menores escores do EDE-q. Verificou-se, ainda, que no início do tratamento os episódios de comportamentos compensatórios ocorriam em frequência mais elevada do que os episódios de compulsão alimentar. Isso indica que mesmo quando a paciente não comia de maneira exagerada ou que caracterizasse compulsão, ainda assim provocava vômito e utilizava laxantes.

Evidenciou-se que a paciente não sabia, mesmo após processo de psicoeducação, diferenciar compulsões alimentares de exageros. Esse é um indicativo de que os muitos anos de restrição alimentar, compulsão e purgação podem ter feito a paciente perder a referência de fome, saciedade, além da dificuldade em avaliar a quantidade apropriada para cada refeição.

Com relação aos determinantes dos comportamentos de compulsão e purgação, foram verificadas relações funcionais a partir da escuta clínica e dos diários alimentares. Na Figura 3, estão descritas na análise funcional os antecedentes e as consequências do comportamento de compulsão alimentar.


Figura 3. Análise funcional molecular e não-linear da resposta de compulsão alimentar de Kátia. Quanto às siglas: SR+ refere-se ao processo de reforçamento positivo, SR- ao reforçamento negativo e SP+ à punição positiva.



Outros comportamentos frequentes da paciente, com finalidade de prevenir o ganho de peso eram o de autoindução de vômito e uso de laxantes, havendo ou não como antecedente episódio de compulsão alimentar. Na Figura 4, estão descritos os antecedentes e as consequências desse comportamento.


Figura 4. Análise funcional molecular e não-linear da classe de respostas de purgação. Quanto às siglas: SR+ refere-se ao processo de reforçamento positivo, SR- a reforçamento negativo e SP+ à punição positiva.



DISCUSSÃO

O objetivo do estudo foi apresentar o processo e os efeitos da TCC no tratamento de uma paciente com BN grave e crônica. O tratamento produziu efeitos positivos em seis meses, mostrando-se viável mesmo em casos severos e crônicos. Houve normalização do padrão alimentar, com maior número de refeições por dia, eliminação dos comportamentos de restrição alimentar, compulsão alimentar e redução significativa de comportamentos compensatórios. Todas essas alterações aconteceram ao longo de seis meses e permaneceram ou intensificaram-se após dois meses do término tratamento.

No atendimento de Kátia, a técnica de automonitoramento por meio do diário alimentar pode ser considerado tanto uma estratégia de coleta de dados, que permite construir análises funcionais, como uma intervenção com valor terapêutico, na medida em que se permite que a paciente avalie com mais clareza seu comportamento alimentar e, assim, faça associações com determinantes ambientais.

A paciente não apresentava transtorno de personalidade ou outros transtornos do eixo I, o que pode ter facilitado a formação de vínculo e o engajamento no tratamento, ambos mediadores de boa resposta à terapia. Pacientes com outros transtornos mentais associados, sobretudo os de personalidade, comuns em casos de BN19, podem demandar mais tempo de tratamento.

A recuperação comportamental, neste caso, parece ter ocorrido anteriormente à normalização cognitiva. Isso indica que no caso apresentado a intervenção cognitivo-comportamental pareceu funcionar mais pelos aspectos comportamentais do que pelas alterações cognitivas. Por exemplo, Kátia não deixou de ter medo nos primeiros dois meses, de aumentar o número de refeições ao longo das semanas e de deixar de vomitar ou de tomar laxantes. A paciente foi orientada a mudar de comportamento mesmo com medo. Essa exposição comportamental alterou gradualmente suas crenças disfuncionais com relação à alimentação e ao corpo. Esse achado vai ao encontro dos estudos de processo de mudança em psicoterapia, que tendem a acontecer mais frequentemente a partir da exposição aos componentes comportamentais, e previamente às intervenções cognitivas20.

Foi verificado, por meio da análise funcional, que os episódios de vômito de Katia aconteciam frequentemente após problemas interpessoais, sobretudo com seu namorado e seu chefe. Ela tinha, assim, dificuldade de ser assertiva, de expor seus desejos e necessidades. Acabava, então, por esquivar-se de situações de conflito, atendendo às necessidades e aos desejos de outros em detrimento dos seus. A seguinte passagem ilustra a função desses comportamentos:

"Às vezes eu acho que vomitar me dá a sensação de que eu estou soltando o que estava entalado na minha garganta. Eu fico aliviada, sai aquele peso, aquele nó."

