ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2018; 20(2):65-83



Artigo de Revisao

Evoluçao dos critérios para o diagnóstico de Bulimia Nervosa: revisao sistemática

Evolution of the diagnostic criteria of Bulimia Nervosa: systematic review

Ana Flavia Boninia; Felipe Alckmin-Carvalhob; Renatha El Rafihi-Ferreirac; Márcia Helena da Silva Melod

Resumo

OBJETIVO: apresentar a evoluçao dos critérios diagnósticos de Bulimia Nervosa (BN) e discutir sobre as evidências que sustentam as atualizaçoes.
MÉTODO: foram analisados os critérios diagnósticos de BN apresentados no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), terceira, quarta e quinta ediçao. As atualizaçoes identificadas foram discutidas a partir de artigos selecionados por meio de uma revisao sistemática da literatura de artigos publicados entre 1980 e 2017, conduzida de acordo com as diretrizes do PRISMA. A revisao da literatura foi realizada por dois pesquisadores independentes nas bases de dados PubMed e Scopus, a partir dos descritores em combinaçao: bulimia nervosa e diagnóstico, em inglês.
RESULTADOS: foram encontrados 257 artigos, dos quais 18 satisfizeram os critérios de inclusao. As principais alteraçoes verificadas foram: inclusao de estágios de remissao, do nível de gravidade; retirada dos subtipos restritivos e purgativos de BN; reduçao na frequência média mínima de compulsao alimentar e de comportamento compensatório inapropriado, além de alteraçoes terminológicas menores.
CONCLUSAO: as alteraçoes verificadas no DSM-5 foram eficazes em reduzir a alta proporçao do diagnóstico de Transtorno Alimentar Nao Especificado (TANE). Revisoes periódicas do DSM, a partir de achados de clínicos e de pesquisadores favorecem avaliaçoes mais precisas e o delineamento de intervençoes mais efetivas no tratamento de BN.

Descritores: Transtornos Alimentares; Bulimia Nervosa; Diagnóstico.

Abstract

OBJECTIVE: to present the evolution of the diagnostic criteria of Bulimia Nervosa (BN) and to discuss the evidences that support the updates.
METHOD: The diagnostic criteria of BN presented in the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), third, fourth and fifth editions were analyzed. The updates were discussed from selected articles through a systematic review of articles published between 1980 and 2017, conducted according to PRISMA guidelines. The review of the literature was carried out by two independent researchers at PubMed and Scopus databases, using the descriptors in combination: bulimia nervosa and diagnosis.
RESULTS: 257 articles were found, of which 18 met the inclusion criteria. The main changes were: inclusion of remission stages, level of severity; removal of restrictive and purgative BN subtypes; reduction in the minimum average frequency of binge eating and inappropriate compensatory behavior, as well as minor terminological changes.
CONCLUSION: The changes observed in DSM-5 were effective in reducing the high proportion of the diagnosis of Eating disorder not otherwise specified (EDNOS). Periodic reviews of the DSM, from findings of clinicians and researchers favor more accurate evaluations and the design of more effective interventions in the treatment of BN.

Keywords: Eating disorders; Bulimia Nervosa; Diagnosis.

 

 

INTRODUÇAO

A Bulimia Nervosa (BN), como descrita atualmente pelo Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais1, em sua quinta ediçao (DSM-5), é um transtorno alimentar (TA) grave, que traz prejuízos significativos ao funcionamento psicológico, social e à saúde física2, estando associado a altas taxas de complicaçoes médicas, e comprometimento psicossocial3,4,5,6,7.. Caracteriza-se por episódios recorrentes de compulsao alimentar acompanhados de comportamentos compensatórios para impedir o ganho de peso, como induçao de vômito, novo período de jejum, utilizaçao de laxantes, diuréticos e/ou prática extensiva de exercício físico.

A compulsao alimentar é definida por ingestao de uma enorme quantidade de alimentos, geralmente calóricos, em um curto período de tempo, e está associada à sensaçao de perda de controle e aos sentimentos de culpa e vergonha1. A utilizaçao de método compensatório, por sua vez, é motivada pelo medo de ganhar peso.

O engajamento em dietas restritivas é o antecedente mais comum dos episódios de compulsao alimentar, e costuma estar associado à insatisfaçao corporal e/ou distorçao de imagem corporal. É comum, entre pacientes com BN, a supervalorizaçao do corpo, em detrimento de outras características, bem como a auto-objetificaçao e alta sensibilidade a reforço social associado à aparência física, determinaçao e autocontrole8. Esse desejo latente de aprovaçao social, por sua vez, geralmente tem relaçao com baixa auto-estima8.

