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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2018; 20(2):85-100



Artigo de Revisao

Avaliaçao da capacidade de mentalizaçao em crianças

Assessment of mentalization in children

Cibele Carvalhoa; Vera Regina Röhnelt Ramiresb

Resumo

A mentalizaçao tem sido considerada um elemento importante para a compreensao do processo e dos resultados na psicoterapia psicodinâmica de crianças. No entanto, ainda é restrito o número de pesquisas nessa área. Em grande parte isso se deve à escassez de instrumentos disponíveis para avaliar o constructo com a populaçao infantil. O presente estudo teve como objetivo realizar uma revisao narrativa de estudos sobre a avaliaçao da capacidade de mentalizaçaoem crianças, com ênfase nos instrumentos de avaliaçao e em suas bases conceituais. Foram consultados os portais EBSCO e CAPES, utilizando-se os descritores "mentalization" ou "reflective functioning" e "instrument" e "children". Foram encontrados quatro procedimentos que atenderam aos objetivos do estudo: o Manchester Child Attachment Story Task (MCAST), a Child Reflective Functioning Scale (CRFS), a Friends and Family Interview (FFI) e o Método de Rorschach. Os resultados evidenciaram que as avaliaçoes no contexto das relaçoes de apego, abrangidas pelo MCAST, CRFS e FFI, têm sido mais utilizadas, no entanto, o Método de Rorschach é proposto como uma alternativa, pois permite a avaliaçao da mentalizaçao de uma perspectiva intra-individual. O estudo demonstrou o desafio de mensurar um constructo tao complexo em um único procedimento e em um período de desenvolvimento específico.

Descritores: Mentalizaçao; Teoria da mente; Crianças; Instrumentos.

Abstract

Mentalization has been considered an important element for understanding the process and outcomes in child psychodynamic psychotherapy. However, the number of researches in this field is still limited. Partly this is due to lack of instruments available to assess the construct in the child population. The objective of this study was to perform a narrative review of studies on the assessment of mentalization in children regarding the assessment instruments and their conceptual foundations. The portals EBSCO and CAPES were searched using the descriptors "mentalization" or "reflective functioning" and "instrument" and "children." Four procedures met the objectives of the study: the Manchester Child Attachment Story Task (MCAST), the Child Reflective Functioning Scale (CRFS), the Friends and Family Interview (FFI), and the Rorschach method. The results showed that the assessments in the context of attachment relationships, proposed by the MCAST, CRFS and FFI, have been more widely used, however, the Rorschach method is proposed as an alternative, since it allows assessment of mentalization from an intra-individual perspective. The challenge of measuring such a complex construct in a single procedure and a specific developmental stage was evidenced.

Keywords: Mentalization; Theory of mind; Children; Instruments.

 

 

INTRODUÇAO

A mentalizaçao se refere à habilidade humana de compreender e interpretar - implícita e explícitamente - os estados mentais subjacentes (sentimentos, pensamentos, fantasias, crenças e desejos), em si mesmo e nos outros, construindo modelos realistas de porque as pessoas se comportam, pensam e sentem da maneira que o fazem1,2. O conceito, proposto por Fonagy e colaboradores, tem suas origens na vertente psicanalítica da teoria do apego, nas contribuiçoes de alguns teóricos das relaçoes objetais, especialmente Bion e Winnicott, e integra também ideias da teoria da mente, da psicologia do desenvolvimento e da neurociência cognitiva1,3.

A mentalizaçao é considerada um conceito multidimensional que pode ser organizado em torno de quatro dimensoes: (1) implícita/explícita, (2) interna/externa, (3) eu/outro e (4) cognitiva/afetiva. A primeira dimensao diz respeito a dois modos de funcionamento, um deles implícito, inconsciente ou processual e o outro explícito e consciente, que podem ou nao estar operando simultaneamente; a segunda é relacionada a dois recursos, os internos,que dizem respeito a processos mentais interiores, de si mesmo e dos outros, e os externos, que se referem a processos mentais que dependem de características físicas e visíveis das açoes de si e dos outros (expressoes faciais, postura corporal); a terceira se refere ao fato de ser o eu ou o outro o objeto da mentalizaçao; a quarta relaciona os aspectos cognitivos e afetivos, no que diz respeito ao seu conteúdo e processo. O conteúdo da mentalizaçao (estados mentais intencionais) pode ser predominantemente cognitivo ou afetivo, ou equilibrado e integrado e o processo de mentalizaçao requer habilidades cognitivas, mas idealmente também deve ser integrado às emoçoes1,3.