Nesse contexto, o treinamento de repertório de assertividade foi bastante útil, e tinha como função ajudar a paciente a colocar-se nas relações interpessoais com pessoas significativas, de modo a dar espaço a suas necessidades, preferências e opiniões. O treinamento envolveu exposição gradual de assertividade com pessoas mais prováveis para reforçar seu comportamento, como a amiga mais próxima e o próprio terapeuta. Em outras sessões, ocorreram exposições mais difíceis, como falar sobre seu desconforto nas relações sexuais com o namorado. Estes e outros temas foram abordados. O comportamento-alvo desse treinamento foi a assertividade, em detrimento da análise ser ou não atendida. Na última sessão, a paciente relatou o seguinte:

"Agora parece que eu estou vomitando palavras".

Entre outros determinantes dos comportamentos alimentares problemáticos presentes na história de vida de Kátia, o abuso sexual parece ter sido importante para a seleção da regra, segundo a qual ter o corpo de uma mulher saudável, com curvas, poderia aumentar a probabilidade de novos assédios ou abusos sexuais. Nesse sentido, permanecer magra ou usar roupas largas, que escondessem o corpo, como a paciente fazia, teriam a função de esquiva de novos assédios ou tentativas de abuso sexual.

O episódio de constipação e necessidade de internação para lavagem intestinal na infância parece ter favorecido sua relação conflituosa com a comida, e o uso de laxantes poderia ter função de esquiva de novos episódios de lavagem. Essa hipótese funcional foi construída a partir da seguinte fala da paciente:

"Eu tinha a impressão de que a comida era de alguma forma minha inimiga, e que poderia me fazer mal. Acho que esse episódio da lavagem me marcou mais do que eu imaginava. Eu fiquei com muita vergonha nesse episódio da lavagem, e foi muito dolorido. Sentia uma certa negligência do cuidado da minha mãe."

O caso descrito ilustra a transmissão transgeracional de transtornos alimentares via aprendizagem vicária não comunicada (avó - mãe − filha), pela observação de comportamentos alimentares e relação com a comida e corpo alterados, além de possível influência genética. A possibilidade de recuperar-se da BN, para então poder ajudar a filha, foi o grande motivador para o tratamento de Kátia. Esse e outros motivadores do engajamento no processo de psicoterapia foram clarificados, por meio da técnica de balança decisória, que explicitou, em longo prazo, a transformação de reforçadores negativos de baixa ou moderada magnitude para punidores potentes.

Com relação à biblioterapia, considerou-se a leitura semanal dos capítulos particularmente útil para um dos objetivos do tratamento de pessoas com TA: a análise da relação com a comida e o corpo e a construção de uma relação com este mais pautada em afeto e cuidado e menos em controle e sujeição. A biblioterapia apresentou-se como estratégia suplementar à TCC, possibilitando a modelação de comportamentos mais flexíveis e atuando também como estratégia de enfrentamento.

Embora efetivo, o presente relato de pesquisa apresenta limitações. Os dados apresentados neste estudo são baseados em medidas antropométricas autorreferidas. Idealmente, essas avaliações deveriam ser realizadas por um nutricionista ou médico psiquiatra. O EDE-q, embora traduzido para língua portuguesa, e utilizado em diversos estudos nacionais, não apresenta evidência de validade para a população brasileira, fato que diminui a validade das medidas da severidade do TA. Além disso, não foram realizadas comparações com outros participantes. Devido a estes fatores, réplicas de casos como este são necessárias como também a combinação de medidas autorreferidas e referidas por outros profissionais. Por tratar-se de um relato de caso, esses resultados não podem ser generalizados para todos os pacientes com diagnóstico de BN.


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a. Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia. São Paulo - Brasil. Programa de Tratamento, Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência (PROTAD) - Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP) - São Paulo - Brasil
b. Núcleo Interface de Psicologia, São Paulo - Brasil
c. Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia. São Paulo - Brasil
d. Universidade de São Paulo, Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia. São Paulo - Brasil

Correspondência
Felipe Alckmin-Carvalho
e-mail: felipealckminc@gmail.com / e-mail alternativo: felipcarvalho@usp.br
Rodrigo Fernando Pereira
e-mail: rpereira@usp.br
Renatha El Rafihi-Ferreira
e-mail: rerafihi@usp.br
Márcia Helena da Silva Melo
e-mail: marciahmelo@gmail.com

Submetido em: 26/04/2018
Aceito em: 25/10/2018

Contribuições: Felipe Alckmin-Carvalho - Coleta de Dados, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original; Rodrigo Fernando Pereira - Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão; Renatha El Rafihi-Ferreira - Conceitualização, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Visualização; Márcia Helena da Silva Melo - Conceitualização, Gerenciamento do Projeto, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição, Supervisão, Visualização.

Instituição: Universidade de São Paulo

 

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