A prevalência da BN ao longo da vida é de 0,9% a 3%, e em 12 meses de 0,4%9,10,11. Nos Estados Unidos, estima-se que a prevalência de BN durante a vida entre as mulheres é de 1,5%, e entre os homens de 0,5%, sendo a proporçao entre homens e mulheres de 1:36. No Brasil, os estudos epidemiológicos ainda sao incipientes, indicando prevalência de BN entre 1% a 3,6%12,13,14. De acordo com o DSM-5, a prevalência da BN é maior entre os adultos, uma vez que este TA atinge seu pico no fim da adolescência. Estima-se que a idade de início da BN é entre os 16-17 anos9,10.

O tratamento é realizado por equipe interdisciplinar mínima composta de psiquiatra, psicólogo e nutricionista15,16. Ensaios clínicos têm demonstrado taxa de remissao total modesta e altos índices de recaídas, sendo que o diagnóstico e tratamento precoces estao associados a melhores taxas de sucesso no tratamento e menores índices de recaída, ao longo da vida17.

A descriçao da BN foi iniciada a partir dos estudos do psiquiatra britânico Gerald Russel, em Londres, no ano de 1979, que descreveu 30 pacientes atendidos em sua clínica entre 1972 e 1978 que apresentavam medo mórbido de engordar e que, na tentativa de controlar o peso apresentavam comportamentos compensatórios, tais como vômitos autoinduzidos, uso de medicamentos (laxantes, diuréticos, anfetaminas) ou se engajavam em períodos prolongados de jejum18. O autor diferenciou esse grupo de pacientes dos casos clássicos de Anorexia Nervosa (AN) por apresentarem peso normal, levemente acima ou abaixo do esperado, menor irregularidade no ciclo menstrual, maior atividade sexual e por apresentarem sintomas de depressao e comportamentos impulsivos18. Como muitos desses pacientes apresentaram AN no passado, Russel considerou, em um primeiro momento, que a BN fosse um estágio posterior à AN, e nao um TA distinto.

Após a descriçao da BN por Russel, em 1980, esse TA foi incluído na terceira ediçao do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM III). Essa versao do manual teve um importante papel no reconhecimento da síndrome por clínicos e impulsionou pesquisas sobre a doença. Após a descriçao do DSM-III ocorreram vários debates sobre os TA que levaram à revisao dos critérios diagnósticos anunciados no DSM-III-R, em 1987, momento em que o termo "bulimia nervosa" foi aceito como nome próprio. Ainda nesse contexto, após anos de estudos sobre a apresentaçao clínica e curso da BN, Russell modificou sua afirmaçao ao apontar que pacientes bulímicos, comparados aos pacientes com AN, tinham um melhor prognóstico em longo prazo18.

Castillo e Weiselberg15 salientam a importância do reconhecimento da BN como transtorno próprio, uma vez que indivíduos com esse diagnóstico apresentam risco significativo para morbidade e mortalidade devido aos comportamentos compensatórios utilizados para evitar o ganho de peso e às comorbidades psiquiátricas associadas. Esse aspecto merece notável atençao dos profissionais de saúde, pois, diferentemente da AN, que apresenta características visíveis e detectáveis como amenorreia e excessiva perda de peso, a BN pode passar despercebida por profissionais e familiares, uma vez que o peso dos indivíduos com BN pode ser normal ou acima do normal.

Historicamente, as manifestaçoes clínicas, as implicaçoes psicossociais e as modalidades de tratamento da BN estiveram desprivilegiadas em relaçao à AN, quadro psicopatológico que tem recebido maior atençao e tem sido foco de mais estudos e pesquisas visando sua compreensao, caracterizaçao e tratamento. Nesse sentido, avaliar as atualizaçoes dos critérios diagnósticos de BN contribui para seu reconhecimento por clínicos e traz visibilidade para uma condiçao clínica grave que tem sido subdiagnosticada, sobretudo nos casos em que pacientes procuram o profissional de saúde a partir de queixas difusas.

A identificaçao e o tratamento precoces da BN estao associados a prognósticos mais favoráveis, e, nesse sentido, é importante que profissionais da área da saúde tenham familiaridade com os critérios diagnósticos desse TA e suas atualizaçoes periódicas. Além disso, uma vez que o tratamento de BN é interdisciplinar, envolvendo psiquiatras, psicólogos, nutricionistase enfermeiros, a utilizaçao do DSM é amplamente facilitadora do processo diagnóstico, bem como da comunicaçao desses profissionais em unidades ambulatoriais e de internaçao.

