Rev. bras. psicoter. 2019; 21(1):39-51
Neves JTP, Zatti C, Freitas LHM. A Psicoterapia Psicanalítica com pessoas surdas: peculiaridades e aproximações. Rev. bras. psicoter. 2019;21(1):39-51
Artigo Original
A Psicoterapia Psicanalítica com pessoas surdas: peculiaridades e aproximações
The Psychoanalytic Psychotherapy with deaf people: peculiarities and approaches
A Psicoterapia Psicanalítica com pessoas surdas: peculiaridades e aproximações
Juliana Torres Porto das Nevesa; Cleonice Zattib; Lúcia Helena Machado Freitasc
Resumo
Abstract
Resumen
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo promover uma reflexão a respeito do atendimento psicológico com pessoas surdas. Mais especificamente, busca convidar a pensar sobre essa escuta aparentemente diferenciada. Descreverá como atua e o que pensa o profissional que realiza essa prática, a partir do exame de entrevistas com psicólogos que atendem a esses sujeitos.
As questões abordadas foram apoiadas na teoria que contextualiza a psicoterapia psicanalítica e o surdo, tendo como resultado uma integração analítica entre estes dois elementos. Foi perguntado sobre a linha teórica utilizada, a faixa etária dos pacientes, o tempo de experiência com pacientes surdos, o interesse pela temática da surdez os primeiros passos dados para iniciar atendimento com esse público, as dificuldades encontradas, as diferenças percebidas entre a clínica com ouvintes e a clínica com surdos, as adaptações no setting terapêutico, os motivos de busca por tratamento, a aderência à psicoterapia de longo prazo, a escuta como função principal do psicoterapeuta, a atenção flutuante, a fluência de LIBRAS, a supervisão, a necessidade de desenvolver um material psicanalítico específico para intervenção com pessoas surdas e as características indispensáveis ao psicoterapeuta que trabalha com pessoas surdas.
Apesar de saber que existem diferentes níveis de surdez, além de casos nos quais é feito implante coclear ou o uso de aparelho auditivo, pouco ainda se explorou, psicanaliticamente, sobre essas realidades.
Por se tratar de um estudo inicial, somado a escassez de psicoterapeutas e publicações teóricas sobre esse assunto nesse entendimento teórico, cabe esclarecer que essa produção é resultado de uma leitura analítica e subjetiva. Logo, longe de fechar o trabalho com uma vertente única, ele pode ser um incentivo para a elaboração de mais reflexões, pesquisas e materiais a respeito da surdez.
2. A PSICOTERAPIA PSICANALÍTICA
A psicoterapia psicanalítica é uma ferramenta terapêutica, desenvolvida há muitos anos, a partir da psicanálise de Sigmund Freud. Ela tem seu olhar voltado ao funcionamento e desenvolvimento psíquico, bem como ao reconhecimento de elementos do inconsciente, que influenciam o comportamento e as emoções dos seres humanos. Protegida pela atmosfera do setting terapêutico, esta prática clínica encoraja o sujeito que a procura, a olhar para dentro de si, fazendo uso da técnica de associação livre de ideias. Tendo como base a análise fenomenológica da narrativa, o paciente é instigado a falar, desvencilhando-se de ordem, (pré) conceitos ou, mesmo, constrangimentos. Dessa forma, o profissional auxilia, com seu conhecimento técnico na releitura e interpretação de lembranças, traumas e vivências. Facilita, portanto, a capacidade de insight e de mudança.
Os propósitos da psicoterapia psicanalítica são, majoritariamente, o autoconhecimento, a melhor compreensão sobre os próprios afetos e comportamentos, o aumento da capacidade de lidar com conflitos psicológicos e o alívio da dor emocional daquele que busca apoio6. Como consequência dessas conquistas, tende-se a melhorar o bem estar pessoal e as relações interpessoais de cada um. Estas transformações acontecem a partir de um processo de elaboração, no qual se conectam experiências atuais e passadas, que se tornam vias para uma nova perspectiva de vida.
