Rev. bras. psicoter. 2018; 20(1):69-80
Peixoto I, Marques CM. Psicodinâmica contemporânea em pedopsiquiatria - abordagens Integrativas. Rev. bras. psicoter. 2018;20(1):69-80
Artigo de Revisao
Psicodinâmica contemporânea em pedopsiquiatria - abordagens Integrativas
Contemporary psychodynamics in child psychiatry - integrative approaches
Ivo Peixotoa; Cristina Maria Marquesb
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A pedopsiquiatria tem, nos últimos anos, beneficiado de uma criaçao emergente de pontes e de interfaces, a par do desenvolvimento das investigaçoes nas várias áreas do saber que abrange, e em resposta aos desafios que se apresentam na prática clínica.
Tem surgido um esforço concertado de integraçao entre os vários modelos psicológicos e psicopatológicos e uma maior abertura é procurada, tanto no diálogo entre as diferentes correntes teóricas e clínicas, como nas diferentes disciplinas que investigam a mente e o cérebro, tornando-se a dialética cérebro-mente pré-existente cada vez menos significativa.
O que está em causa sao, por exemplo: 1) pontes entre ramos diferentes da ciência, nomeadamente, entre a psicoterapia psicodinâmica e as neurociências; 2) integraçoes de modelos terapêuticos diferentes que, no século XX, foram, muitas vezes, considerados como antagónicos, como aconteceu entre o modelo da vinculaçao precoce e o modelo psicanalítico; 3) conexoes dentro do pensamento reflexivo do clínico pedopsiquiatra construídas entre a sua prática clínica, os modelos teóricos e o seu próprio funcionamento psíquico; 4) evidências que têm exigido e continuarao a exigir uma real colaboraçao entre os clínicos e os investigadores, de forma clarificar as manifestaçoes da psicopatologia do bebé, da criança e do adolescente; 5) interesse mútuo e colaboraçao entre a pedopsiquiatria e outras especialidades médicas.
Perante os múltiplos percursos e horizontes que se apresentam na pedopsiquiatria contemporânea, torna-se necessário um modelo teórico flexível e passível de integraçao de conteúdos de outras fontes e de outras escolas de compreensao psicopatológica. Neste âmbito, a psicoterapia psicodinâmica relacional permite encarar a criança e o adolescente de forma compreensiva e com a complexidade que lhe está inerente, conjugando os dados científicos com as relaçoes humanas e suas vicissitudes.
MÉTODOS
Os autores propoem uma revisao nao sistemática da literatura. Foi efetuada uma pesquisa com os termos "Psychodynamic Psychotherapy", "Relational Psychology" e "Child Psychiatry" nas bases de dados PubMed e PsycINFO, incidindo sobre os últimos 10 anos e complementada com outra literatura de relevo para a temática proposta.
PAPEL DO PEDOPSIQUIATRA
A prática clínica da psiquiatria da infância e da adolescência tem raízes em múltiplas fontes de conhecimento, assentes em disciplinas médicas e nao médicas. O trabalho do pedopsiquiatra pode ser visto como uma síntese constante de soluçoes possíveis e de articulaçao interdisciplinar, tendo como pano de fundo os desafios e mudanças sociais e familiares dos dias de hoje. Tal exige desta especialidade médica um particular esforço de atualizaçao e de integraçao de diferentes pontos de vista tanto no campo epistemológico como no das intervençoes terapêuticas.
Quando as pessoas recorrem a uma consulta de pedopsiquiatria, nao procuram, necessariamente, uma soluçao medicamentosa ou uma psicoterapia. Trazem, por outro lado, queixas acerca de um problema em particular (ou um conjunto de problemas), acerca de sintomas, ou sobre dificuldades presentes nas suas vidas. Como profissionais de saúde mental, a abordagem de compreensao e de apoio genuíno das crianças, adolescentes e suas famílias é fundamental para um trabalho que se pretende que seja terapêutico.
Sendo o cuidar algo inerente a qualquer atividade terapêutica, a prática clínica pedopsiquiátrica continua, nos dias de hoje, a fundar-se na esperança e na tentativa de atribuir sentido aos diferentes percursos individuais e ao sofrimento das pessoas, pelo que se procura demarcar pelo enquadramento do sofrimento psicológico da criança e das suas necessidades de ser cuidada, em oposiçao a uma abordagem centrada nos sintomas e no modo de os fazer desaparecer. Privilegia-se, antes, uma atitude empática preventiva e relacional e que favoreça a expressao da subjetividade, promovendo as competências individuais e familiares, com necessária humildade perante o imprevisível.