A partir de constataçoes clínicas e provenientes de pesquisas empíricas baseadas em evidências, o DSM passa periodicamente por reformulaçoes. Apesar da importância do manual para a conduta profissional, pouco foi explorado sobre a evoluçao de suas características em relaçao à BN. O objetivo do presente estudo é apresentar a evoluçao dos critérios diagnósticos de BN e as evidências científicas que sustentam as atualizaçoes. Este estudo, além de utilidade no âmbito da pesquisa, pode servir de material para psicólogos clínicos, psiquiatras e outros profissionais em formaçao que compoem a equipe interdisciplinar que trata de TA.


MÉTODO

Foram consultadas as versoes III, III-R, IV, IV-TR e 5 do DSM para a análise dos critérios diagnósticos de BN. As atualizaçoes identificadas foram discutidas a partir de artigos selecionados em revisao sistemática da literatura. A revisao foi conduzida de acordo com os itens indicados para Revisoes Sistemáticas e Metanálises (PRISMA20). A pesquisa foi realizada em dois bancos de dados: PubMed e Scopus. As palavras-chaves utilizadas foram: "bulimia nervosa" e"diagnostic criteria". Apenas estudos revisados por pares publicados entre 1980 e 2017 em língua inglesa foram incluídos. Os estudos foram selecionados a partir dos critérios de exclusao (listados abaixo).


CRITÉRIO DE INCLUSAO E EXCLUSAO

Os critérios de inclusao para seleçao dos artigos foram: 1) estudos entre os anos de 1980 (ano de publicaçao do DSM III, em que foi adicionada a definiçao de BN) e2017 (ano da presente pesquisa bibliográfica); 2) estudos empíricos, de revisao ou teóricos que discutem ou comparam as mudanças/evoluçoes nos critérios diagnósticos da BN; 3) estudos de revisao ou teóricos que apresentam evidências que justifiquem a necessidade de mudanças nos critérios diagnósticos da BN.

Foram adotados os seguintes critérios de exclusao:1) estudos que nao mencionam a modificaçao/ evoluçao dos critérios diagnósticos para BN; 2) estudos publicados em outras línguas, que nao inglês; 3) dissertaçoes, teses, livros e capítulos de livro e 4) estudos com acesso nao disponível para a Universidade onde foi realizada a pesquisa.


ACORDO DE CODIFICAÇAO

A busca foi realizada por dois pesquisadores, de modo independente, a partir do mesmo procedimento, a fim de comparar os resultados obtidos por cada um, em julho de 2017. Em caso de discordância, um terceiro pesquisador arbitrou sobre a pertinência da inclusao do estudo. Um dos autores codificou todos os artigos incluídos, e o outro autor recodificou em acordo de 33,3% (6 de 18) destes artigos. Por meio desse processo, os autores asseguraram que todos os dados extraídos fossem reportados e registrados corretamente. A concordância entre os dois autores foi de 100%. Desacordos sobre os artigos restantes foram revisados por todos os autores e posteriormente solucionados.


ANALISE DE DADOS

Os estudos foram resumidos e analisados qualitativamente. Informaçoes extraídas de cada estudo incluíram: autores, ano de publicaçao e país, desenho do estudo, amostra, objetivos, principais resultados e implicaçoes da pesquisa para os critérios diagnósticos de BN.


RESULTADOS

Foram identificados 257 estudos, dos quais 18 foram selecionados para a revisao. A Figura 1 apresenta o fluxograma de extraçao dos artigos e os motivos de exclusao.


Figura 1. Fluxograma de extraçao dos artigos
Fonte: dados da pesquisa.



Na Tabela 1 é possível verificar a caracterizaçao dos estudos selecionados na revisao em termos de
publicaçao, país, objetivos, resultados e implicaçoes para o DSM.




Constatou-se que somente na terceira ediçao do DSM21a AN e BN foram formalmente reconhecidas como duas categorias diagnósticas específicas. Considera-se, portanto, que a publicaçao do DSM-III foi um marco que contribuiu para o diagnóstico dos TA. No Quadro 1 estao descritos os critérios para BN nas versoes do DSM-III, DSM-IV e DSM-521,22,23,24.




DISCUSSAO

Embora tenham havido alteraçoes nas versoes três e quatro no DSM, o foco deste estudo recai sobre as atualizaçoes verificadas da versao IV-TR para a versao 5 do manual, por serem as mais recentes e as mais utilizadas. Na última versao do DSM foram verificadas as seguintes atualizaçoes: (a) inclusao de estágios de remissao de BN; (b) inclusao da classificaçao do nível de gravidade; (c) retirada dos subtipos restritivos e purgativos de BN; (d) reduçao na frequência média mínima de compulsao alimentar e de comportamento compensatório inapropriado; (e)alteraçoes terminológicas menores. Essas atualizaçoes, bem como os dados de pesquisa e os dados clínicos que as sustentam, serao descritos em tópicos a seguir.