3. O PSICOTERAPEUTA PSICANALÍTICO
Descrever o sujeito que atua como psicoterapeuta, em qualquer linha teórica, não é tarefa fácil. Existem características básicas, necessárias, mas que serão sempre articuladas com a história, a cultura e a personalidade de cada profissional. Ou seja, é impossível engessar um perfil. Cada um se apresenta na forma como é. Tais singularidades, no entanto, devem integrar-se aos princípios éticos da atividade terapêutica. No caso da orientação psicanalítica, na mesma proporção, devem ser congruentes com os critérios norteadores dessa prática psicoterápica. Como descreve Zimerman13, é preciso que o psicoterapeuta tenha disposição para lidar com angústias e surpresas advindas de seu próprio inconsciente e do inconsciente de seu paciente.
Além dos elementos do setting - como sigilo, assimetria e neutralidade - ao psicoterapeuta psicanalítico são recomendadas mais três práticas que compõem o denominado tripé da formação analítica, referido por Freud3: manter-se em constante atualização teórica, supervisão e tratamento pessoal.
Contudo, todo e qualquer tipo de recomendação e possibilidade só é efetiva quando o psicoterapeuta psicanalítico se entrega profundamente ao seu trabalho e sente amor pelo que faz.
4. A SURDEZ
A surdez é, fisiologicamente, a ausência da capacidade de ouvir. Ela pode acontecer por diferentes fatores e se processar em diferentes graus. Assim como a deficiência auditiva (faculdade da audição prejudicada, mas não nula), a surdez traz inúmeros desafios àqueles que a possuem. Como refere Marzolla4, as consequências da falta de audição, em alguns casos, podem ser "devastadoras" (p. 16). Além de um histórico de preconceito e inacessibilidade - ainda presentes atualmente - por não ser visível àqueles que ouvem, a surdez é mal compreendida, alertam Negrelli e Marcon5. Esse aspecto vem acompanhado, de forma consistente, por peculiaridades no desenvolvimento, na educação e nas emoções, que, quando não acolhidos e investidos de cuidados, podem determinar o surgimento de problemas psicológicos e adaptativos por parte das pessoas surdas4,5. Se o meio não for receptivo à diferença, não ocorrerão intercâmbios que possibilitem a identificação do sujeito surdo com o ambiente, fator fundamental para a constituição de sua identidade e personalidade5.
Concomitante à falta física e devido à lacuna de comunicação - desde os primeiros anos de vida - em certos sujeitos surdos, um outro tipo de problema pode ocorrer: a dificuldade de subjetivar. Solé9 reforça que a surdez é um fator problematizante na constituição do sujeito, uma vez que o mesmo dependerá de outras vias (e suportes) de acesso - que não a audição - a informações originalmente sonoras. Escutar a voz, sobretudo da mãe, é tido na psicanálise como principal caminho de estruturação do ego, pois facilita as identificações. No entanto, quando filho de pais ouvintes - que nomeiem e deem sentido às suas sensações -, o bebê surdo vivencia sua infância limitado por uma barreira em seu processo de simbolização e compreensão do mundo.
Para Silva8, possuir uma linguagem permite o planejamento e a regulação dos seres humanos. Dar significado às emoções, ou mesmo, metaforizar e abstrair sentidos a partir de situações concretas, já não é tarefa fácil mesmo para ouvintes. Para uma pessoa que não escuta, então, essa função se torna ainda mais complexa.
Transformar sensações e sentimentos, presentes no dia a dia, em símbolos, ou seja, em conhecimento, depende de todo um aparato cognitivo e emocional, construído a partir das primeiras relações de troca entre o cuidador e o bebê, apoiados no discurso. Uma língua e uma linguagem são fundamentais para o processo criativo, pois permitem abstrações, generalizações e a evolução do pensamento7,12. É nesse sentido que é tão importante introduzir a criança, desde cedo, no universo da língua de sinais. Entendendo e utilizando a comunicação gestual, ela pode se desenvolver intelectualmente tanto quanto os ouvintes7,8.
De uma maneira geral, o cuidador deve amparar, nomear e traduzir todas as experiências positivas e negativas do e para o pequeno. Deve acolhê-las de forma desejável, adaptando-se às necessidades individuais da criança, para que a mesma absorva e se aproprie de cada informação. Assim sendo, ela formará seu próprio registro de sensações e emoções, que garantirão uma melhor compreensão de sentimentos e comportamentos ao longo da vida. Esse respaldo é o que Winnicott10 chamou de ambiente suficientemente satisfatório.