No entanto, o papel do médico pedopsiquiatra envolve, também, um conhecimento e uma identificaçao precisa das características médico-psiquiátricas dos sintomas e das síndromes, um enquadramento psicopatológico e diagnóstico, bem como um domínio das intervençoes terapêuticas mais adequadas a cada situaçao. Este trabalho coloca, portanto, ao pedopsiquiatra, o desafio de ter que se flexibilizar entre um modelo de cariz mais fenomenológico/biomédico e um modelo de cariz mais psicossocial/psicodinâmico ou de os utilizar em simultâneo. Enquanto, em determinadas situaçoes, possa parecer claro qual o modelo que melhor se adapta a cada caso ou a cada paciente, noutras, o desafio principal é atingir algum conforto perante a incerteza. E este aspeto é algo que merece ser clarificado no contínuo de relaçao e de aprendizagens com os nossos pacientes.
Durante o processo de formulaçao de caso e de enquadramento diagnóstico é ainda de extrema importância, para o pedopsiquiatra, contemplar múltiplas fontes de informaçao sobre os diferentes contextos em que a criança ou jovem se encontra inserida, nomeadamente na escola e no seio familiar, de modo a compreender melhor o impacto e pervasividade dos problemas e dificuldades.
INTEGRAÇAO DE CONHECIMENTOS
A psiquiatria da infância e da adolescência é, de um modo geral, uma disciplina heterogénea, pelo que necessita de um ponto de partida e de uma linguagem comuns. O trabalho do pedopsiquiatra deve, por isso, estar assente na psicopatologia descritiva. A psicopatologia, de acordo com Stanghellini e Broome1, pode ser concetualizada como uma linguagem partilhada, que permite aos clínicos com diferentes backgrounds teóricos compreender-se mutuamente, quando se aborda a doença mental. A psicopatologia permite estabelecer a ponte entre as ciências clínicas e as ciências humanas - algo basilar quando se pretende atribuir significado ao sofrimento mental subjetivo -, distinguir os elementos normativos dos patológicos, e conectar a compreensao (carga de significado para a experiência subjetiva) com a explicaçao (causalidade neurobiológica). Daí que uma psicopatologia fenomenológica, de acordo com Stanghellini & Rossi2 deva ser discutida em 3 níveis: 1) na hermenêutica dos sintomas mentais, com particular adaptaçao ao estadio de desenvolvimento da criança; 2) na relaçao entre os sintomas e o diagnóstico; e 3) na hermenêutica da estrutura subjetiva e experiencial mais profunda, onde os 2 níveis anteriores estao fundados.
A psiquiatria da infância e da adolescência beneficia também de uma abordagem que integre, sintetize e contextualize conceitos contemporâneos derivados dos dados da investigaçao em neurodesenvolvimento, neurobiologia e intersubjetividade. Os avanços mais recentes na compreensao das relaçoes humanas, da cogniçao social e da memória implícita, têm permitido reforçar: 1) a importância das experiências precoces, bem como das influências indissociáveis entre genes e ambiente no desenvolvimento cerebral e no comportamento humano; 2) o papel central das relaçoes precoces como fonte de suporte e adaptaçao, ou de risco e disfunçao; 3) a complexidade de competências, emoçoes e recursos sociais que se desenvolvem desde os primeiros meses de vida e 4) a capacidade de aumentar a probabilidade de um desenvolvimento mais harmonioso através de intervençoes planeadas e adaptadas3. Cada vez mais se aprecia o papel da criança e do adolescente como participante ativo nas atribuiçoes de sentido que ocorrem, reciprocamente, na relaçao com os seus pais ou cuidadores, e a importância da qualidade desta reciprocidade no seu desenvolvimento psicológico. Inerente a esta reciprocidade social, encontramos a capacidade do cérebro de processar e codificar estas experiências de relaçao e de lidar com a sua complexidade através da seleçao, processamento e armazenamento de memórias, num processo que é conduzido e influenciado ativamente pelas experiências relacionais. Assente nestas premissas e sob esta perspetiva, o trabalho terapêutico do pedopsiquiatra beneficia da compreensao da influência que as relaçoes prévias têm nas relaçoes subsequentes4 e de reconhecer a variabilidade e flexibilidade de como uma pessoa se pode comportar e relacionar consoante os contextos. Para além do conteúdo explícito da intervençao, há uma intervençao ao nível implícito, com vista a uma nova experiência relacional reparadora e a padroes de interaçao com o outro mais adaptativos.
Com efeito, no contexto terapêutico, a perspetiva da psicologia relacional defende um paradigma de intervençao - aqui adaptado ao contexto médico e denominado por pedopsiquiatria psicodinâmica - que promove uma integraçao de várias correntes teóricas de psicoterapia, da psicopatologia descritiva, psicopatologia do desenvolvimento e das neurociências de uma forma concertada.