(a) Inclusao de estágios de remissao de BN

Remissao significa estar livre de sintomas, ou ainda, saudável. Diferencia-se de termos como resposta ao tratamento ou recuperaçao. A resposta ao tratamento ocorre quando há diferença estatisticamente significativa nos comportamentos-problema mensurados em linha de base (pré-intervençao) e empós-intervençao, garantindo-se que as mudanças ocorreram devido ao tratamento.

A remissao nao requer que a mudança ocorra devido ao tratamento, e indica que o paciente, naquele momento, nao apresenta sinais ou sintomas da doença, que estavam presentes anteriormente25. Esse conceito é importante tanto para clínicos quanto para pesquisadores, na medida em que possibilita predizer a recuperaçao25. A recuperaçao, por sua vez, significa que o paciente está livre dos sintomas por um período longo o suficiente para que a doença possa ser considerada curada.

Existe pouco consenso entre pesquisadores sobre os critérios de remissao da BN. Há uma variaçao que inclui desde avaliaçao exclusivamente de indicadores fisiológicos, como IMC e regularidade menstrual25, exclusivamente de sintomas psicológicos/comportamentais, como frequência de compulsao alimentar e de utilizaçao de métodos purgativos (mensurados por instrumentos padronizados, como a Eating Disorders Examination - EDE)26 e, por fim, por meio da junçao de indicadores fisiológicos e psicológicos/comportamentais, como proposto por Kordy e cols. (2002)28.

Os estágios de remissao da BN foram incluídos na quinta ediçao do DSM, e sao apresentados como "parcial": depois que todos os critérios para BN foram preenchidos, apenas alguns deles estao presentes e "total", em que depois de todos os critérios preenchidos, nenhum deles está presente em um período sustentado. No DSM-51nao há mençao a um período específico de diminuiçao dos sintomas para que se classifique o TA como "em remissao". Couturier e Lock25, apontam que esse período pode variar de 4 semanas até 6 meses, a depender do conceito de remissao utilizado.

(b) Inclusao da classificaçao do nível de gravidade

A quinta versao do DSM1apresenta a inclusao dos níveis de gravidade de BN, de leve a extrema. A classificaçao é realizada com base na frequência dos episódios de compulsao alimentar e de comportamentos compensatórios, e o clínico deve considerar o grau de incapacidade funcional associado a esses comportamentos para a classificaçao.

O estudo de Smink, Hoeken, Oldehinkel e Hoek (2014)29, com o objetivo de rastrear sintomas de TA em populaçao geral (n=2.230) encontrou 312 indivíduos (14%) em risco, sendo que 8 (2,56%) preencheram os critérios para o diagnóstico de BN. Desses casos, 6 (75%) eram leves ou moderados e 2 (25%) graves ou extremos. Os autores encontraram correlaçao positiva e estatisticamente significativa entre severidade da doença e detecçao dos casos (p<0,02) e a severidade e busca por tratamento (p=0,002). Os dados indicam que os casos mais graves sao mais frequentemente identificados e tratados em comparaçao aos mais leves.

Dakanalis e cols (2017)5 avaliaram uma amostra clínica de 272 pacientes adolescentes com BN (DSM-5) e encontrou: nível leve (n=79, 29%), moderado (n=77, 28,3%), severo (n=64, 23,5%) e extremo (n=52, 19,2%). Nessa amostra, a gravidade dos sintomas alimentares avaliados pelo EDE, EDI, YBCEDS e OBCS acompanhou o nível crescente de gravidade avaliado pelos instrumentos e tiveram diferença estaticamente significativa em 15 variáveis investigadas, com sintomas mais leves nos níveis de severidade leve e moderado, e mais grave nos tipos grave e extremo.

Na mesma direçao, Dakanalis, Clerici, Riva e Carrà (2017)30 encontraram, em uma amostra clínica de 345 adultos com BN (DSM-5):leve (n=94, 27,2%), moderado (n=90, 26,1%), severo (n=86, 24,9%) e extremo (n=75, 21,8%). Novamente, sintomas alimentares avaliados pelo EDE e EDI e presença de comorbidades como transtornos de humor e transtorno de ansiedade foram mais frequentes nos tipos grave e moderado, havendo diferenças estatisticamente significativas em todas as comparaçoes.