De acordo com Fonagy e colegas1 uma avaliaçao da capacidade de mentalizar pode ser feita detalhando o seu perfil, isto é, o seu funcionamento global em termos de apreciar as quatro dimensoes explicitadas acima. Além disso, a capacidade de mentalizaçao nao é um traço ou uma habilidade estática e unitária, ela é mais apropriadamente vista como uma capacidade dinâmica, que é influenciada pela tensao e excitaçao de seus polos (dimensoes), particularmente no contexto de relaçoes de apego específicas1.

A mentalizaçao se desenvolve nos primeiros anos de vida da criança, num contexto de apego seguro, em que o cuidador primário confere significado aos estados mentais do bebê, diferindo-os claramente dos seus4. Esse processo permite à criança um espaço no qual ela pode explorar seu mundo interno, compreender e distinguir os estados mentais e as emoçoes que a habitam, e desenvolver uma percepçao de si e uma identidade coerentes5. O desenvolvimento da capacidade de mentalizar é essencial para a regulaçao dos afetos e o desenvolvimento de uma auto-narrativa coerente7.

O avanço teórico do conceito colocou um desafio aos pesquisadores acerca de estratégias para a sua avaliaçao empírica. A mentalizaçao começou a ser investigada, empíricamente, nas duas últimas décadas,quando Fonagy e colegas6 introduziram o conceito de funcionamento reflexivo (FR), que refere-se à operacionalizaçao dos processos psicológicos subjacentes à capacidade de mentalizar e desenvolveram um manual e uma escala para a análise e pontuaçao da mentalizaçao, a AdultReflective Functioning Scale(ARFS)6, que é aplicada à Adult Attachment Interview7. Segundo os autores, ao evidenciar a capacidade do indivíduo de considerar os seus estados internos (como pensamentos, sentimentos, crenças e desejos) e pensar sobre si mesmo e os relacionamentos íntimos, propicia-se a avaliaçao empírica da mentalizaçao6.

A partir daí, o interesse dos pesquisadores clínicos para investigar a mentalizaçao com adultos cresceu e pesquisas empíricas começaram a ser desenvolvidas. Estudos recentes evidenciaram a associaçao entre déficits na mentalizaçao e o estabelecimento de diversas desordens emocionais8, como transtornos alimentares, depressao, ansiedade e transtornos de personalidade9,10,11. Além disso, ela tem sido apontada como um elemento importante para a compreensao do processo e dos resultados das psicoterapias8. No entanto, o número de estudos com a populaçao infantil é ainda escasso e isso se deve, em grande parte, à falta de instrumentos adaptados para essa populaçao.

Um dos grandes desafios encontrado pelos pesquisadores na área está relacionado ao conceito de mentalizaçao e sua íntima relaçao com conceitos adjacentes, como a funçao reflexiva, metacogniçao, teoria da mente, leitura mental, atençao, mente psicológica, compreensao social ou emocional, habilidades sóciocognitivas e sócio-emocionais, inteligência social ou emocional, consciência afetiva e empatia3,12. Assim como a avaliaçao de cada um desses constructos fornece elementos que permitem aferir, em algum grau, a capacidade de mentalizaçao, nenhum deles possui a potencialidade de fornecer evidências sobre o constructo como um todo.

Diante do desafio inerente à avaliaçao da mentalizaçao, é importante dispor de procedimentos válidos que possam avaliar essa capacidade na infância, como um aspecto importante do desenvolvimento, assim como um possível resultado das psicoterapias com essa populaçao. Tendo isso em vista, o presente estudo teve como objetivo realizar uma revisao narrativa de estudos sobre a avaliaçao da capacidade de mentalizaçao (funcionamento reflexivo) em crianças.


MÉTODO

Foi realizado um estudo qualitativo de revisao narrativa, apropriado para discutir o estado da arte de um determinado assunto. Constituiu-se por uma análise ampla da literatura, sem estabelecer uma metodologia rigorosa e replicável em nível de reproduçao de dados e respostas quantitativas para questoes específicas, como explicitam Vosgerau e Romanowsk13. No entanto, é fundamental para a aquisiçao e atualizaçao do conhecimento sobre uma temática específica, evidenciando novas ideias, métodos e subtemas que têm recebido maior ou menor ênfase na literatura selecionada13.