PEDOPSIQUIATRIA PSICODINAMICA
De forma geral, segundo um paradigma psicodinâmico tradicional, o terapeuta assume uma posiçao one-down, ajudando o paciente a aceder - alcançar insight - e a resolver ou reparar conflitos intrapsíquicos e relaçoes de objeto - representaçoes mentais de si mesmo e da relaçao com o outro - através de um processo de transferência na relaçao com o terapeuta ou através de memórias autobiográficas.
No entanto, com a proliferaçao das investigaçoes nas áreas da vinculaçao, desenvolvimento e psicoterapia infantil, tem emergido nos últimos 30 anos um paradigma de intervençao terapêutico psicodinâmico com uma perspetiva diferente. Este surge em consonância com a natureza ubíqua do modo de comunicaçao inato das interaçoes humanas, que é, por excelência, bidirecional. De facto, desde o nascimento que o bebé tem uma grande apetência para a aprendizagem e para a atribuiçao de sentidos e significados na relaçao com os seus cuidadores, de forma a desenvolver internal working models (IWM) de vinculaçao que refletem padroes implícitos de representaçoes mentais estáveis ou instáveis de si mesmos e dos outros. Quando esse IWM é gerado num ambiente securizante e estável, a criança consegue compreender e predizer as pistas socioafetivas e a intencionalidade do outro de forma mais eficaz, o que, de forma implícita, se torna numa ferramenta promotora de sobrevivência ao permitir a proximidade com o outro num sentimento de "segurança sentida" e partilhada5. Outro campo de investigaçao, no domínio da intersubjetividade, tem permitido esclarecer de que forma os sistemas cognitivo e de memória modelam a experiência individual através da interaçao com o outro. Estas experiências intersubjetivas permitem criar modelos de "estar com" e de "captar" o estado de espírito e a intencionalidade do outro. Por sua vez, estes modelos sao armazenados na memória implícita nao-declarativa e nao-consciente, num conhecimento relacional implícito, pré-verbal6. Desta forma, e fundada nestes argumentos, a abordagem psicodinâmica relacional, defende que a terapia deverá constituir uma experiência intersubjetiva em que o temperamento, processos cognitivos, flexibilidade cognitiva, e IWM do paciente e do terapeuta interagem de forma bidirecional, no aqui e agora da relaçao terapêutica, co-criando experiências relacionais reparadoras.
Tal como referem Fonagy & Target7, as teorias sao moldadas por aquilo que o clínico considera útil e sao contaminadas intrinsecamente pela técnica e, consequentemente, correm o risco de assumir que tudo aquilo de que o paciente se recorda é verdadeiro e exato. A abordagem de uma pedopsiquiatria psicodinâmica contemporânea desafia conceitos canónicos do modelo psicodinâmico tradicional e re-examina o seu valor no âmbito de um modelo relacional, contextual e intersubjetivo. Uma explicaçao detalhada de cada um destes conceitos está fora do âmbito desta revisao, pelo que se optou apenas por se colocar algumas das mudanças conceptuais e de abordagem introduzidas pelo modelo relacional na tabela 1.
Criaçao de Sentido
A atribuiçao de significado é o processo pelo qual as pessoas dao sentido às experiências subjetivas no contexto de relaçao com o outro. Desde os primeiros meses de vida, o desenvolvimento biopsicossocial do bebé será construído a partir de uma amálgama de processos de criaçao de sentido, que irao influenciar a forma e com que emoçoes se identificam a si próprios e às experiências com os outros. Segundo Tronick8, estes processos incluem atividade motora, emoçoes, temperamento, neuróniosespelho, processos corticais, inibiçao do eixo hipotálamo-pituitária-adrenal e o efeito de kindling do trauma em determinados grupos neuronais. Estes processos têm um impacto profundo na criança em desenvolvimento e existe evidência de que continuam ao longo da vida9.
Attunement afetivo
O attunement reporta-se à partilha e ao alinhamento sintónico e sincrónico dos estados internos que ocorrem durante a interaçao entre mae e bebé, iniciando-se por volta do oitavo mês de vida10. Tem uma qualidade interna e é transmodal, isto é, envolve comunicaçao verbal e nao-verbal em troca dinâmica, tornando-se precursora da regulaçao afetiva11. Na prática clínica relacional, o terapeuta nao reflete apenas o estado subjetivo do paciente, mas também lhe transmite a sua própria perspetiva interna, facilitando a experiência e a expressao afetivas. De acordo com Safran & Muran12, "após aproximadamente meio século de investigaçao em psicoterapia, um dos dados mais consistentes é que a qualidade da aliança terapêutica é o preditor mais robusto do sucesso do tratamento".