É fundamental e estruturante a todas as crianças a presença de um ou mais adultos disponíveis para lidar com suas demandas. Deve ser alguém que se ofereça não apenas para suprir suas necessidades básicas - como alimentação, higiene e conforto - mas também alguém capaz de dar carinho, amor e que sirva de espelho, dando um norte às suas identificações. Acontece que, não raro, quando os pais (ou cuidadores) descobrem que seu filho sofre de alguma deficiência - nesse caso, a surdez - toda a sua potencialidade pode ser acometida por uma ruptura. O déficit pode, facilmente, ser recusado5 .
Como refere Solé9, o diagnóstico de surdez, muitas vezes, emudece a família, que passa a não perceber o sentido das manifestações da criança, bem como não considera importante falar com a mesma, "já que ela não ouve". As expectativas dos pais transformam-se em um silêncio desintegrador. A realidade torna-se indigesta. Além disso, a quebra na fantasia sobre o bebê ideal - perfeito - pode se tornar ainda mais drástica e prejudicial para a relação, quando as figuras de cuidado não são, naturalmente, um modelo de disponibilidade e sustentação. Contudo, é a qualidade desse vínculo que determinará o tipo de relação que o surdo terá futuramente consigo mesmo e com o restante da sociedade5.
Conhecer as questões fisiológicas da surdez (causa e tipo), somadas às questões ambientais e emocionais do desenvolvimento, são alguns dos elementos-chave para qualquer profissional que se engaje em trabalhar com pessoas surdas. Não menos importante, porém, é buscar um entendimento histórico da luta dos surdos para conquistar o espaço e o respeito, de direito, que foi - e ainda é - muito negligenciado por algumas famílias e pela sociedade.
5. O SUJEITO SURDO E ALGUMAS QUESTÕES NA ATUALIDADE
Apesar de as iniciativas pedagógicas terem surgido há muitos anos, a noção de um sujeito autônomo e potencialmente capaz, ou seja, normal, é muito recente. Hoje, a teoria arcaica de que surdo é alguém que não pensa e não sente foi abandonada. Sabe-se que existem algumas peculiaridades advindas da falta auditiva, mas que em nada impedem uma constituição saudável e rica em personalidade. Em realidade, os entraves psicológicos ocasionados pelo diagnóstico da surdez são, na maioria das vezes, alavancados pela incapacidade do meio, principalmente da família, de lidar com a situação. A falta de audição é sim uma condição diferenciada e interpretada de forma singular pelo sujeito8,9. Contudo, se bem acolhida, pode ficar em segundo ou terceiro plano, diante das potencialidades do mesmo. Basta que ele - o surdo - seja estimulado e compreendido em suas diferentes formas de absorver e emitir informações, bem como na constituição de sua subjetividade. Esse amparo torna-se fundamental, uma vez que a surdez é a ausência de um sentido importante para o estabelecimento do ser "naquilo que ele tem de humano" (p. 176)9.
É preciso cuidar para que, independente das causas, o sentido faltoso no bebê - a audição - não seja incorporado pelos pais (ou cuidadores), provocando um impedimento na comunicação, nesse caso, estendendo a ensurdescência para algo além do físico, mas alusivo à qualidade da relação. Como enfatizado por Silva8, a adaptação só terá chances de ser positiva à medida que os familiares elaborarem bem o diagnóstico da surdez.
Enquanto bebê, o ser humano, na condição de total dependência, utiliza-se da voz daquele que o cuida, como fonte de apoio. Esse recurso sonoro torna-se um mediador que nomeia e traduz vivências e emoções, colaborando, junto a outros sentidos, para o desenvolvimento saudável da autonomia. Segundo Winnicott11 , essa disponibilidade por parte do cuidador origina um sentimento de confiança na criança pelo adulto e, consequentemente, por ela mesma, facilitando, com o tempo, um necessário afastamento entre eles. Esse processo de distanciamento acontece aos poucos, precisando de muita comunicação para amadurecer. Quanto há, todavia, uma barreira não apenas física, mas, sobretudo, psicológica, essa etapa do desenvolvimento permanece estagnada.