A pesquisa foi realizada nos portais EBSCO e CAPES, utilizando-se os descritores "mentalization" ou "reflective functioning" e"instrument" e "children", sem delimitar um intervalo temporal. Foram incluídos estudos que tivessem como foco a avaliaçao da capacidade de mentalizaçao em crianças, no que diz respeito aos instrumentos de avaliaçao, que estivessem disponíveis na íntegra, nos idiomas português, inlgês e espanhol. Foram excluídos todos os estudos que nao abordavam a avaliaçao da capacidade de mentalizaçao (funcionamento reflexivo) em crianças ou que abordassem somente um conceito adjacente e nao a capacidade como um todo.

A busca inicial localizou 35 artigos, permanecendo 16 após a exclusao de estudos duplicados e que nao contemplavam os critérios de inclusao. As publicaçoes selecionadas foram lidas na íntegra e, posteriormente, foi realizada uma busca manual a partir de citaçoes encontradas no material analisado, incluindo mais 11 estudos entre artigos, capítulos de livros e teses que possibilitaram uma descriçao e análise mais aprofundada dos instrumentos, totalizando 25 estudos utilizados nessa revisao.


RESULTADOS

Foram encontrados quatro procedimentos que atenderam aosobjetivos do estudo: o Manchester Child Attachment Story Task (MCAST)14, a Child Reflective Functioning Scale (CRFS)15, a Friends and Family Interview (FFI)16 e o Método de Rorschach17. A seguir, serao apresentados e discutidos todos os procedimentos, no que diz respeito ao foco de cada um, faixa etária abrangida e como avalia a capacidade de mentalizaçao. Também serao apresentados dados sobre evidências de validade e fidedignidade dos instrumentos e estudos que os utilizaram para avaliar a mentalizaçao em crianças.

Manchester Child Attachment Story Task

O MCAST foi desenvolvido por Green e colegas14, na Inglaterra, com o objetivo de avaliar as representaçoes das relaçoes de apego na infância e, também, fornece elementos para avaliar a capacidade de mentalizaçao. É aplicável em crianças com idades entre quatro e oito anos e utiliza bonecos para desencadear narrativas em resposta a temas relacionados com o apego.

Primeiramente, a criança é apresentada a uma casa de brinquedo, mobiliada e com a presença de diversos bonecos. É solicitado à criança escolher um boneco para representar ela mesma e outro para representar seu cuidador. O procedimento consiste em cinco vinhetas nas quais a criança enfrenta uma situaçao de angústia específica com o cuidador próximo, mas que nao está com ela naquele momento. Para cada um dos cinco cenários de "angústia" há uma fase de induçao em que o entrevistador amplifica a intensidade da angústia, representada na figura da boneca, a um ponto em que o entrevistado fique, claramente, envolvido e empaticamente excitado pela situaçao mostrada na cena. A segunda fase consiste na dramatizaçao, pela criança, de uma conclusao da estória. Quando a criança finaliza, o examinador inicia um questionamento estruturado, visando esclarecer a intençao por trás da dramatizaçao e o grau de alívio da angústia e propoe a atribuiçao dos estados mentais para as bonecas: "Você pode me dizer como a criança/cuidador está se sentindo agora?" "Você pode me dizer o que a criança/cuidador está pensando agora?" "O que a boneca gostaria de fazer?"14.

Representaçoes de apego das crianças sao, entao, deduzidas das respostas verbais e nao verbais, através da aplicaçao de sistemas de codificaçao específicos a várias dimensoes do comportamento e conteúdo narrativo. Green e colegas14 propoem, para cada vinheta, uma classificaçao de 33 códigos, cada um recebendo uma escala que varia até nove. As classificaçoes se situam em quatro grandes grupos: 1) comportamentos relacionados ao apego; 2) coerência da narrativa; 3) fenômenos desorganizados; 4) Classificaçoes adicionais sobre conteúdo bizarro, afeto predominante, capacidade de mentalizaçao e meta-cogniçao.

A avaliaçao da capacidade de mentalizaçao ocorre quando se solicita à criança descrever sentimentos e pensamentos dos personagens, que representam ela mesma e os seus cuidadores, além da motivaçao psicológica dos personagens da estória e da meta-cogniçao, proposta pelos autores como a habilidade da criança de refletir sobre a história e o seu significado.Com relaçao às propriedades psicométricas do instrumento, dois estudos evidenciaram a sua confiabilidade e consistência interna14,18. Ambos mostraram que o instrumento possui confiabilidade entre avaliadores (em média 80%)14,18 e validade de conteúdo, suportada pela análise fatorial dos itens14.

Muitos estudos têm utilizado o MCAST para avaliar as representaçoes de apego na infância, nos mais diversos contextos (adoçao, sintomas externalizantes, entre outros)19,20,21. Eles vêm corroborando a confiabilidade do instrumento para identificar e discriminar os diferentes padroes de apego em crianças, nos contextos avaliados19,21.

