Rev. bras. psicoter. 2018; 20(3):135-150
Pessota CM, Feijó LP, Costa CP, Benetti SPC. Características sociodemográficas e clínicas do abandono inicial em psicoterapia psicanalítica. Rev. bras. psicoter. 2018;20(3):135-150
Artigo Original
Características sociodemográficas e clínicas do abandono inicial em psicoterapia psicanalítica*
Socio-demographic and clinical characteristics of the initial abandonment in psychoanalytic psychotherapy*
Clarissa Machado Pessotaa; Luan Paris Feijób; Camila Piva Costac; Silvia Pereira da Cruz Benettid
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
O abandono psicoterápico é uma questao preocupante, que desperta o interesse de diversos pesquisadores1-4. Pesquisas atuais indicam que o abandono está associado a fatores sociodemográficos, clínicos e relativos ao tratamento psicoterápico4-8. Já na década de 1990, explorava-se o tema do abandono psicoterápico, por meio de ensaio clínico randomizado9. Esse estudo canadense identificou que os pacientes que abandonavam a psicoterapia apresentavam dificuldades relativas ao estabelecimento de alianças terapêuticas e resistência ao processo terapêutico.
Ainda, nas revisoes meta-analíticas, verificou-se que a prevalência de abandono dos tratamentos era de 48% dos casos clínicos10. Umoutro estudo11, verificou altas taxas de abandono, de 20% a 74%, o que demonstra que um em cada cinco pacientes abandona a psicoterapia antes de completar o tratamento. Para chegar a essas conclusoes, foram analisados dados referentes ao abandono psicoterápico em 669 estudos, contemplando um total de 83.834 clientes11. Em uma investigaçao mais atual6, a partir de 44 estudos relevantes sobre o abandono psicoterápico, as taxas de abandono identificadas ficaram próximas a 35%, o que ainda reflete a necessidade de novas contribuiçoes empíricas sobre as variáveis envolvidas nesse processo. Destes estudos, menos da metade considerava aspectos relativos ao terapeuta, relacionamento ou fatores de processo.
Portanto, o abandono psicoterápico é um tema que desperta discussao no meio clínico e científico. Contudo, nao há muitos estudos que predizem com clareza os fatores associados a esta problemática na psicoterapia psicanalítica (PP)2. Ademais, é importante a ampliaçao de estudos que considerem esse modelo teórico devido à baixa produçao acadêmica e empírica, em comparaçao com outras abordagens psicoterápicas, como, por exemplo, a terapia cognitiva comportamental2,12. Atualmente, a necessidade de integraçao de constructos teóricos psicanalíticos e a pesquisa empírica vêm ganhando espaço, sendo discutidas cada vez mais no campo científico e acadêmico13.
A PP se dispoe a conhecer o inconsciente do paciente, ao aproximar o passado primitivo por meio das repetiçoes transferidas para a figura do terapeuta14. Nesse sentido, é importante estabelecer um plano de tratamento para o combate ao adoecimento, a partir da demanda atual do paciente15, pois, no planejamento para uma psicoterapia de orientaçao psicanalítica, os recursos egóicos e cognitivos do paciente devem ser considerados, assim como a sua motivaçao para o tratamento e os objetivos terapêuticos acordados entre a dupla16 .
Portanto, o início da psicoterapia é decisivo para a permanência ou nao do paciente em tratamento, sendo necessário vencer a resistência, a falta de motivaçao e a dificuldade em aderir à psicoterapia3,17,18. Além disso, os atributos do terapeuta, como a empatia e o conhecimento técnico e pessoal, sao componentes que podem ser considerados aliados na adesao do paciente à terapia19, pois há indícios de que o ensino da PP baseado no tripé (supervisao dos casos clínicos, estudos teóricos e análise pessoal do terapeuta) é importante para o fortalecimento da técnica psicoterapêutica15.
A literatura vem demonstrando os ganhos terapêuticos com pacientes que recebem a PP, pois, além de apresentarem uma melhora significativa durante o processo, eles mantêm esses ganhos, inclusive após o fim do tratamento20. Porém, a decisao de abandonar a psicoterapia tem impacto negativo e pode ocorrer em momentos distintos do tratamento, seja nas fases, inicial, média ou tardia4. Devido à heterogeneidade conceitual, Gastaud e Nunes2, sob o prisma da psicoterapia psicanalítica, propoem a possibilidade de utilizaçao dos termos nao aderência, definida pela interrupçao na fase de avaliaçao inicial, e abandono, quando o paciente desiste do atendimento antes que os objetivos estabelecidos no contrato sejam atingidos.
Em se tratando do espaço temporal para a compreensao do abandono do tratamento, recomenda-se considerar o abandono precoce como sendo aquele que ocorre antes dos três meses de atendimento3. Contudo, se o paciente abandonar o tratamento no início, principalmente, entre o primeiro e o terceiro mês de atendimento3,18, os objetivos do tratamento acabam nao sendo concluídos com efetividade. Sendo assim, o estudo de Jung4 definiu o abandono inicial como aquele que ocorre no período anterior a dois meses, tendo em mente que, no primeiro mês, o terapeuta avalia o paciente.