Negrelli e Marcon5 salientam que, ao descobrir a deficiência do filho, muitas vezes, a família sente-se dilacerada. Assim sendo, esse sentimento negativo pode acabar custando ao surdo um isolamento consequente da incompreensão, ou mesmo, de uma superproteção9, sem estímulos e sustentado na indiferenciação. Quando há uma troca, é possível individualizar. O intercâmbio garante uma memória, um simbolismo da presença do Outro, que impede a perpetuação da simbiose inicial. Quando, porém, a permuta não acontece de forma adequada, o mais frágil e dependente não consegue se desvencilhar, precisando, então, manter a proximidade emocional (e, muitas vezes, física) como garantia de sobrevivência, mesmo ficando imerso e só, no silêncio abandonante do outro.
Erroneamente, supõe-se que a surdez fisiológica é razão direta para o cultivo de dependência pelos pais, de transtornos emocionais e, como referem Cardoso e Capitão2, de traços estereotipados de rigidez e de baixa sociabilidade, entre outros. Sem embargo, tais conflitos, assim como em sujeitos ouvintes, se instalam pela insatisfatória dinâmica entre o ambiente e a criança, em seus primeiros anos de vida. Ocorre que, em surdos, esses percalços podem surgir com mais facilidade9, pois o pequeno que não escuta exigirá muito mais de seu cuidador. Este último terá que dispor de mais energia, mais dedicação e mais jogo de cintura para lidar com questões que estão além de um progresso habitual de desenvolvimento, mas também com as particularidades da surdez. Dentre elas, destacam-se a assimilação de informações por intermédio, principalmente, da visão; e a falta de um sentido, configurando-se como uma "marca no corpo" que precisa ser devidamente elaborada pela psique9. Esses elementos contribuem para a necessidade de ajustar o ambiente e as pessoas envolvidas na educação desses sujeitos.
Ao considerar tudo que foi exposto até aqui, com especial atenção às desejáveis adaptações do ambiente para que o surdo tenha um desenvolvimento saudável do psiquismo, deve-se pensar a respeito do tratamento psicológico com sujeitos sem a faculdade da audição. São retomadas as indagações expostas na introdução desse trabalho: como os surdos tratam seus conflitos psicológicos? Quem os escuta? Quem é o psicólogo que atende aos surdos? Como ele atua? A psicoterapia psicanalítica é possível nesses casos? A escuta como função princeps do terapeuta é diferente para estas pessoas? É necessário fazer adaptações no setting psicoterápico?
A seguir, as perguntas serão respondidas a partir de um diálogo entre dados teóricos, as entrevistas realizadas com psicoterapeutas que atendem surdos e outras reflexões.
6. A PSICOTERAPIA PSICANALÍTICA COM PESSOAS SURDAS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A ATUAÇÃO E O PERFIL DO PROFISSIONAL QUE REALIZA ESSA PRÁTICA
Apesar de a surdez já ser do interesse da psicologia há bastante tempo1,9, a psicoterapia com surdos, sobretudo na linha psicanalítica, ainda é uma proposta desconhecida para muitos profissionais.
Algumas outras questões agregaram-se às inicialmente apresentadas aqui: há obrigatoriedade de saber a LIBRAS para atender a um surdo sem conhecer sua língua? Ou os profissionais podem atender por leitura labial? Há a necessidade de uma teoria específica que integrasse a psicanálise e a surdez? A surdez, por si só, seria responsável por conflitos psicológicos que dificilmente seriam acolhidos por uma perspectiva psicanalítica voltada a ouvintes?
Deveria também o supervisor atender a esse público? Ele conseguiria orientar sobre a psicoterapia com surdos, sem possuir experiência com este tipo de paciente?
Como aconteceriam a transferência e os atos falhos? Seria preciso mais do que o amor pela profissão, para entregar-se a essa escuta aparentemente diferenciada?
Apesar do número escasso de profissionais disponíveis para responder o questionário, bem como à pouca quantidade de psicoterapeutas que fazem uso da psicanálise nessa intervenção específica, as respostas fornecidas enriqueceram o entendimento e clarearam, consideravelmente, as interrogações.