Foram encontrados, apenas, dois estudos no contexto brasileiro que utilizaram o MCAST para avaliar mudanças na capacidade de mentalizaçao em crianças que sofreram maus tratos e foram tratadas com psicoterapia baseada no desenvolvimento da capacidade de mentalizaçao22,23. Os estudos revelaram que baixos níveis de mentalizaçao foram encontrados em crianças que vivenciaram a problemática citada acima e, após seis meses de psicoterapia, foram identificadas mudançasnessa capacidade e nos sintomas clínicos das crianças avaliadas. Ramires e colegas22 evidenciaram que, embora mudanças na capacidade de mentalizaçao tenham sido modestas, nos primeiros seis meses de tratamento de um menino de sete anos, houve avanços para uma maior coesao e integraçao do self, melhor articulaçao narrativa e maior reconhecimento de sentimentos associados às suas experiências. No estudo de Ramires e Godinho23, após seis meses de tratamento de duas meninas, de 10 e 12 anos de idade, foi reportado uma maior percepçao sobre o funcionamento mental, o desenvolvimento de um senso mais coerente de self, aumento da capacidade de reconhecer sentimentos e organizá-los, em relaçao a si mesmo e aos outros.

Child Reflective Functioning Scale

A CRFS, desenvolvida por Ensink15, na Inglaterra, foi adaptada da Adult Reflective Functioning Scale (ARFS)6 e desenvolvida para avaliar a cogniçao social e o funcionamento reflexivo em crianças entre oito e 11 anos, analisado a partir das narrativas produzidas sobre elas mesmas e os seus relacionamentos com as figuras de apego, em termos de estados mentais, por meio da Child Attachment Interview (CAI)24. A CAI é um protocolo com 15 perguntas que objetiva ativar o sistema de apego e produzir narrativas sobre como a criança vê a si mesmo e as suas figuras de apego e como descrevem e refletem sobre situaçoes estressantes e conflituosas que envolveram elas mesmas e os seus relacionamentos com essas figuras de apego. As respostas produzidas pelas crianças sao gravadas em vídeo e posteriormente transcritas. A CRFS consiste em uma escala de 11 pontos (-1 a 9) que descreve, em termos de habilidades, como a criança reflete sobre os próprios estados mentais e os dos outros, sendo menos um igual a narrativas que nao contêm nenhum uso de explicaçao psicológica e nove representando contos psicológicos elaborados de experiências de relacionamentos15.

A avaliaçao da capacidade de mentalizaçao é revelada quando a criança é solicitada a descrever incidentes específicos que revelam algo sobre si mesma, as suas interaçoes interpessoais e reaçoes afetivas. Nesse sentido, a mentalizaçao mais elaborada é comumente demonstrada nos esforços para explicar incidentes interpessoalmente difíceis, envolvendo conflitos ou comportamentos confusos. Essas descriçoes exigem um processo de recuperaçao de eventos e narrativas específicas e estas memórias episódicas ou autobiográficas sao esperadas para fornecer um bom indicador do conhecimento da criança de seus estados mentais e do pensamento intra e interpessoal15.

A CRFS evidenciou propriedades psicométricas robustas, excelente confiabilidade entre avaliadores, com coeficientes de correlaçao intraclasse (CCI) que variaram de 0,60-1,00, com uma média de 0,9315. A análise fatorial da escala resultou em dois fatores que indicaram que as habilidades reflexivas a respeito de si e do outro estao relacionadas, mas sao distintas, e estao ligadas a diferentes aspectos, do desenvolvimento e cognitivos, como sugerido por Fonagy e Target25. O resultado da análise propiciou a subdivisao da escala em CRFS (S) (eu) e CRFS (O) (outro). Ambas demonstraram consistência interna, com índices de Alpha de Cronbach iguais a 0,82 e 0,88, respectivamente. As análises de teste-resteste evidenciaram alta estabilidade temporal em um período de três meses e adequada para um período de 12 meses. Esses resultados confirmam que é possível medir de forma confiável a capacidade de mentalizaçao (FR) em crianças, nessa faixa etária, com a CRFS15.