As maiores taxas concentram-se nesta primeira etapa, pois apenas 20% dos pacientes consultam um psicoterapeuta mais do que três vezes, desde o início da avaliaçao21. Especificamente na abordagem psicanalítica, uma pesquisa nacional realizada com psicoterapeutas psicanalíticos apontou que, no primeiro mês de atendimento psicoterápico, ou seja, nas primeiras quatro sessoes, há maior risco de interrupçao do tratamento psicanalítico18.
Da mesma forma, para minimizar as altas taxas de abandono do tratamento, é necessário reconhecer os fatores sociodemográficos e clínicos, que estao associados a este fenômeno12. As variáveis sociodemográficas, como o sexo masculino22,23; pacientes mais jovens23,24; menor nível de escolaridade e renda baixa6,8,22 estao associados ao abandono da psicoterapia.
Já os aspectos clínicos como depressao e ansiedade5,25,26, aspectos regressivos27 e mecanismos de defesa imaturos3,28 estao presentes em pacientes que abandonam o tratamento antes de os objetivos serem alcançados. Simon7reconhece ser necessário monitoramento e divulgaçao sistemática de pacientes com depressao que interrompem a psicoterapia prematuramente, em vez de focar apenas naqueles que permanecem.
Os pacientes com sintomatologia de ansiedade requerem cuidado, tendo em vista a tendência ao abandono prematuro. Esses pacientes utilizam defesas evitativas para nao se exporem ou por receio de intensificar o adoecimento frente ao processo psicoterápico5. Considerando que grande parte do abandono ocorre no início da psicoterapia, o objetivo desta pesquisa documentalretrospectiva é caracterizar as variáveis sociodemográficas e clínicas que se associam ao abandono inicial(AI)de pacientes em psicoterapia psicanalítica.
MÉTODO
AMOSTRA
Como amostra desta pesquisa, foi selecionado o total de 1272 prontuários de pacientes adultos, atendidos entre julho de 2010 e julho de 2016. Posteriormente, foram excluídos os prontuários de pacientes que nao haviam respondido corretamente os instrumentos entregues na triagem. Assim, o estudo relativo aoAI centrou-se nos dados levantados de um total de 947 prontuários.
Para uma descriçao mais detalhada para este artigo, esse período inicial foi dividido em três etapas: triagem (apenas 1 sessao); até 1 mês e entre 1 e 2 meses. Como resultado dessa classificaçao obtivemos: o número de participantes na triagem, 664; até um mês, 121; de 1 mês a 2 meses, 162, totalizando 947 prontuários.
A maioria dos participantes da triagem sao do sexo feminino (66,5%), com idade entre 26 a 35 anos (48,6%); com formaçao em nível de Ensino Superior incompleto (37,3%); com renda de dois a três salários mínimos (46%). Os que abandonaram o tratamento no primeiro mês sao, na maioria, do sexo feminino (62,8%), idade entre 26 e 35 anos (50,4%), formaçao em nível de Ensino Superior completo (40,5%) e renda de dois a três salários mínimos (40,7%). Quanto aos participantes que abandonaram o tratamento entre 1 e 2 meses, a maioria é do sexo feminino (64,8%), idade entre 26 e 35 anos (48,8%), formaçao em nível de Ensino Superior incompleto (37,7%) e renda de quatro a seis salários mínimos (37,4%).
INSTRUMENTOS
Os instrumentos a seguir constam nos prontuários arquivados no banco de dados da instituiçao pesquisada. As variáveis de interesse para este estudo estao divididas em sociodemográficas e clínicas.
(a) Ficha de contato inicial: Elaborada pela instituiçao para registrar características sociodemográficas dos pacientes. O documento é preenchidapelo paciente quando este chega ao ambulatório. Para este estudo, foram escolhidas as variáveis sexo, idade, escolaridade e renda, contidas nesse instrumento.
(b) Symptom Checklist - 90 - R (SCL-90-R): Criado por Derogatis29, é uma escala de autoavaliaçao com 90 itens de sintomas, que refletem o padrao psicológico de quem é avaliado. O instrumento avalia a psicopatologia em termos de nove dimensoes primárias de sintomas. Para fins deste estudo, foram analisadas apenas três dimensoes: Depressao (D), Ansiedade (An) Ansiedade Fóbica (AF), numa escala de frequência de 5 pontos, graduada de 0 a 4 (0 = nenhum a 4 = extremamente muito), pois sao os mais presentes em pacientes que abandonam inicialmente o tratamento4,5,26.
O instrumento também avalia três índices globais de distúrbios: Indice Global de Severidade (IGS) - em relaçao aos sintomas, Distúrbio de Sintomas Positivos (IDSP) e o total de Sintomas Positivos (TSP), sendo avaliado apenas o primeiropara identificar qual o limiar de severidade sintomática em cada etapa. Ainda, o instrumento, que foi traduzido para 24 idiomas e adaptado por Lanoni30para a populaçao brasileira, apresentou boa consistência interna (α = 0,73 a 0,88). Os resultados brutos para cada dimensao e para os três índices globais sao convertidos em resultados ponderados. Para definir o resultado, a medida utilizada é o escore IGS, maior ou igual ao escore T de 63. Caso dois escores de dimensoes primárias sejam maiores ou iguais ao escore T de 63, o indivíduo é considerado um caso de risco29.