A classificaçao do nível de severidade da BN tem utilidade clínica na medida em que permite ao clínico avaliar o progresso do paciente em tratamento. Além disso, pode guiar a conduta do clínico, uma vez que os níveis de gravidades apontam para diferentes manejos clínicos e diferentes dosagens de tratamento. Adicionalmente, a possibilidade de classificaçao de nível leve reduz a possibilidade de subdiagnóstico de BN e favorece a detecçao e tratamento precoces de BN, medida que está associada a melhores prognósticos.

(c) Retirada dos subtipos restritivos e purgativos de BN

No DSM-IV-TR sao descritos dois subtipos de BN: purgativo e nao purgativo. No DSM-5 os dois subtipos foram substituídos por um diagnóstico único de BN, que inclui o subtipo purgativo, em que o paciente previne o ganho de peso por meio de vômito autoinduzido, abuso de laxantes e diuréticos, e nao purgativo, que compreende jejuns severos após episódios de compulsao alimentar e exercício excessivo, com a finalidade de perder ou evitar ganho de peso.

A retirada dos subtipos aconteceu porque nao havia evidências científicas de que os dois subtipos diferissem em termos de psicopatologia alimentar, curso e prognóstico15,31,32. Além disso, pesquisas indicaram que é mais comum que pacientes com BN migrem, ao longo do tempo, entre os subtipos purgativo e nao purgativo, e sao raros os casos em que o indivíduo se mantém, ao longo do tempo, em um dos subtipos15,31,32.

Outra finalidade da retirada dos subtipos purgativo e nao purgativo de BN foi eliminar a possibilidade de erro de clínicos na avaliaçao dos casos. Intuitivamente, poderia-se pensar que os casos de pacientes com BN nao purgativa seriam menos graves do que aqueles em que havia purgaçao15. Hoje sabe-se que casos de BN, em que há compulsao alimentar seguida de exercício físico excessivo ou períodos de jejum prolongados sao tao nocivos quanto aqueles em que os comportamentos utilizados para prevençao do ganho de peso sao vômito, laxantes e/ou diuréticos. O prejuízo clínico e funcional pode ser grave em ambos os casos, demandando identificaçao correta e tratamento multidisciplinar.

(d) Frequência mínima de compulsao alimentar e comportamento compensatório

A média de dois episódios de compulsao alimentar e comportamentos compensatórios inadequados nos últimos três meses nao estava presente do DSM-III e foi incluída no DSM-III-R (critério D). Essa média se manteve no DSM-IV (critério C) e IV-TR (critério C), e foi alterada no DSM-5 (critério C), para "média de uma vez por semana, nos últimos três meses".

No DSM-III-R, IV e IV-TR, se o paciente apresentava uma média de compulsao e purgaçao inferior a duas vezes por semana era diagnosticado com TANE, diagnóstico residual para o qual nao há conduta específica ou dados de eficácia de tratamento e prognóstico disponíveis. Além disso, estudos33,34,35 indicam que nao há diferenças clínicas significativas para sustentar que pacientes que têm episódios de compulsao e purgaçao uma vez por semana, em média, sejam menos graves do que aqueles que apresentam os episódios uma vez por semana, em média.

Por exemplo, uma revisao sistemática da literatura, que avaliou evidências da validade do critério de frequência de uma vez por semana da BN, encontrou 10 estudos que tratavam do tema33. Os autores encontraram poucas evidências para sustentar o ponto de corte de duas vezes por semana, indicando que pacientes que purgam uma vez por semana nao diferem significativamente - em termos de variáveis sociodemográficas, severidade da psicopatologia alimentar e prognóstico - daqueles que purgam duas vezes.A reduçao de frequência de compulsao e purgaçao para uma vez por semana diminui os casos de TANE e aumenta os casos de BN, diagnóstico para o qual há informaçoes para embasar a conduçao do caso33,34.

(e) Alteraçoes terminológicas

Diversas alteraçoes terminológicas foram verificadas em DSM-III-TR, IV e IV-TR. Todas elas podem ser verificadas no Quadro 2. Da Versao IV-TR para a quinta ediçao do manual, a principal alteraçao refere-se à operacionalizaçao do termo "crises bulímicas recorrentes" (Critério A) para "Episódios recorrentes de compulsao alimentar". A operacionalizaçao dos critérios para o diagnóstico para BN reduz a necessidade de interpretaçao do clínico/pesquisador e, portanto, de avaliaçao subjetiva.