Dois estudos utilizaram o procedimento para avaliar o funcionamento reflexivo de crianças, no contexto do abuso sexual, e confirmaram os dados psicométricos robustos do instrumento26,27. Ensink e colegas26 compararam a capacidade de mentalizaçao de crianças que sofreram abuso sexual intra e extrafamiliar com crianças sem exposiçao a situaçoes de abuso. As crianças abusadas sexualmente apresentaram índices significativamente mais baixos de funcionamento reflexivo global (CRF-G), como também das habilidades reflexivas em relaçao a elas mesmas (CRF-S) e aos outros (CRF-O). O estudo comparou também os índices de funcionamento reflexivo intragrupo das crianças e evidenciou que crianças com histórias de abuso intrafamiliar, quando comparadas às crianças que sofreram abuso sexual extrafamiliar, tinham capacidades de mentalizaçao significativamente mais baixas (CRF-G), com índices inferiores, também, em relaçao a elas (CRF-S) e aos outros (CRF-O), sugerindo que o abuso intrafamiliar tem um impacto mais severo sobre a capacidade das crianças de pensarem sobre elas mesmas e em relaçao aos outros, em termos de estados mentais, do que o abuso extrafamiliar.

Esses resultados foram parcialmente confirmados pelo estudo longitudinal de Tessier e colegas27, que examinou se a capacidade das crianças de se envolver em brincadeiras de faz de conta, simbolizar e fazer narrativas de jogo estava associada a um posterior funcionamento reflexivo. 39 crianças sexualmente abusadas e 21 crianças nao-abusadas (de 3 a 8 anos) participaram do estudo. Os resultados mostraram que a capacidade das crianças de elaborar e concluir narrativas de jogo previu habilidades mentalizadoras posteriores. No entanto, o brincar previu o desenvolvimento da mentalizaçao em relaçao aos outros, mas nao em relaçao a si mesmo. Como explicaçao, os autores afirmam que é possível que a mentalizaçao em relaçao a si mesmo esteja mais relacionada ao interesse do cuidador primário na subjetividade da criança.

Friends and Family Interview

A FFI, desenvolvida por Steele e Steele16, nos Estados Unidos, é uma entrevista semiestruturada, adaptada da Adult Attachment Interview (AAI)28, para crianças e adolescentes entre 9 e 16 anos, que possibilita avaliar narrativas sobre as representaçoes de apego e sobre o funcionamento reflexivo. Ao longo da entrevista, a criança/adolescente é convidada a refletir, primeiramente sobre ela mesma e, posteriormente, sobre seus relacionamentos próximos, com pais, amigos, professores, no que diz respeito a como ela se sente nas diversas situaçoes apresentadas, quais sao as maiores e piores qualidades dela e das pessoas com as quais convive, o que ela pensa que as pessoas pensam a respeito dela, como ela pensa que seu relacionamento com seus cuidadores era e/ou pode ter mudado nos últimos cinco anos e como imagina que será dali a cinco anos. A criança também é convidada a refletir sobre situaçoes conflituosas sobre si mesma e sua relaçao com cuidadores, pares e professores16,29.

O sistema de codificaçao da FFI engloba três constructos principais em sua análise, a coerência narrativa, os modelos de funcionamento interno e o funcionamento reflexivo, sendo a coerência narrativa o conceito central trabalhado pelo instrumento, pois é o marcador central das representaçoes de apego seguras e organizadas. A partir dela é possível avaliar, também, o funcionamento reflexivo. Além disso, o funcionamento reflexivo é operacionalizado em três subdomínios: a perspectiva desenvolvimental, a teoria da mente e a diversidade de sentimentos29.

A perspectiva desenvolvimental evidencia a capacidade da criança de refletir sobre os seus estados mentais e os das suas relaçoes interpessoais, de maneira retrospectiva. Nesta faixa de desenvolvimento, entende-se que as crianças já tenham condiçoes psíquicas de pensar sobre si e sobre seus relacionamentos de modo retrospectivo. Dessa forma, é avaliada a capacidade de perceber se algo mudou nos relacionamentos, com o passar do tempo, ou se nada mudou, mas há a compreensao de que poderia ter mudado. A teoria da mente salienta a capacidade de assumir a perspectiva mental ou emocional de outra pessoa. A diversidade de sentimentos compreende a capacidade da criança de mostrar uma compreensao de diversos sentimentos (positivos e negativos) que estao presentes nos relacionamentos significativos. Essas dimensoes sao marcadas para cada relacionamento investigado durante a entrevista, incluindo cuidadores, irmaos, colegas, professores e a própria criança30.

A FFI possui, também, uma classificaçao para o código nao-verbal sobre o medo/angústia, frustraçao/raiva e apego. A entrevista é classificada em quatro níveis (1 = sem evidência; 2 = evidência leve; 3 = evidência moderada e 4 = evidência acentuada) de acordo com as diretrizes de codificaçao dos autores29.