(c) DefensiveStyleQuestionnaire (DSQ-40): elaborado por Bond, Gardner, Christian e Sigal31com 67 itens. É um instrumento autoaplicável composto por 40 itens, que avalia 20 defesas com duas questoes para cada, respondidas numa escala de frequência de 1 a 9 (1 = discordo totalmente e 9 = concordo plenamente). Visa identificar os derivados conscientes dos mecanismos de defesa e se eles se organizam de forma madura, imatura ou neurótica. Foi traduzido para a realidade brasileira32 e obteve boa consistência interna, sendo (α = 0,55), para as defesas maduras; (α = 0,52), para defesas neuróticas; e (α = 0,77), para defesas imaturas. Neste estudo, os alfas encontrados foram para defesas maduras (α = 0,51); para defesas neuróticas (α = 0,48); e defesas imaturas (α = 0,72).
PROCEDIMENTOS DE COLETA DOS DADOS
A pesquisa foi realizada num Ambulatório de Psicoterapia Psicanalítica**, localizado em Porto Alegre/RS. A primeira autora fez sua especializaçao na instituiçao, onde trabalhou por 8 anos como supervisora de estágios, vínculo que oportunizou o estudo.
Foram incluídos para as análises estatísticas: (a) os prontuários de pacientes com idade entre 18 e 40 anos, que procuraram atendimento psicoterápico individual entre julho de 2010 e julho de 2016; (b) pacientes que abandonaram a psicoterapia até 2 meses de atendimento. A definiçao de abandono inicialfoi consideradacomo aquela em que ocorre no período anterior a dois meses, tendo em mente que, no primeiro mês, o terapeuta realiza a avaliaçao do paciente4.
Trata-se de um estudo retrospectivo, transversal e analítico, realizado através de pesquisa documental. Sendo uma pesquisa que investiga prontuários clínicos, ela atende à Resoluçao 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, órgao do Ministério da Saúde, que estipula as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas com seres humanos33. Foi aprovada pelo Comitê de Ética da Instituiçao que forneceu os prontuários e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, CAAE 68860117.2.0000.5344.2013.
PROCEDIMENTOS DE ANALISE DOS DADOS
Os dados foram analisados no programa StatisticalPackage for Social Sciences, versao 22 para Windows. Para critérios de decisao estatística, adotou-se o nível de significância de p < 0,05. Os dados foram tratados e analisados por meio da estatística descritiva.
Dessa forma, todas as análises descritivas foram realizadas por meio de tabulaçao cruzada, sendo os grupos colocados como variáveis dessas análises. A apresentaçao dos resultados foi feita por estatística descritiva - distribuiçao absoluta e relativa (n - %), bem como, pela média, mediana e desvio padrao. Já o estudo da distribuiçao de dados das variáveis contínuas, pelo teste de Kolmogorov-Smirnov.
Para a análise bivariada entre as variáveis independentes e as três etapas, foram utilizados os testes Qui-quadrado de Pearson (x2) e o Teste Exato de Fisher. Na análise das variáveis contínuas, foi implementado o teste de análise de variância (Oneway) e Post Hoc-Hurkey34.
A variável dependente - abandono inicial - foi avaliada pelas variáveis definidas como explicativas ou independentes: dados sociodemográficos e clínicos. Através do instrumento SCL-90, foram selecionados os sintomas: Depressao, Ansiedade e Ansiedade Fóbica, por serem os mais presentes em pacientes que abandonam o tratamento logo no início5,25,26. As interpretaçoes quanto à gravidade dos sintomas foram agrupadas por categorias afins, sendo reorganizadas da seguinte forma: 1) nenhuma/pouca severidade; 2) severidade moderada; 3) bastante/muito severo.
RESULTADOS
Foram analisados 947 prontuários, com enfoque principal no AI, descritos e avaliados em três etapas independentes: triagem 70,1% (n=664); até 1 mês 12,8% (n=121); e entre 1 e 2 meses 17,1% (n=162).Em relaçao ao gênero, 324 (34,3%) eram pacientes do sexo masculino; e 661 (65,7%), do sexo feminino. A média de idade da amostra foi de 28,4 anos (DP = 5,95). Em relaçao à escolaridade, 64,41% (n=607) dos pacientes tinham Ensino Superior incompleto. Em relaçao à renda, 42,9% (n=379) apresentavam a renda de 2 a 3 salários mínimos (vigentes na época).
A Tabela 1 apresenta os resultados da associaçao do abandono inicial com as características sociodemográficas. Quanto ao período de triagem, as variáveis escolaridade dos níveis fundamental incompleto (1,8%), médio (33,8%) e superior incompleto (37,3%) e renda de 2 a 3 salários mínimos (46%) associaram-se ao abandono inicial.
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