Rev. bras. psicoter. 2018; 20(2):65-83
Bonini AF, Alckmin-Carvalho F, Rafihi-Ferreira RE, Melo MHS. Evoluçao dos critérios para o diagnóstico de Bulimia Nervosa: revisao sistemática. Rev. bras. psicoter. 2018;20(2):65-83
Artigo de Revisao
Evoluçao dos critérios para o diagnóstico de Bulimia Nervosa: revisao sistemática
Evolution of the diagnostic criteria of Bulimia Nervosa: systematic review
Ana Flavia Boninia; Felipe Alckmin-Carvalhob; Renatha El Rafihi-Ferreirac; Márcia Helena da Silva Melod
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A Bulimia Nervosa (BN), como descrita atualmente pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais1, em sua quinta ediçao (DSM-5), é um transtorno alimentar (TA) grave, que traz prejuízos significativos ao funcionamento psicológico, social e à saúde física2, estando associado a altas taxas de complicaçoes médicas, e comprometimento psicossocial3,4,5,6,7.. Caracteriza-se por episódios recorrentes de compulsao alimentar acompanhados de comportamentos compensatórios para impedir o ganho de peso, como induçao de vômito, novo período de jejum, utilizaçao de laxantes, diuréticos e/ou prática extensiva de exercício físico.
A compulsao alimentar é definida por ingestao de uma enorme quantidade de alimentos, geralmente calóricos, em um curto período de tempo, e está associada à sensaçao de perda de controle e aos sentimentos de culpa e vergonha1. A utilizaçao de método compensatório, por sua vez, é motivada pelo medo de ganhar peso.
O engajamento em dietas restritivas é o antecedente mais comum dos episódios de compulsao alimentar, e costuma estar associado à insatisfaçao corporal e/ou distorçao de imagem corporal. É comum, entre pacientes com BN, a supervalorizaçao do corpo, em detrimento de outras características, bem como a auto-objetificaçao e alta sensibilidade a reforço social associado à aparência física, determinaçao e autocontrole8. Esse desejo latente de aprovaçao social, por sua vez, geralmente tem relaçao com baixa auto-estima8.
A prevalência da BN ao longo da vida é de 0,9% a 3%, e em 12 meses de 0,4%9,10,11. Nos Estados Unidos, estima-se que a prevalência de BN durante a vida entre as mulheres é de 1,5%, e entre os homens de 0,5%, sendo a proporçao entre homens e mulheres de 1:36. No Brasil, os estudos epidemiológicos ainda sao incipientes, indicando prevalência de BN entre 1% a 3,6%12,13,14. De acordo com o DSM-5, a prevalência da BN é maior entre os adultos, uma vez que este TA atinge seu pico no fim da adolescência. Estima-se que a idade de início da BN é entre os 16-17 anos9,10.
O tratamento é realizado por equipe interdisciplinar mínima composta de psiquiatra, psicólogo e nutricionista15,16. Ensaios clínicos têm demonstrado taxa de remissao total modesta e altos índices de recaídas, sendo que o diagnóstico e tratamento precoces estao associados a melhores taxas de sucesso no tratamento e menores índices de recaída, ao longo da vida17.
A descriçao da BN foi iniciada a partir dos estudos do psiquiatra britânico Gerald Russel, em Londres, no ano de 1979, que descreveu 30 pacientes atendidos em sua clínica entre 1972 e 1978 que apresentavam medo mórbido de engordar e que, na tentativa de controlar o peso apresentavam comportamentos compensatórios, tais como vômitos autoinduzidos, uso de medicamentos (laxantes, diuréticos, anfetaminas) ou se engajavam em períodos prolongados de jejum18. O autor diferenciou esse grupo de pacientes dos casos clássicos de Anorexia Nervosa (AN) por apresentarem peso normal, levemente acima ou abaixo do esperado, menor irregularidade no ciclo menstrual, maior atividade sexual e por apresentarem sintomas de depressao e comportamentos impulsivos18. Como muitos desses pacientes apresentaram AN no passado, Russel considerou, em um primeiro momento, que a BN fosse um estágio posterior à AN, e nao um TA distinto.
Após a descriçao da BN por Russel, em 1980, esse TA foi incluído na terceira ediçao do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM III). Essa versao do manual teve um importante papel no reconhecimento da síndrome por clínicos e impulsionou pesquisas sobre a doença. Após a descriçao do DSM-III ocorreram vários debates sobre os TA que levaram à revisao dos critérios diagnósticos anunciados no DSM-III-R, em 1987, momento em que o termo "bulimia nervosa" foi aceito como nome próprio. Ainda nesse contexto, após anos de estudos sobre a apresentaçao clínica e curso da BN, Russell modificou sua afirmaçao ao apontar que pacientes bulímicos, comparados aos pacientes com AN, tinham um melhor prognóstico em longo prazo18.