Evidências de validaçao do instrumento foram investigadas e apresentaram altos índices de concordância entre avaliadores (Kappa = 0.94)31. Além disso, Stievenart e colegas32 pesquisaram se o procedimento avalia o constructo de coerência da mesma maneira em diferentes contextos, nos países Bélgica e Romênia. Os resultados evidenciaram a validade do constructo, independente do contexto, sem diferenças entre os dois países. Os autores salientaram a necessidade, ainda, de confirmar a validade externa do instrumento, comparando-o com outros instrumentos que se propoem a analisar os mesmos constructos.

Alguns estudos utilizaram a FFI para avaliar as representaçoes de apego no contexto de adoçao31,33,34. Todos evidenciaram que a FFI foi sensível para distinguir os padroes de apego nas amostras pesquisadas. No entanto, é necessário que futuros estudos possam utilizá-la para avaliar o funcionamento reflexivo e fornecer evidências empíricas da validade do instrumento31.

Método de Rorschach

O Método de Rorschach foi elaborado pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach e publicado pela primeira vez em 1921. Possibilita uma análise da personalidade dos indivíduos em termos estruturais e dinâmicos e é aplicável em crianças a partir dos cinco anos de idade35. O procedimento favorece a manifestaçao dos conteúdos mais primitivos do examinando, revelando nao apenas características de personalidade conscientes e observáveis, no comportamento, mas também as mais reprimidas e inconscientes36. Dentre os diversos sistemas para análise e interpretaçao do Rorschach, a proposta de Exner17 tem sido utilizada tanto no âmbito da clínica como no da pesquisa, com reconhecimento internacional. O instrumento está validado para o contexto brasileiro e conta com dados normativos para a avaliaçao de crianças37.

A natureza da prova de Rorschach pelo Sistema Compreensivo é, ao mesmo tempo, subjetiva e objetiva. A subjetividade pode ser descrita através do estímulo à fantasia que as manchas provocam, resultando em projeçoes. A objetividade se dá a partir dos elementos de estrutura, os quais fornecem dados sobre a organizaçao psicológica de forma global e integrada. Assim, também, envolve processos de atençao, percepçao, tomada de decisao e análise lógica17.

A codificaçao do procedimento permite a divisao dos resultados em sete clusters: 1) Processamento da Informaçao; 2) Mediaçao Cognitiva; 3) Ideaçao; 4) Auto-percepçao; 5) Relacionamentos Interpessoais; 6) Afeto; 7) Controle e Tolerância ao Estresse. Com essa proposta, o Método de Rorschach alcança uma avaliaçao perceptual e cognitiva por meio de muitas reaçoes imaginativas, o que permite um amplo acesso aos aspectos do funcionamento da criança. Além disso, o instrumento abrange a questao desenvolvimental dessa populaçao, ao codificar as respostas e compará-las às médias normativas para cada idade17.

O Método de Rorschach vem sendo apontado como um instrumento capacitado para pesquisar e avaliar clinicamente uma série de processos psicológicos que envolvem a mentalizaçao38,39. Conklin e colegas38 propoem algumas variáveis para avaliar o constructo da mentalizaçao: (T), no que se refere à capacidade de um indivíduo para estabelecer vínculos de apego com outras pessoas; respostas de movimento humano (M e M-) que estao relacionadas com a capacidade empática; e a qualidade da resposta humana (GHR vs. PHR), referindo-se à relaçao com a precisao das percepçoes sobre as pessoas.

Algumas pesquisas empíricas confirmaram a relaçao das variáveis de movimento humano (M) e a qualidade das respostas humanas (GHR e PHR) com a mentalizaçao. Duas pesquisas, na área de neurociências, evidenciaram relaçao entre a variável M, a empatia e a mentalizaçao, sugerindo que respostas de movimento humano (M) no Rorschach podem ativar regioes do cérebro associadas à cogniçao social, incluindo a empatia40,41. Outro estudo evidenciou que meninos, com idades entre 7 e 18 anos, diagnosticados com transtorno de Asperger produziram menos respostas de movimento humano no Rorschach, comparados com meninos com problemas comportamentais e emocionais nao relacionados com o transtorno invasivo do desenvolvimento. Embora a proposta nao tenha sido avaliar empatia e mentalizaçao diretamente, o transtorno de Asperger tem sido associado com déficits em ambas as capacidades42.