Disponibilidade Emocional e Social Referencing
A disponibilidade emocional está relacionada com a postura de interesse mútuo e de abertura na díade relacional cuidador-criança. O processo de social referencing surge como forma de expandir a disponibilidade emocional, introduzindo significados partilhados em relaçao a dados acontecimentos. É um marco importante no desenvolvimento do bebé, que consiste na referenciaçao do olhar do bebé para o cuidador em situaçoes novas ou emocionalmente ambíguas, de forma a obter pistas e desenvolver a capacidade de interpretar e resolver determinada situaçao13. De forma semelhante, a disponibilidade emocional do terapeuta é, também. essencial para o crescimento do paciente e da sua família, ao fazer uso implícito e nao consciente do conhecimento relacional mais adaptativo do terapeuta.
Conhecimento Relacional Implícito
O conceito de conhecimento relacional implícito envolve todos os processos de interaçao social e de trocas afetivas que sao amplamente nao-verbais e baseados em sistemas de memória nao-declarativa e fora da memória consciente. É algo que começa a ter uma representaçao bastante antes do acesso à linguagem verbal e que continua a operar de forma implícita ao longo da vida. A linguagem é, naturalmente, utilizada em serviço deste conhecimento, mas o conhecimento implícito que governa as nossas interaçoes mais íntimas nao se baseia na linguagem nem na memória declarativa e nao sao traduzidas por rotina para uma forma semântica6. Quando falamos deste "conhecimento", é importante salientar que este tem tanto de cognitivo como de afetivo. Com efeito, as interaçoes precoces entre um bebé e o seu cuidador condicionam formas de regulaçao biológica e socioemocional que passam a ser representadas e "memorizadas". Este conhecimento nao tem, portanto, uma representaçao simbólica, mas também nao se considera que estejam subjacentes processos dinamicamente inconscientes, no sentido de serem defensivamente excluídos da consciência, tal como numa perspetiva tradicional. Ter presente, no contexto clínico, a existência de um sistema de memória implícita e nao declarativa, reforça a importância do trabalho de interaçao no "aqui e agora", de co-construçao e de uma relaçao terapêutica de continuidade.
Intersubjetividade e Mentalizaçao
Segundo Stern14, a intersubjetividade é definida como "a capacidade de partilhar, saber, compreender, empatizar, sentir, participar, ressoar com, entrar na experiência subjetiva do outro" e "interpretar comportamentos tais como postura, tom de voz, ritmo de discurso, expressao facial bem como conteúdo verbal" o que permite assumir que o terapeuta possa partilhar, aceder e sentir aquilo que está presente na mente do paciente. Este nexo de interaçao é, assim, a força motriz primária do processo psicoterapêutico.
Um conceito análogo é o de mentalizaçao, que tem raízes na perspetiva psicodinâmica tradicional, mas que se revela útil clarificar pela sua ampla utilizaçao. A mentalizaçao define-se como a capacidade de interpretar comportamentos como carregados de um significado, e que se baseia no estado mental do próprio e do outro, tendo em conta os seus desejos, crenças, motivaçoes e sentimentos, isto é, "tendo a mente do outro em mente"15.
Experiência Emocional Reparadora
Alexander & French16 utilizaram esta expressao pela primeira vez, para definir que um processo terapêutico é aquele que expoe o paciente, em circunstâncias mais favoráveis, a situaçoes emocionais com as quais nao conseguiu lidar no passado e que permite uma reparaçao da influência negativa ou traumática de determinadas experiências prévias. Na segunda metade do mesmo século, várias investigaçoes expandiram estes princípios concluindo-se que experienciar e processar emoçoes dolorosas e mal resolvidas num ambiente securizante e com uma relaçao de sintonia afetiva poderá gerar um "final diferente"17. Os avanços da psicologia do desenvolvimento permitiram consolidar esta teoria de que o insight intelectual, somente, é, muitas vezes, insuficiente para que mudanças ocorram. De facto, uma perspetiva psicodinâmica contemporânea reconhece a importância de uma nova experiência emocional, que nao necessita necessariamente de ser reparadora, mas que antes promove um modo diferente e mais adaptativo de relaçao, que modifica o esquema relacional implícito desadaptativo prévio. Para além do trabalho de revivência e de elaboraçao de determinada questao ou conflito, um trabalho de processamento emocional terapêutico está também associado à experiência, em terapia, de emoçoes positivas em relaçao ao próprio, relacionadas com um sentido de agentividade (alegria, exuberância, orgulho) e de emoçoes positivas em relaçao aos outros, tais como, gratidao e amor18.
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