A coleta de informações foi feita mediante a utilização de uma lista de perguntas elaborada a partir de uma revisão teórica sobre psicoterapia psicanalítica, sobre a surdez e sobre o atendimento psicológico com pessoas surdas. As questões foram enviadas e respondidas por e-mail; e precedidas pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Integrando a leitura das cinco entrevistas realizadas (duas com psicoterapeutas psicanalíticos, uma com uma psicanalista e duas com psicoterapeutas cognitivo-comportamental) com a literatura pesquisada, foi possível estruturar um aparato que desse suporte à escrita desse texto.
É possível afirmar que a psicoterapia psicanalítica com pacientes surdos é viável e efetiva. De acordo com todos os entrevistados, a maior parte das buscas por tratamento se dá por conflitos amorosos, queixas escolares, entraves no relacionamento familiar, dificuldades na comunicação interpessoal e traços depressivos, assim como é com ouvintes.
A escuta como instrumento terapêutico e função princeps do terapeuta ultrapassa a fronteira do "ouvível". Na teoria psicanalítica, ouve-se a palavra, mas se escutam também os gestos, as pausas, as expressões e, principalmente, aquilo que não é dito. A técnica, na verdade, sustenta-se em uma leitura perceptiva que o psicoterapeuta faz sobre aquele que discursa. Logo, segundo os terapeutas que atendem aos surdos, quando a elocução é substituída por movimentos, a diferença se dá, unicamente, na capacidade do profissional em reconhecer e dominar cada articulação. Entenda-se reconhecimento e domínio, nesse caso, como aptidões para além do conhecimento teórico, mas também, a fluência na língua daquele que se revela. Conforme Solé9, mesmo que o atendimento não ocorra através do som, é passível de associações, bem como de movimentos transferenciais.
Nesse sentido, é pertinente destacar o primeiro passo dado por todos os colegas entrevistados, quando decidiram iniciar o atendimento clínico com pacientes surdos: aprender LIBRAS. É comum, no princípio, encontrar algumas dificuldades de comunicação. Com o tempo, porém, o aperfeiçoamento se faz vital. Administrar e compreender os sinais com destreza, além de permitir uma comunicação completa e dar segurança ao terapeuta, produz no paciente um sentimento de acolhimento, pois ali ele encontra alguém implicado em entendê-lo.
Como afirma Solé9, a língua de sinais facilita que o paciente sinta-se sustentado no corpo do outro, o que garante uma relação de confiança, oportunizando o estabelecimento da transferência. Dessa forma, contribui, não apenas para que o tratamento comece, mas também, tenha sequência. De acordo com a maioria dos entrevistados, nesses casos, a resistência em se manter em um tratamento a longo prazo acontece de forma mais intensa; contudo, com uma comunicação fluente, pode ser bem trabalhada e superada. Foram categóricas as respostas que afirmam que, quanto mais o psicoterapeuta dominar a LIBRAS, mais natural será sua concentração. Dessa maneira, pode-se concluir que tanto a atenção livre e flutuante, quanto o reconhecimento de atos falhos, podem ocorrer, legitimamente, através dos sinais.
Além do mais, saber LIBRAS protege a dualidade da relação terapêutica, fundamental na técnica psicanalítica. Alguns casos nos quais alguns terapeutas utilizam a presença de um Tradutor Intérprete de Libras (TIL) nas sessões, foram denunciados e criticados, por corromper com os princípios da prática.
Entretanto, é importante pontuar que nem todo o surdo é usuário da LIBRAS. Nesses casos, foi recomendado ao profissional estar aberto para usar recursos que se aproximem das possibilidades do paciente: leitura labial, escrita e desenho, por exemplo.
Para mais, cabe ao profissional sair da zona de conforto e ir além da literatura psicanalítica. A teoria preconiza que todos os sujeitos são constituídos de forma singular, mas, como lembra Witt12, "não possuir a faculdade da audição é a própria diferença" (p. 68). É uma marca corporal, uma barreira na constituição da subjetividade que, segundo Solé9, precisa ser elaborada, não apenas pelo paciente, mas pelo próprio profissional. Procurar a pluralidade do surdo através da história, da cultura, da realidade social é, segundo os entrevistados, fundamental para inaugurar-se nesse nicho de atendimento.