As possíveis contribuiçoes das respostas GHR e PHR à compreensao da capacidade de mentalizaçao sao sugeridas por uma série de estudos empíricos de grupos suscetíveis de terem déficits no funcionamento reflexivo. Zodan e colegas43 afirmaram que respostas PHR medem o número de percepçoes negativas que um indivíduo tem em relaçao à interaçao com os outros. Foi encontrada uma diferença significativa no número de contagens PHR para pacientes com diagnóstico de Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) em comparaçao a um grupo de pacientes sem transtorno de personalidade, mas com transtornos do Eixo I do DSM44. Eles ligaram a esta variável a afirmaçao de Westen45 de que as pessoas com diagnóstico de TPB tendem a fazer atribuiçoes altamente idiossincráticas, ilógicas e imprecisas de intençoes das pessoas.

Acklin e Bernat46 avaliaram, com o Método de Rorschach, pacientes com alexitmia e propuseram que sete variáveis do Rorschach estariam relacionadas a esse funcionamento. As variáveis foram divididas em quatro grupos que diziam respeito à (a) fantasia: produçao reduzida, exibida por poucas respostas (R) e poucas respostas de movimento humano (M); (b) afeto: restriçao de respostas emocionais, evidenciada por uma baixa soma de respostas de cor (Soma C) e pobre integraçao de afetos, demonstrada por um pequeno número de respostas FC; (c) percepçao e cogniçao: uma tendência para a cogniçao concreta, como demonstrado por um pequeno número de respostas multideterminantes (Blends) e estereotipia perceptiva evidenciada por uma Lambda elevado; e (d) recursos adaptativos, como demonstrado por uma EA baixa. Embora a proposta do estudo nao tenha sido avaliar a capacidade de mentalizaçao, é sabido que o transtorno de alexitimia está associado com déficits importantes nessa capacidade47.

A fidedignidade do instrumento por meio de teste-reteste foi evidenciada48. Os resultados referentes a algumas variáveis do Sumário Estrutural apresentaram coeficientes de estabilidade superiores a 0,80 e outras correlaçoes superiores a 0,70 no reteste. Estudos brasileiros desenvolvidos com a finalidade de verificar a validade e precisao entre avaliadores encontraram que a maioria das variáveis apresentou valores de Kappa entre 0,70 e 0,90, o que indica precisao substancial ou excelente49,50.

Todos os estudos citados acima evidenciaram a possibilidade do Método de Rorschach ser um procedimento sensível para avaliar a capacidade de mentalizaçao e buscaram demonstrar possíveis variáveis que se relacionam ao constructo. No entanto, há a necessidade de estudos empíricos que se proponham a testar essas hipóteses e, com isso, confirmar a potencialidade do instrumento para essa finalidade.


DISCUSSAO

O presente artigo ressaltou a importância da avaliaçao da capacidade de mentalizaçao na infância, por tratar-se de uma aquisiçao desenvolvimental fundamental para a organizaçao do self, a regulaçao emocional e para a qualidade das relaçoes interpessoais. Deste modo, é importante contar com procedimentos que avaliem e contribuam com a identificaçao de possíveis déficits nessa capacidade, em suas diferentes dimensoes e, também, possibilitem a elaboraçao de estratégias de intervençao que busquem desenvolver e/ou fortalecer essa habilidade. Assim sendo, a revisao de instrumentos apresentada teve como objetivo evidenciar e discutir as bases conceituais dos principais procedimentos disponíveis, atualmente, para avaliar a mentalizaçao na infância.

Os resultados confirmaram que as avaliaçoes no contexto das relaçoes de apego têm sido mais utilizadas, na medida em que refletir sobre possíveis dificuldades nas relaçoes interpessoais exige que a criança utilize níveis mais elaborados da capacidade de mentalizar1. Três dos quatro instrumentos encontrados propoem a avaliaçao dessa perspectiva, o MCAST, a CRFS e a FFI.

Pelo fato de abranger crianças menores e focar na dramatizaçao de estórias, no aqui e agora, com as figuras de apego, é possível afirmar que o MCAST acesse os estados mentais internos em seus aspectos mais afetivos, pois a mentalizaçao do afeto desenvolve-se mais cedo. A criança primeiro compreende que as pessoas têm sentimentos diferentes e, somente com o amadurecimento das suas capacidades cognitivas, ela compreende que podem ter pensamentos diferentes sobre a mesma realidade externa25.