Castillo e Weiselberg15 salientam a importância do reconhecimento da BN como transtorno próprio, uma vez que indivíduos com esse diagnóstico apresentam risco significativo para morbidade e mortalidade devido aos comportamentos compensatórios utilizados para evitar o ganho de peso e às comorbidades psiquiátricas associadas. Esse aspecto merece notável atençao dos profissionais de saúde, pois, diferentemente da AN, que apresenta características visíveis e detectáveis como amenorreia e excessiva perda de peso, a BN pode passar despercebida por profissionais e familiares, uma vez que o peso dos indivíduos com BN pode ser normal ou acima do normal.
Historicamente, as manifestaçoes clínicas, as implicaçoes psicossociais e as modalidades de tratamento da BN estiveram desprivilegiadas em relaçao à AN, quadro psicopatológico que tem recebido maior atençao e tem sido foco de mais estudos e pesquisas visando sua compreensao, caracterizaçao e tratamento. Nesse sentido, avaliar as atualizaçoes dos critérios diagnósticos de BN contribui para seu reconhecimento por clínicos e traz visibilidade para uma condiçao clínica grave que tem sido subdiagnosticada, sobretudo nos casos em que pacientes procuram o profissional de saúde a partir de queixas difusas.
A identificaçao e o tratamento precoces da BN estao associados a prognósticos mais favoráveis, e, nesse sentido, é importante que profissionais da área da saúde tenham familiaridade com os critérios diagnósticos desse TA e suas atualizaçoes periódicas. Além disso, uma vez que o tratamento de BN é interdisciplinar, envolvendo psiquiatras, psicólogos, nutricionistase enfermeiros, a utilizaçao do DSM é amplamente facilitadora do processo diagnóstico, bem como da comunicaçao desses profissionais em unidades ambulatoriais e de internaçao.
A partir de constataçoes clínicas e provenientes de pesquisas empíricas baseadas em evidências, o DSM passa periodicamente por reformulaçoes. Apesar da importância do manual para a conduta profissional, pouco foi explorado sobre a evoluçao de suas características em relaçao à BN. O objetivo do presente estudo é apresentar a evoluçao dos critérios diagnósticos de BN e as evidências científicas que sustentam as atualizaçoes. Este estudo, além de utilidade no âmbito da pesquisa, pode servir de material para psicólogos clínicos, psiquiatras e outros profissionais em formaçao que compoem a equipe interdisciplinar que trata de TA.
MÉTODO
Foram consultadas as versoes III, III-R, IV, IV-TR e 5 do DSM para a análise dos critérios diagnósticos de BN. As atualizaçoes identificadas foram discutidas a partir de artigos selecionados em revisao sistemática da literatura. A revisao foi conduzida de acordo com os itens indicados para Revisoes Sistemáticas e Metanálises (PRISMA20). A pesquisa foi realizada em dois bancos de dados: PubMed e Scopus. As palavras-chaves utilizadas foram: "bulimia nervosa" e"diagnostic criteria". Apenas estudos revisados por pares publicados entre 1980 e 2017 em língua inglesa foram incluídos. Os estudos foram selecionados a partir dos critérios de exclusao (listados abaixo).
CRITÉRIO DE INCLUSAO E EXCLUSAO
Os critérios de inclusao para seleçao dos artigos foram: 1) estudos entre os anos de 1980 (ano de publicaçao do DSM III, em que foi adicionada a definiçao de BN) e2017 (ano da presente pesquisa bibliográfica); 2) estudos empíricos, de revisao ou teóricos que discutem ou comparam as mudanças/evoluçoes nos critérios diagnósticos da BN; 3) estudos de revisao ou teóricos que apresentam evidências que justifiquem a necessidade de mudanças nos critérios diagnósticos da BN.
Foram adotados os seguintes critérios de exclusao:1) estudos que nao mencionam a modificaçao/ evoluçao dos critérios diagnósticos para BN; 2) estudos publicados em outras línguas, que nao inglês; 3) dissertaçoes, teses, livros e capítulos de livro e 4) estudos com acesso nao disponível para a Universidade onde foi realizada a pesquisa.
ACORDO DE CODIFICAÇAO
A busca foi realizada por dois pesquisadores, de modo independente, a partir do mesmo procedimento, a fim de comparar os resultados obtidos por cada um, em julho de 2017. Em caso de discordância, um terceiro pesquisador arbitrou sobre a pertinência da inclusao do estudo. Um dos autores codificou todos os artigos incluídos, e o outro autor recodificou em acordo de 33,3% (6 de 18) destes artigos. Por meio desse processo, os autores asseguraram que todos os dados extraídos fossem reportados e registrados corretamente. A concordância entre os dois autores foi de 100%. Desacordos sobre os artigos restantes foram revisados por todos os autores e posteriormente solucionados.
ANALISE DE DADOS
Os estudos foram resumidos e analisados qualitativamente. Informaçoes extraídas de cada estudo incluíram: autores, ano de publicaçao e país, desenho do estudo, amostra, objetivos, principais resultados e implicaçoes da pesquisa para os critérios diagnósticos de BN.
RESULTADOS
Foram identificados 257 estudos, dos quais 18 foram selecionados para a revisao. A Figura 1 apresenta o fluxograma de extraçao dos artigos e os motivos de exclusao.
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