Adicionalmente, além de colaborar na compreensão e no manejo com o paciente surdo, tal embasamento possibilita que aquele que o trata perceba o impacto dessa diferença em seu próprio inconsciente. O contato com a surdez desacomoda12. Para tanto, o tripé psicanalítico - citado anteriormente - acrescido de uma pesquisa sobre a temática da surdez, mostra-se, mais uma vez, muito importante.
Como visto, a teorização sobre esse tipo de atendimento - no que se refere à psicanálise, principalmente - está engatinhando. Todavia, apesar de reconhecerem a necessidade de mais publicações nessa área, nenhum dos profissionais considerou imprescindível a criação de uma abordagem específica. Recomendou-se que o psicoterapeuta disponha-se a investigar, por conta própria, ou com ajuda de outros colegas interessados, mais profundamente, a respeito da surdez. Ele deve permitir-se interagir com a comunidade surda e, assim, integrar o conhecimento adquirido às fundamentações psicanalíticas. Destarte, estruturará sua prática.
No que diz respeito ao suporte de um profissional mais experiente, segundo os psicoterapeutas, o ideal seria recorrer a alguém com bagagem nessa área. No entanto, Solé9 pondera que "ter trabalhado e convivido com sujeitos surdos não implica ter constantemente presente a dimensão da surdez" (p. 16). Ademais, pela carência de pessoas que atendam a surdos, tem-se optado por supervisores que consigam, de forma empática, abraçar essa demanda.
A análise pessoal do terapeuta segue sendo um recurso essencial ao profissional da psicanálise. A surdez ressoará de forma singular em cada psicoterapeuta. Como refere Solé9, a relação com a falta auditiva vai além de uma troca sensorial, mas propicia um contato com "o próprio lugar de estrangeiro" (p. 58). A autora confessa que teve, por algum tempo, dificuldades em construir os relatos pós-sessão, alegando sentir um vazio que lhe causava a sensação de não saber muito sobre seu paciente. Acabava trocando de supervisor na expectativa de solucionar esse problema, pois ainda não havia reconhecido a reprodução que fazia da transferência de seus pacientes.
Mesmo sendo bem compreendida conscientemente, a surdez poderá impactar negativamente no inconsciente do clínico. Marzolla4 salienta que tal deficiência pode refletir de forma perturbadora no terapeuta, despertando angústias e defesas que precisam ser devidamente percebidas e, acrescente-se, ressignificadas pelo mesmo.
A capacidade de moldar-se começa pelos ajustes no setting da psicoterapia. Alguns entrevistados trouxeram a tendência de reforçar, com mais frequência, os limites aos seus pacientes. A comunicação e algumas combinações feitas fora do horário de atendimento acabam ocorrendo por mensagens de texto, whatsapp, ou mesmo skype. Portanto, além de ser recomendado familiarizar-se com esses recursos tecnológicos, é preciso cuidar, ainda mais, para que não haja uma ruptura na demarcação de lugares e papéis.
A mudança em alguns aspectos do atendimento não significa romper com a relação terapêutica tradicional, sustentada na assimetria, na neutralidade e na abstinência. São esses elementos que irão contribuir no sucesso do tratamento, efetivado na autonomia do paciente.
Uma situação comum é a necessidade de o psicoterapeuta atuar, em alguns momentos, de forma mais pedagógica, mas essa intervenção é desaprovada por parte dos entrevistados. Entretanto, outros relatam que, por vezes, é preciso explicar o que é a psicologia, o significado de algumas emoções e, pela ausência do conhecimento de LIBRAS em outras especialidades, o conceito de algumas doenças e condições estranhas a sua área. Contudo, Marzolla4 salienta a tendência de alguns a aconselhar pode representar a incapacidade de conter as próprias angústias.
O psicoterapeuta também dá suporte aos pais que se sentem perdidos sobre a condição do filho. Ele pode recorrer aos mesmos, para conseguir mais dados sobre seu paciente. Solé9 destaca que, mesmo com adultos, recorre aos familiares - principalmente às mães - para um resgate mais fidedigno da infância de seus pacientes. Segundo a autora, os surdos possuem mais dificuldade de construir um histórico, pois têm poucas lembranças de quando eram crianças. Além disso, para o psicoterapeuta, "falar com os pais e lidar com as transferências que esses foram capazes de estabelecer, sempre foram fundamentais para o andamento das análises" (p. 79)9.