A CRFS e a FFI abrangem uma faixa etária de crianças mais velhas e propoem um sistema de classificaçao para analisar o funcionamento reflexivo a partir das narrativas das crianças sobre os seus relacionamentos com as figuras de apego e, também, melhores amigos e o professor preferido (FFI), nos dias atuais e de modo retrospectivo. Desse modo, ambos procedimentos possibilitam avaliar níveis mais sofisticados da habilidade de mentalizar e permitem uma apreciaçao mais plausível, flexível e complexa da reflexao sobre os estados mentais, pois ao final da infância espera-se que as capacidades cognitivas das crianças já estejam mais desenvolvidas12.

O Método de Rorschach também avalia crianças menores, assim como o MCAST, e permite a avaliaçao da mentalizaçao de uma perspectiva intra-individual. Desse modo, ele vem sendo proposto como uma alternativa às avaliaçoes no contexto das relaçoes de apego. Pelas suas características, é possível que alcance níveis mais implícitos e inconscientes do processo da mentalizaçao, que nao sao acessados totalmente pelos procedimentos que focalizam as narrativas conscientes. Além disso, é o único instrumento, entre os discutidos aqui, validado para a populaçao brasileira e, ao propor um padrao normativo para cada ano do desenvolvimento infantil, possibilita levar em consideraçao o aspecto desenvolvimental na infância, o que nao é abrangido por nenhum dos outros três instrumentos abordados nessa revisao. No entanto, apesar dos esforços teóricos para evidenciá-lo como um instrumento capaz de avaliar o constructo, sao necessárias pesquisas empíricas que comprovem a sua utilizaçao para essa finalidade.

Ficou evidente a escassez de instrumentos disponíveis, principalmente para a faixa etária pré-escolar, abrangida pelo MCAST e pelo Rorschach. Tendo em vista que nessa faixa etária as capacidades cognitivas e linguísticas estao em desenvolvimento, avaliaçoes no contexto do brincar podem ser um método promissor para acessar a mentalizaçao. De acordo com Tessier e colegas27, o brincar é um importante precursor do funcionamento reflexivo. Além disso, o desenvolvimento de procedimentos e pesquisas empíricas que avaliem a mentalizaçao de uma perspectiva intra-individual também pode fornecer informaçoes interessantes ao serem comparadas às pesquisas que vêm sendo realizadas no contexto relacional e da cogniçao social12.


CONSIDERAÇOES FINAIS

O presente estudo buscou apontar a relevância da avaliaçao da capacidade de mentalizaçao na infância e os instrumentos desenvolvidos com esse propósito. Foi evidenciado o desafio de mensurar um constructo tao complexo em um único procedimento e em um período de desenvolvimento específico. Além disso, o crescimento da habilidade de mentalizar pode ter trajetórias diferentes e únicas para cada criança, na medida em que vao complexificando o seu mundo social.

Os instrumentos identificados nesta revisao demonstraram-se válidos para avaliar a capacidade de mentalizaçao ao longo do desenvolvimento infantil, assim como identificar possíveis déficits nessa habilidade, principalmente em seus componentes implícitos, explícitos, cognitivos, afetivos, orientados para o self e orientados para o outro. No entanto, embora tenha havido um crescimento teórico considerável com relaçao ao conceito da mentalizaçao e à sua intersecçao com os campos da psicopatologia, psicoterapia, psicologia do desenvolvimento e na área da pesquisa neurocientífica, um obstáculo para o crescimento de investigaçoes empíricas reside na dificuldade de avaliá-la. Nesse contexto, salienta-se a importância de contínuos esforços para a construçao e adaptaçao de procedimentos capazes de avaliar o constructo, em todas as suas dimensoes e que estes sejam, também, desenvolvidos e/ou adaptados para a realidade brasileira.


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a Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, Programa de Pós-Graduaçao em Psicologia - Sao Leopoldo - Rio Grande do Sul - Brasil
b Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, Programa de Pós-Graduaçao em Psicologia - Sao Leopoldo - Rio Grande do Sul - Brasil

Correspondência
Cibele Carvalho
Rua Bento Gonçalves, 1016, sala 807
95900-000 Lajeado, RS, Brasil

Submetido em: 20/08/2018
Aceito em: 02/10/2018

Instituiçao: Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS

Contribuiçoes: Cibele Carvalho - Aquisiçao de financiamento, Coleta de Dados, Conceitualizaçao, Gerenciamento do Projeto, Investigaçao, Metodologia, Redaçao - Preparaçao do original, Redaçao - Revisao e Ediçao, Visualizaçao;
Vera Regina Röhnelt Ramires - Conceitualizaçao, Gerenciamento do Projeto, Metodologia, Redaçao - Revisao e Ediçao, Supervisao

 

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