Embora sejam verificados avanços consideráveis nessa direçao, no DSM-5 ainda há termos pouco claros. Por exemplo, nos critérios B e C, "comportamento compensatório inapropriado", embora se apresentem alguns tipos, a título de exemplo, nao há especificaçoes para que o comportamento seja considerado inapropriado. Nesse sentido, sugere-se: "comportamentos compensatórios que produzem (ou têm potencial para produzir, em longo prazo) problemas funcionais, clínicos e/ou sofrimento significativo".


LIMITAÇOES DO ESTUDO

Embora a presente revisao sistemática tenha cumprido seu objetivo de apresentar a evoluçao dos critérios para o diagnóstico de BN, e de apresentar pesquisas que sustentam essas atualizaçoes, algumas limitaçoes devem ser destacadas: impossibilidade de análise quantitativa dos resultados, por conta da heterogeneidade dos estudos selecionados e busca conduzida em apenas duas bases de dados.


CONCLUSAO

A BN, desde sua inclusao no DSM-III, tem sido amplamente estudada por pesquisadores da área da saúde mental. Sua crescente importância em termos de prevalência tem impulsionado estudos em diversos países. As atualizaçoes seguem na direçao de tornar os critérios diagnósticos mais acurados e úteis, de modo a reduzir a frequência de TANE, grupo heterogêneo e indefinido que inclui formas parciais de AN, BN e TCA.

A partir da classificaçao proposta pelo DSM-IV, o diagnóstico de TANE era o mais comum em amostras clínicas e em estudos populacionais, achado que indicava a fragilidade do sistema de classificaçao dos TA. As alteraçoes e flexibilizaçao dos critérios diagnósticos para BN verificadas no DSM-5, descritas anteriormente, foram eficazes para a reduçao da frequência de TANE, aumentando a prevalência de BN.

Pacientes com BN, diferentemente daqueles com AN, nao apresentam perda de peso expressiva. Essa característica, quando somada ao estigma associado aos TA e à lacuna na formaçao de clínicos para a identificaçao dessa condiçao, dificulta o diagnóstico e o tratamento precoces, medida associada a melhores prognósticos.

Nesse sentido, o presente estudo tem finalidade prática, pois pode ser utilizado para apresentar a clínicos e pesquisadores em formaçao um panorama das atualizaçoes dos critérios diagnósticos para BN, bem como as pesquisas que sustentam essas alteraçoes. Para estudos futuros no Brasil, sugere-se a avaliaçao do nível de gravidade e características clínicas e sociodemográficas em amostras clínicas e populacionais, bem como estudos retrospectivos para reavaliar a prevalência de BN a partir dos novos critérios diagnósticos.


REFERENCIAS

1. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5). Porto Alegre: Artmed; 2013.

2. Jenkins PE, Hoste RR, Meyer C, Blissett, JM. Eating disorders and quality of life: a review of the literature. ClinPsychol Rev. 2011;31(1):113-21.

3. Agh, T, Kovács G, Supina D, Pawaskar M, Herman BK, Vokó Z, Sheehan DV. A systematic review of the health-related quality of life and economic burdens of anorexia nervosa, bulimia nervosa, and binge eating disorder. Eat Weight Disord. 2016;21(3), 353-364.

4. Crow SJ, Peterson CB, Swanson SA, Raymond NC, Specker S, Eckert ED, Mitchell JE. Increased mortality in bulimia nervosa and other eating disorders. Am J Psychiatry. 2009 Dec;166(12):1342-6.

5. Dakanalis A, Colmegna F, Zanetti MA, Giacomo ED, Riva G, Clerici M.Evaluation of the DSM-5 Severity Specifier for Bulimia Nervosa in Treatment-Seeking Youth. Child Psychiatry Hum Dev. 2017 May;1-9.

6. Mehler PS. Medical complications of bulimia nervosa and their treatments. Int J Eat Disord. 2011;44:95- 104.

7. Steinhausen HC, Weber S. The outcome of bulimia nervosa: findings from one-quarter century of research. Am J Psychiatry. 2009;166:1331-1341.

8. Dalgalarrondo, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2018.

9. Campbell K, Peebles R. Eating disorders in children and adolescents: state of the art review. Pediatrics. 2014;134(3):582-92.

10. Enge S, Steffen K, Mitchell J. Bulimia nervosa in adults: clinical features, course of illness, assessment and diagnosis. In: UpToDate, Post D.S. (Ed), UpToDate, Waltham, MA; 2017

11. Kessler RC, Berglund PA, Chiu WT, et al. The prevalence and correlates of binge eating disorder in the World Health Organization World Mental Health Surveys. Biol Psychiatry. 2013;73:904.