Outra característica a ser pontuada é a importância de o profissional saber explicar (sinalizar), de forma mais objetiva, as abstrações emergentes das interpretações. É preciso ser claro nas intervenções. Diferente do atendimento com ouvintes, deve-se evitar deixar mensagens ou interpretações no ar, para que o sujeito capte seu significado subentendido. Para pessoas surdas, é mais difícil metaforizar.
Diante das questões expostas, pode-se perceber que são necessárias algumas adaptações não apenas no setting, mas no próprio profissional. Aprender LIBRAS, desenvolver expressão facial/corporal adequada, ir em busca de literatura surda, familiarizar-se com tecnologias, ser mais ativo, mais objetivo e, também, mais empático, exige que o psicoterapeuta de surdos disponha-se a ir além do que já conhece.
Dessa forma, pode-se inferir que, para atuar com esse público, mais do que interesse e gosto, é preciso um certo enamoramento pela surdez. Aquele que decide tratar quem não ouve deve estar aberto não apenas para conhecer e descobrir o inconsciente do sujeito que o procura. Deve, também, disponibilizar-se para uma nova cultura, uma nova língua, novos movimentos e, sobretudo, para um novo e barulhento silêncio.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, foi realizado um apanhado teórico sobre a temática da surdez, sobre o desenvolvimento emocional do surdo e sobre o atendimento em psicoterapia psicanalítica com esse público. A bibliografia pesquisada, somada às entrevistas feitas com profissionais que atuam nesse nicho, proporcionou um maior entendimento da psicoterapia psicanalítica com pessoas surdas.
A psicoterapia psicanalítica com pessoas surdas confirmou-se possível e efetiva, entretanto, carente de mais pesquisas e publicações sobre o entendimento e a prática. Além disso, evidenciou-se a escassez de profissionais que façam esse tipo de acolhimento, sobretudo, na psicanálise.
Ao final dessa produção, foi possível pontuar algumas adaptações necessárias - no setting e no profissional - para que o tratamento psicológico com surdos ocorra sem romper com os fundamentos psicanalíticos. Também ficou claro que a escuta clínica ocorre da mesma forma que com ouvintes, à medida que o profissional domine a LIBRAS e esteja ciente das diferenças presentes na realidade da surdez.
Para mais, convém salientar que, contrariando suposições iniciais, não possuir a faculdade da audição não é causa direta para o surgimento de problemas psicológicos. Patologias e entraves no desenvolvimento são, assim como com ouvintes, advindos de uma relação conflituosa com o meio no qual o surdo está inserido.
Restam ainda outras questões, como examinar mais profundamente os aspectos transferenciais e contratransferenciais, o impacto das adaptações feitas no atendimento para os profissionais, e discutir a necessidade da produção de uma literatura específica. São questões que merecem mais atenção, devendo ser consideradas para pesquisas futuras. Assim, encerra-se esta escrita, instigada a conhecer mais sobre o tema e acreditando fazer desse trabalho um impulsor para tais possibilidades.
REFERÊNCIAS
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13. Zimermann D. Manual de técnica psicanalítica: uma re-visão. Porto Alegre: Artmed, 2004.
a. Univesidade Federal do Rio Grande do Sul, PPG Psiquiatria - Porto Alegre - RS - Brasil
b. Psicóloga; Cursando Formação em Psicoterapia Psicanalítica (GAEPSI-RS); Mestre em Ciências Médicas: Psiquiatria e ciências do comportamento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Doutoranda em Psiquiatria e Ciências do Comportamento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
c. Médica Psiquiatra; Mestre em Saúde Pública (Harvard School of Public Health - Boston USA); Doutora em Psiquiatria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Professora Associada do Departamento de Psiquiatria, Faculdade de Medicina e Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre - RS - UFRGS
Correspondência
Juliana Torres Porto das Neves
e-mail: psijuliananeves@gmail.com / e-mail alternativo: jtpneves@gmail.com
Submetido em: 15/05/2018
Aceito em: 28/02/2019
Contribuição do autor: Coleta de Dados, Conceitualização, Investigação, Metodologia, Redação - Preparação do original, Redação - Revisão e Edição.
Instituição: Univesidade Federal do Rio Grande do Sul
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