12. Hudson JI, Hiripi E, Pope HG Jr, Kessler RC. The prevalence and correlates of eating disorders in the National Comorbidity Survey Replication. Biol Psychiatry. 2007;61:348.

13. Andrade L, WaltersEE, Gentil V, Laurenti R. Prevalence of ICD-10 mental disorders in a catchment area in the city of Sao Paulo, Brazil. Soc Psychiatry Epidemiol.2002;37(7):316-325.

14. Cenci M, Peres KG, Vasconcelos FAG. Prevalência de comportamento bulímico e fatores associados em universitárias. Arch Psychiatry Clin Neurosci. 2009;36(3):83-8.

15. Castillo M, Weiselberg E. Bulimia Nervosa/Purging Disorder. Curr Probl Pediatr Adolesc Health Care.2017;47:85-94.

16. Stefini A, Salzer S, Reich G, Horn H, et al. Cognitive-Behavioral and Psychodynamic Therapy in Female Adolescents With Bulimia Nervosa: A Randomized Controlled Trial. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2017;56(4):329-35.

17. Harrington BC, Jimerson M, Haxton, C, Jimerson, DC. Initial evaluation, diagnosis, and treatment of anorexia nervosa and bulimia nervosa. Am Fam Physician.2015;91(1):46-52.

18. Russell G. Bulimia nervosa: an ominous variant of anorexia nervosa. Psychol Med. 1979;9(3):429-48.

19. Russell GFM. Thoughts on the 25th anniversary of bulimia nervosa. Eur Eat Disord Rev. 2004;12(3):139-52.

20. Liberati A, Altman DG, Tetzlaff J, Mulrow C, Gotzsche PC, Ioannidis JP, et al. The PRISMA statement for reporting systematic reviews and meta-analyses of studies that evaluate health care interventions: explanation and elaboration. PLoS Med.2009; 6(7), e1000100.

21. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-III). Porto Alegre: Artmed; 1980.

22. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-III-TR). Porto Alegre: Artmed; 1987.

23. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV). Porto Alegre: Artmed; 1994.

24. American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-IV-TR). Porto Alegre: Artmed; 2002.

25. Couturier J, Lock J. What is remission in adolescent anorexia nervosa? A review of various conceptualizations and quantitative analysis. Int J Eat Disord. 2006;39(3):175-83.

26. Morgan HG, Russell GFM. Value of family background and clinical features as predictors of long-term outcome in anorexia nervosa: four-year follow-up study of 41 patients. Psychol Med. 1975;5(4):355-71.

27. Fairburn CG, Harrison PJ. Eating disorders. The Lancet. 2003;361(9355), 407-16.

28. Kordy H, Krämer B, Palmer RL et al. Remission, recovery, relapse, and recurrence in eating disorders: conceptualization and illustration of a validation strategy. J Clin Psychol, 2002;58(7):833-46.

29. Smink FR., Hoeken D, Oldehinkel AJ, Hoek HW. Prevalence and severity of DSM‐5 eating disorders in a community cohort of adolescents. Int J Eat Disord.2014;47(6):610-19.

30. Dakanalis A, Clerici M, Riva G, Carrà G. Testing the DSM-5 severity indicator for bulimia nervosa in a treatment-seeking sample. Eat Weight Disord. 2017;22(1):161-67.

31. Cooper Z, Fairburn G. Refining the Definition of Binge Eating Disorder and Nonpurging Bulimia Nervosa. Wiley Periodicals. Inc. Int J Eat Disord. 2003;34:S89-S95.

32. Mond JM. Classification of bulimic-type eating disorders: from DSM-IV to DSM-5. Int J Eat Disord.2013; 1:33.

33. Wilson GT, Sysko, R. Frequency of Binge Eating Episodes in Bulimia Nervosa and Binge Eating Disorder: Diagnostic Considerations. Int J Eat Disord.2009; 42:603-10.

34. Trace SE, Thornton LM, Root TL, Mazzeo SE, Lichtenstein P, Pedersen NL, Bulik CM. Effects of Reducing the Frequency and Duration Criteria for Binge Eating on Lifetime Prevalence of Bulimia Nervosa and Binge Eating Disorder: Implications for DSM-5. Int J Eat Disord. 2012;45:531-36.

35. Thaw JM, Williamson DA, Martin, CK. Impact of altering DSM-IV criteria for anorexia and bulimia nervosa on the base rates of eating disorder diagnoses. Eating Weight Disord. 2001;6:121-29.

36. Davis CJ, Williamson DA, Goreczny AJ, Bennett SM. Body-Image Disturbances and Bulimia Nervosa: An Empirical Analysis of Recent Revisions of the DSM-III. Journal of Psychopathology and Behavioral Assessment, 1989: 11(1) 62-69.

37. Hay PJ, Fairburn CG, Doll, HA. The classification of bulimic eating disorders: a community-based cluster analysis study. Psychological Medicine, 1996: 26, 801-812.

38. Grave RD, Calugi S. Eating Disorder Not Otherwise Specified in an Inpatient Unit: The Impact of Altering the DSM-IV Criteria for Anorexia and Bulimia Nervosa. Eur. Eat. Disorders Rev 2007;15: 340-349.

39. Fairburn CG, Cooper Z, Bohn K, O'Conner ME, Doll, HA, Palmer RL. The severity and status of eating disorder NOS: Implications for DSM-V. Behaviour Research and Therapy 2007; 45:1705-1715.

40. Keel PK, Brown TA, Holm-Denoma J, Bodell LP. Comparison of DSM-IV Versus Proposed DSM-5 Diagnostic Criteria for Eating Disorders: Reduction of Eating Disorder Not Otherwise Specified and Validity. Int J Eat Disord 2011; 44:553-560.

41. Keel PK, Brown TA, Holland LA, Bodell LP. Empirical Classification of Eating Disorders. Annu. Rev. Clin. Psychol. 2012. 8:381-404.

42. Sysko R, Roberto CA, Barners, R D, Grilo CM, Attia E, Walsh T. Test-retest reliability of the proposed DSM-5 eating disorder diagnostic criteria. Psychiatry Research. 2012; 196: 302-308.

43. Nakai Y, Fukushima M, Taniguchi A, Nin K, Teramukai S. Comparison of DSM-IV Versus Proposed DSM-5 Diagnostic Criteria for Eating Disorders in a Japanese Sample. Eur. Eat. Disorders Rev. 2013; 21: 8-14.

44. Caudle H, Pang C, Mancuso S, Castle D, Newton R. A retrospective study of the impact of DSM-5 on the diagnosis of eating disorders in Victoria, Australia. Journal of Eating Disorders. 2015; 3:35.

45. Serrano-Trancoso E, Cañas L, Carbonell X, Carulla M, Palma C, et al. Diagnostic Distribution of eating disorders: Comparison between DSM- IV-TR and DSM-5. Actas Esp Psiquiatr 2017;45(1):32-8.

46. Vo M, Accurso EC, Goldschmidt AB, Grange DL. The Impact of DSM-5 on Eating Disorder Diagnoses. Int J Eat Disord. 2017; 50:578-581.










a Médica pela Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Câmpus de Botucatu. Atualmente trabalha na Secretaria da Saúde - Prefeitura de Joinville - Joinville - Santa Catarina - Brasil
b Psicólogo Clínico, mestre e doutor pelo programa de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo (IP-USP, Sao Paulo, SP, Brasil). Foi bolsista de doutorado da CAPES. Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo - Sao Paulo - Sao Paulo - Brasil
c Psicóloga Clínica, mestra em Análise do Comportamento pela UEL, doutora e pós-doutoranda pelo programa de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo (IP-USP, Sao Paulo, SP, Brasil). Bolsista de pós-doutorado pela FAPESP. Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo - Sao Paulo - Sao Paulo - Brasil
d Professora-doutora no Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo (IP-USP, Sao Paulo, SP, Brasil). Orientadora nos Programas de Psicologia Clínica e de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo - Sao Paulo - Sao Paulo - Brasil

Correspondência
Felipe Alckmin-Carvalho
Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo, Departamento de Psicologia Clínica
Av. Professor Mello Moraes, 1721, Cidade Universitária, Prédio F, Sala 19
Tel: (11) 3091-1961
05508-030 Sao Paulo, SP, Brasil
e-mail: felipealckminc@gmail.com / e-mail alternativo: felipcarvalho@usp.br

Submetido em: 07/11/2017
Aceito em: 03/10/2018

Inbstituiçao: Universidade de Sao Paulo

Contribuiçoes individuais: Ana Flávia Bonini - contribuiu significativamente na concepçao e desenho do estudo, na revisao bibliográfica, na redaçao da introduçao, do método, da discussao e da conclusao da revisao, e na aprovaçao de sua versao final;
Felipe Alckmin-Carvalho, Renatha El Rafihi-Ferreira e Márcia Helena da Silva Melo - contribuíram significativamente na concepçao e desenho do estudo, na redaçao dos resultados e da discussao dos dados da revisao integrativa. Revisaram a versao final do estudo

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo