ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2018; 20(1):37-48



Artigo Original

Falhas ambientais e conflito: compondo uma escuta da organizaçao borderline

Environmental flaws and conflict: composing an understanding of the borderline organization

Carina Teixeira Leite

Resumo

O objetivo deste trabalho é relacionar a organizaçao borderline às patologias do vazio, e propor uma escuta psicodinâmica ancorada na conjunçao das vertentes de deficit e de conflito. Valho-me de alguns pensadores psicanalíticos como Donald Winnicott, Wilfred Bion, Andre Green, Otto Kernberg, David Zimerman e Sidney Schestatsky ao considerar os primórdios da formaçao dessa organizaçao psicopatológica, ao tecer algumas consideraçoes sobre sua compreensao psicodinâmica e ao apresentar sua expressao clínica. Saliento que o psicoterapeuta deve identificar psicodinamicamente a fragilidade do paciente, acolher sua regressao e possibilitar que a dupla terapeuta-paciente teça a trama significante que estreite as bordas do vazio.

Descritores: Psicoterapia; Conflito (Psicologia); Transtorno da Personalidade Borderline.

Abstract

The aim of this paper is to relate the borderline organization to the void pathologies and to propose a psychodynamic understanding based on the deficit and conflict approaches. Some psychoanalytic authors such as Donald Winnicott, Wilfred Bion, Andre Green, Otto Kernberg, David Zimerman and Sidney Schestatsky are considered to study the early stages of such psychopathological organization, to make some considerations about its psychodynamic comprehension and to present its clinical expression. I emphasize the psychotherapist must identify the psychodynamics of the patient, his vulnerabilities, accept his regression and enable that the dyad therapist-patient build the significant plot that narrows the borders of the void.

Keywords: Psicoterapia; Borderline Personality Disorder; Maternal and Child Health; Personality Disorders.

 

 

INTRODUÇAO

Casos clínicos que exigem uma nova configuraçao do setting1,2,3 e uma maior disponibilidade interna do psicoterapeuta sao cada vez mais frequentes na clínica. Abordo neste trabalho a literatura sobre pacientes com transtorno de personalidade borderline e os quadros componentes das "patologias do vazio", enunciados conjuntamente por apresentarem um arranjo limítrofe, caracterizado pela fragilidade do self, pela mudança em direçao a um processo primário de pensamento e por operaçoes defensivas específicas4,5,6 (tais como cisao, idealizaçao primitiva, identificaçao projetiva, negaçao, onipotência e desvalorizaçao). Na categorizaçao do transtorno de personalidade borderline evidenciam-se os mecanismos defensivos, enquanto a clínica do desvalimento7 - assim também chamada a clínica do vazio8 - apresenta patologias como a depressao, as organizaçoes psicossomáticas, as adiçoes e os transtornos alimentares3,4. Ambas as categorizaçoes estao voltadas para a compreensao e complementam-se.

Essas patologias extrapolam os limites da clínica do simbólico por estabelecerem-se numa infância muito precoce, período em que a capacidade representacional ainda nao está desenvolvida. Assim, a evoluçao emocional posterior desses pacientes acaba comprometida por falhas ambientais. No adulto, a insuficiência de representaçoes, ocasionada pelo reforço de defesas narcisistas, e a dificuldade de manter laços afetivos, geram intensa angústia e disparam manifestaçoes voltadas ao corpo e ao ato, em lugar da atividade simbólica, essencial à construçao do psiquismo3.

Esses pacientes sao geralmente encaminhados à psicoterapia por clínicos, com queixas de sintomas físicos, sem uma definiçao clara de seu sofrimento. A um olhar mais atento, sao corpos que aparecem "desabitados de emoçoes"7(p.90). Seus relatos expressam os sentimentos de esvaziamento, de futilidade, de superficialidade, sentimentos explicados psicodinamicamente pelos vazios de significaçao simbólica.

Pode-se dizer, assim, que


sentir um afeto é requisito indispensável para o surgimento da consciência ligada às percepçoes. No entanto somente existe o registro do afeto quando existe um sujeito capaz de senti-lo. Quando falta um outro empático, o estímulo nao é processado e o afeto transborda ou se mantém diminuído, ficando assim sem o registro psíquico. A abulia aparece no lugar do sentir, tornando-se a expressao de uma dor carente de qualidade e de sujeito. Os quadros do desvalimento correspondem a um estado econômico no qual predomina uma dor sem qualificaçao afetiva7 (p.91)


O vazio acaba sendo a única coisa real ocasionada por experiências traumáticas precoces capazes de impedir o desenvolvimento pulsional erótico: em lugar do conflito - presente tanto na neurose quanto na psicose -, o movimento é de desligamento psíquico7. Assim, neste trabalho, além da caracterizaçao psicopatológica dos transtornos citados acima, pretendo explorar as vertentes de deficit e de conflito envolvidas em sua origem psicodinâmica e propor que sejam combinadas na psicoterapia de orientaçao psicanalítica.


ALGUMAS CONSIDERAÇOES DINAMICAS DA ORGANIZAÇAO BORDERLINE

Winnicott destaca, ao elucidar a unidade mae-bebê, no contexto de um ambiente suficientemente bom, o papel facilitador dos cuidados maternos primários baseados sempre na dupla amor-ódio. O bebê dificilmente percebe o cuidado materno, mas pode experimentar processos de suma importância para seu desenvolvimento psíquico, como a integraçao, a personalizaçao e a realizaçao9, e assim organizar-se narcisicamente.

O psique-soma forma-se nos primeiros dias de vida e, por isso, o bebê já tem condiçoes de, através dos cuidados maternos, ir integrando-se e sentir a continuidade de sua existência. O ambiente deve estar em perfeita consonância com suas necessidades, absolutas inicialmente. O ambiente bom começa pelo contato físico: o útero ou o colo, posteriormente englobando os aspectos emocional e psicológico. Uma mae boa, devotada e identificada com seu bebê, através de seus recursos narcísicos, de sua imaginaçao e de suas recordaçoes está apta a adaptar-se ativamente às necessidades dele, e proporcionar-lhe espaço psíquico para se desenvolver.

De absoluta, a necessidade do ambiente rapidamente se transforma em relativa, quando a mae boa comum passa a suficientemente boa, possibilitando que o bebê, através de sua atividade mental, compense suas deficiências. A mae tenta somente nao introduzir situaçoes que excedam a capacidade de compreensao e de compensaçao do bebê, mantendo seu ambiente tao simples quanto possível. A funçao materna inclui propiciar um fracasso gradual de adaptaçao ao bebê, consoante à sua capacidade de compensá-lo através do desenvolvimento de sua atividade mental e de sua compreensao. Dessa forma, ele passa a desenvolver tolerância em relaçao às necessidades do ego e à tensao pulsional.

Quando o meio ambiente é mau, invasivo, o bebê (psique-soma) imediatamente reage* a fim de propiciar a si mesmo condiçoes ambientais estáveis que lhe proporcionem, ao menos, o desenvolvimento físico. Essa reaçao perturba a continuidade da existência do psique-soma, comprometendo o estado necessário de dependência básica da mae. O contato íntimo com suas próprias necessidades fica desligado.


Certos tipos de fracasso materno, especialmente um comportamento irregular, produzem uma hiperatividade do funcionamento mental. Aqui no crescimento excessivo da funçao mental como reaçao a uma maternagem inconstante vemos que é possível o desenvolvimento de uma oposiçao entre a mente e o psique-soma, pois em reaçao a este estado anormal do meio ambiente, o pensamento do indivíduo começa a controlar e organizar os cuidados a serem dispensados ao psique-soma, ao passo que na saúde essa é uma funçao do meio ambiente. Quando há saúde, a mente nao usurpa a funçao do meio ambiente, tornando possível, porém, a compreensao e, eventualmente, a utilizaçao de seu fracasso relativo10 (p. 413-414)


O fracasso do cuidado materno, ou um "cuidado materno torturante", nos estágios iniciais de vida infantil pode ocasionar um funcionamento mental como coisa em si: o bebê substitui a mae boa, tornando-a desnecessária. No entanto, o que se produz clinicamente é a necessidade da mae real e o desenvolvimento falso com base na submissao ao ambiente10. Esse tipo de funcionamento mental é empecilho para o psique-soma, ou seja, um obstáculo para a desenvolvimento do sentido de continuidade do self. Tal estágio remonta a "épocas nas quais ainda nao se constituiu o ego como uma unidade que torna o sujeito capaz de se relacionar com os objetos e lidar com as experiências instintuais provenientes do id, de forma a serem sentidas como pertencentes a si"11 (p.75).

Relaciono a difusao da identidade e a utilizaçao de mecanismos defensivos tao primitivos nas patologias do vazio com a teoria winnicottiana de déficit: falhas ambientais muito precoces parecem estar fortemente envolvidas no desenvolvimento da mente-psique10, produzindo uma descontinuidade no self. O contato com um meio ambiente torturante, nesses casos, dá-se antes do contato com impulsos libidinosos e agressivos, que, na saúde, podem ser projetados. Como esse contato é anterior, o indivíduo passa a sentir-se responsável por esse meio ambiente mau, e, em vez de odiá-lo - pois perturbou o desenvolvimento de processos inatos antes que o psique-soma estivesse organizado o suficiente para amar ou odiar -, deixa-se desorganizar por ele.

A noçao de ambiente torturante, relaciono a ideia de afastamento materno - ausência tanto física quanto psíquica. O afastamento da mae por um período de tempo além de certo limite pode levar a um apagamento da lembrança da mae interna12, determinando o desinvestimento no objeto, o que explica o funcionamento chamado de pensamento operatório. Mesmo depois do reaparecimento do objeto, a sua nao-existência é vivida como realidade pelo bebê. A clínica com esses pacientes é caracterizada pela insuficiência da presença do objeto-analista** para diminuir as consequências da ausência do objeto original11.

Assim, tao importantes quanto a presença física da mae sao a sua presença e disponibilidade psíquicas, ideia abarcada por Bion no termo continência13.. A interaçao saudável entre mae e bebê propicia que ele, ainda sem um aparelho de pensar, valha-se da identificaçao projetiva para evacuar sua angústia para dentro da mae, livrando-se do desconforto. A mae cede sua funçao alfa e metaboliza a angústia de seu bebê, nominando-a e, por isso, devolvendo-a de forma mais tolerável. Ele, por sua vez, reintrojeta o que foi projetado juntamente com a funçao reverie materna5.

Casos de importantes perturbaçoes do pensamento sao explicados pela falta de continência materna dos impulsos agressivos do bebê, devolvidos a ele de forma nao metabolizada. De acordo com Bion, nessas situaçoes o desenvolvimento da funçao alfa no bebê é inviabilizado por ser ela falha primordialmente na mae. O conceito de mae morta descrito por Green14, que aborda o desinvestir libidinal da mae em seu bebê (este entao identificado com seu olhar vazio), ilustra uma das possíveis origens desses quadros psicopatológicos. Como salienta Winnicott15, "um bebê nao existe sem uma mae".

Dessa forma, uma mae-ambiente indisponível para identificaçoes impoe condiçoes frustradoras e torturantes ao self em formaçao. "O sucesso ou o fracasso de formaçao do self depende primordialmente da relaçao da mae com seu bebê iniciada durante a gestaçao. É no calor desta relaçao que tanto o inato quanto o que foi herdado irao se expressar"16 (p.93). O bebê, por sua vez, sem poder identificar-se com os desejos e sonhos de sua mae, recai num vazio de significado.

Penso - e encontro respaldo em Klein17 - que essa incontinência materna acaba sendo similar a um ambiente torturante, já que tais impulsos projetados atacam o bebê como algo exterior. Nesse caso, parece-me que as abordagens de déficit e de conflito encontram-se no sentido de uma falha ambiental no suprimento das necessidades de um self em processo de integraçao.

Ferro18 considera, assim como Winnicott19, a importância do fracasso gradual do ambiente para o desenvolvimento do self: ele entende que as síndromes da criança excessivamente bem tratada nao sao menos graves do que as da criança maltratada. Pais que pacificam demais as emoçoes e nao toleram provocar um tanto de frustraçoes inevitáveis impedem que seus filhos desenvolvam o aparato para metabolizar e conter as emoçoes. Patologias graves, com implicaçao de mecanismos de defesa muito primitivos - até a evacuaçao de todas as formas possíveis - parecem ter início nesse modo de relaçao.

A clínica atual incumbe-se cada vez mais do tratamento desses pacientes, carentes de um senso de identidade coerente e com relaçoes interpessoais inconstantes e caóticas. Com frequência, essas pessoas erigem muralhas defensivas contra sua angústia de desamparo e de desmoronamento psíquico (contra medos da perda de identidade, de ameaças de indiferenciaçao com os demais) e conseguem constituir família e ter uma vida profissional de êxito8. No entanto, acabam usando mecanismos psicóticos ou perversos como um recurso para fugir "para" o outro e "dentro" do outro, ou expressando sua angústia nas somatizaçoes e em transtornos narcisistas, com que congelam o afeto. Através dos mecanismos de onipotência, de onisciência, de prepotência e de arrogância, elas mantêm-se afastadas dos primitivos vazios de mae8.

As patologias do vazio sao caracterizadas desde a infância por uma ausência quase absoluta de emoçoes, compondo o que Tustin (1984 apud Zimerman, 2008) nomeia de "buracos negros", resultantes dessa rígida carapaça protetora contra a ameaça do sofrimento provindo de frustraçoes impostas pela realidade exterior19. Primitivas faltas e falhas da figura materna nas essenciais funçoes de uma suficientemente boa maternagem sao o fator comum aos transtornos componentes desses quadros.

Algumas consideraçoes diagnósticas sobre transtorno de personalidade borderline

Considero importante caracterizar o transtorno de personalidade borderline, e valho-me das opinioes de Schestatsky, das quais compartilho, nas consideraçoes diagnósticas desses quadros. A instabilidade nos relacionamentos interpessoais, nas manifestaçoes afetivas e na própria auto-imagem, associada a uma acentuada impulsividade4,6, sao manifestaçoes presentes também em quadros característicos das patologias do vazio e explicam a decisao de relacionar neste trabalho a organizaçao borderline e a clínica do vazio.

A difusao de identidade apresenta-se como uma falta de sentido de coerência e de consistência próprias, dificultando ao paciente avaliar seus valores, motivaçoes, comportamentos e interaçoes pessoais, assim como, empaticamente, dar-se conta das motivaçoes e dos estados mentais das outras pessoas. Essa falha empática resulta em crônicas dificuldades interpessoais, e no estabelecimento de relaçoes caóticas4. Há um importante potencial destrutivo para si e/ou para os outros (comportamentos automutilantes e suicidas, reaçoes desproporcionais de raiva e acusaçoes). Situaçoes de separaçao - por vezes desencadeadas por essa atitude - aliadas à hipersensibilidade às vivências de abandono ocasionam respostas intensas e esforços inadequados e catastróficos para evitá-las4.

O diagnóstico psicodinâmico, por sua vez, possibilita compreender a psicopatologia borderline e a pessoa que dela padece, e desenvolver estratégias e táticas terapêuticas para abordá-la. A existência de uma organizaçao estável de personalidade, subjacente aos sintomas e comportamentos, descritos acima, a diferencia das organizaçoes neuróticas e psicóticas, e é comum a um largo espectro de outros transtornos de personalidade (esquizóide, esquizotípica, histriônica, narcisista, antissocial e dependente)1,4. A manutençao do teste de realidade expressa-se na ausência de delírios e de alucinaçoes, no discernimento entre eu e nao-eu, e entre estímulos e percepçoes internos e externos, assim como na capacidade de avaliar realisticamente os próprios afetos, seus comportamentos e os conteúdos de seus pensamentos, em termos das normas sociais comuns4. Diferentemente do que ocorre na neurose - regida pela repressao -, os responsáveis por proteger o ego de experiências contraditórias de si mesmo e dos demais objetos sao os mecanismos de defesa mais primitivos, como a negaçao, a idealizaçao, a identificaçao projetiva e o controle onipotente, relacionados com o processo de cisao (splitting).


A ABORDAGEM PSICOTERAPICA

A organizaçao de personalidade borderline foi abordada segundo dois pontos de vista, a saber: o da predominância do conflito e o da predominância do déficit4. A primeira abordagem foi proposta por Kernberg1 que, apoiado em Melanie Klein, relaciona a organizaçao de personalidade borderline a uma dificuldade do paciente no manejo de sua intensa agressao (em grande parte inata). Esses impulsos agressivos pobremente modulados incapacitam o sujeito de "sintetizar introjetos negativos e positivos" em imagens coerentes do próprio self e dos seus objetos4. Assim, mecanismos de defesa sao ativados com o intuito de evitar uma catástrofe interna e de preservar a sobrevivência da "mae boa" internalizada.

A psicoterapia de orientaçao analítica focada no conflito tem como objetivo tornar os padroes inconscientes de funcionamento mais acessíveis à percepçao do paciente para que melhor identifique seus estados mentais e os das outras pessoas4, assim como incrementar a tolerância com seus afetos, construir a capacidade de adiar impulsos através do desenvolvimento da funçao reflexiva da mente e aumentar seu insight nas interaçoes interpessoais.

Já a partir da abordagem do déficit, a psicopatologia borderline é caracterizada pelo fracasso do paciente em desenvolver a introjeçao de objetos internos que desempenhem funçoes de tranquilizaçao e de suporte emocional. A experiência interpessoal com um terapeuta capaz de, simbolicamente, exercitar as funçoes de holding e de tranquilizaçao - compensatórias da funçao parental na infância - é considerada o principal fator curativo da psicoterapia. O decisivo é "a presença constante, consistente, cuidadosa e nao-punitiva do terapeuta, que, ao sobreviver aos ataques furiosos e destrutivos do paciente continuaria desempenhando suas funçoes de holding, introduzindo calma em meio ao caos emocional presente"4 (p. 615). A psicoterapia pela abordagem do déficit objetiva fortalecer defesas, ajustar a auto-estima, validar sentimentos, favorecer a internalizaçao da relaçao terapêutica e criar maior capacidade para lidar com sentimentos perturbadores.

A etiologia desses quadros é multifatorial, envolvendo fatores genéticos, bioquímicos, interpessoais e ambientais. Dessa forma, nao há como prescrever tratamentos únicos, mas procurar a abordagem mais adequada para cada caso: pacientes mais regressivos demandam técnicas enfaticamente suportivas, enquanto aqueles com funcionamento mais integrado beneficiam-se de abordagens exploratórias e dirigidas ao insight, sem nenhuma incompatibilidade técnica entre uma e outra. Mais do que isso, ambos os tipos de abordagem sao utilizados com os mesmos pacientes e integrados na prática4, dependendo do contexto e do foco presente no material psicológico trabalhado. Kernberg1, apesar de sua abordagem conflitual, faz mençao2 a concepçao winnicottiana, salientando a importância do holding, assim como ao containment de Bion, sublinhando a necessidade da "capacidade do terapeuta em integrar, em intervençoes interpretativas, um entendimento tanto do comportamento do paciente como da contratransferência, sem "atuar" a última"2 (p.636).

Green (apud Bizzi6 2011) ressalta que, em situaçoes em que o paciente demanda preenchimento de seu espaço psíquico, uma atitude mais expectante do terapeuta pode ser sentida como um "silêncio de morte", enquanto a atividade interpretativa pode ser prematura e saturada, perpetuando o transbordamento. A verbalizaçao (nao-interpretativa) parece mais efetiva nesses casos, funcionando, temporariamente, como o cuidado materno, e possibilitando a maior integraçao do self e o estabelecimento de relaçoes mais maduras (com objetos totais).


A RELAÇAO TRANSFERENCIAL-CONTRATRANSFERENCIAL

O vínculo transferencial/contratransferencial com pacientes borderline repete sua tendência inconstante, impulsiva e muitas vezes destrutiva de relacionar-se; por isso, esses tratamentos seguidamente evoluem para impasses terapêuticos6. O manejo técnico nos casos da organizaçao borderline deve ter o intuito de despertar o paciente de um estado de "des-istência", e acompanhá-lo a um estado de "ex-istência"8.

As interpretaçoes podem nao ser "escutadas" pelo paciente - encapsulado -, e a boa funçao continente logo será desconsiderada por ele; assim, o terapeuta deve propiciar-lhe um estado de regressao similar ao dos primórdios de seu desenvolvimento. O setting analítico passa a ser uma espécie de "útero psicológico" (Tustin, 1984 apud Zimerman, 2008) funcionando como uma incubadora para que o self em estado prematuro possa obter provisoes essenciais que nao se realizaram na infância precoce. Algumas especificidades desse encontro, tais como a tendência à regressao, a valorizaçao da comunicaçao nao-verbal e a experiência de mutualidade vivenciada pela dupla paciente/terapeuta***, sao inevitavelmente comparáveis à relaçao mae-bebê em seus primórdios20.


O analista, através do que poderia ser chamado de "preocupaçao terapêutica primária", aproximar-se-ia, através da empatia e de sua subjetividade, do reconhecimento das necessidades também primitivas do seu paciente. Este encontro possibilitaria, dentro das limitaçoes impostas pelo enquadre analítico, a retomada de processos psíquicos até entao paralisados ou mesmo desconhecidos pela dupla, o que configuraria, no meu ponto de vista, o processo analítico em si20 (p.171)


Saliento que, assim como o desenvolvimento do bebê só ocorre na relaçao com o outro - a mae - e a partir do momento em que a mae o percebe como um indivíduo20, a relaçao terapêutica só acontece quando o terapeuta reconhece seu paciente como um indivíduo capaz, adulto e com recursos egóicos.

Este trecho de Winnicott21, ao referir-se à criaçao do objeto transicional, ilustra o papel da criatividade no desenvolvimento infantil - e do empoderamento desse ser. No caso da psicoterapia, a criatividade está diretamente ligada à capacidade de pensar, tanto em sua ampliaçao, quanto como reflexo dela:


No se trata tanto de "Pedid y os será dado" como de "Tended la mano y estará allí para que toméis, lo uséis y lo gastéis". Este es el comienzo y debe perderse en el proceso de presentación del mundo real, del principio de realidad; pero en la salud hallamos el modo de vivir creativamente y recobrar así el sentimiento de que las cosas tienen sentido. El síntoma de una vida no creativa es el sentimiento de que nada tiene sentido, de futilidad, de "A mí qué me importa"21 (p.61)


Os sentimentos contratransferenciais também sao um recurso de suma importância no diagnóstico diferencial desses casos já que possibilitam ao terapeuta sentir-se como se sente o paciente22. Através da identificaçao com seu id, com seu ego e com seus objetos internos, o psicoterapeuta pode compreender o funcionamento psicodinâmico de seu paciente, que nem sempre comunica verbalmente sentimentos e sensaçoes tao primitivas.

Contratransferencialmente, os sentimentos despertados no terapeuta sao de impotência, de paralisia, de rechaço22, de nao-entendimento do que está se passando, além de um estado mental de tédio e de perda de esperança no trabalho que realiza com esse paciente. Muitas vezes, a sonolência pode evidenciar a desvitalizaçao do campo6, que se encontra entao sob a primazia da pulsao de morte. O grande risco nesses casos é o da instalaçao de uma "contratransferência de desistência", pela qual o terapeuta, com sua mente paralisada, trabalha de forma apática, distante e desesperançada. Esse tipo de atitude inviabiliza o tratamento, já que a expectativa é que ele possa desempenhar o modelo de uma "mae viva", que supra as falhas da mae morta, e demonstre garra ao ir ao encontro desse paciente e sacudi-lo por meio de sua atividade interpretativa. Muito bem dito por Winnicott "Ao fazer psicanálise, meu objetivo é manter-me vivo; manter-me bem; manter-me acordado. Meu objetivo é ser eu mesmo e me comportar como tal" (Winnicott, 1962 apud Sousa, 2011).

A modificaçao do setting - seja na flexibilizaçao de horários de atendimentos, na abertura para ligaçoes telefônicas em situaçoes de crise, nas frequentes intervençoes de apoio, no uso associado de fármacos, nas hospitalizaçoes e nas entrevistas com familiares - torna-se importante em funçao do grande risco de suicídio nesses casos. A ansiedade de separaçao também é muito frequente, e o contato mais próximo com o terapeuta possibilita ao paciente maior segurança no vínculo, aplacando em alguma medida sua ansiedade de separaçao.

Compartilho a ideia de Schestatsky4 de que muitos pacientes apresentados por Freud, se avaliados hoje, seriam considerados apresentando uma organizaçao borderline de personalidade****, pela intensidade e impulsividade transferenciais. Depreende-se que Freud23 sugeria a modificaçao na técnica psicanalítica estrita, com alteraçao do setting-padrao em alguns casos, alteraçao incorporada atualmente na psicoterapia dos pacientes borderline.


CONSIDERAÇOES FINAIS

Abordei as noçoes psicodinâmicas envolvidas na organizaçao borderline e relacionei-as às patologias do vazio, cuja origem se dá numa fase muito precoce do desenvolvimento, e, por isso, com alto prejuízo da noçao de eu.

As vivências primordiais do bebê no contato com a mae-ambiente, e o holding e a continência desempenhados pela figura materna foram salientados como elementos indispensáveis para a integraçao do self e para uma vida criativa. Os desencontros na relaçao mae-bebê, as faltas maternas relacionadas à maior ou menor capacidade compreensiva e adaptativa de seu bebê foram apresentados como fatores propiciadores de um desenvolvimento falho no sentimento de continuidade do eu, o que, no adulto, expressa-se na organizaçao borderline - entre outras apresentaçoes mais graves nao contempladas neste trabalho, como a psicose.

Ressaltei a inconsistência de self, a inconstância nas relaçoes e os ataques maciços à relaçao terapêutica como características comuns à organizaçao borderline e às patologias do vazio. Os aspectos diagnósticos dos quadros específicos nao foram alvo de detalhamento neste trabalho, que valorizou a origem dessas psicopatologias, e que defende a combinaçao entre as abordagens de déficit e de conflito no tratamento desses casos.

O setting ganhou destaque por seu papel fundamental na psicoterapia de orientaçao analítica, como espaço de continência, e, por isso, possibilitador de crescimento potencial do aparelho de pensar. Nesses tratamentos, a meta é buscar desenvolver a capacidade ampliada de pensar propiciando ao paciente conter seus impulsos e estabelecer uma vida e relaçoes mais estáveis.

Salientei a responsabilidade do terapeuta na manutençao do setting como um espaço seguro, constante, confiável, em que o paciente possa regredir e restaurar, através de sua atividade interpretativa, seu self. Uma conduta ativa e atenta aos aspectos transferenciais/contratransferenciais é chave fundamental para acessar o nível nao verbal de comunicaçao e torná-lo cognoscível ao paciente.

Finalizei relembrando o conceito winnicottiano de espaço potencial, e subsidiando com um belo trabalho20, que sublinha a importância de o setting terapêutico poder acolher a ilusao e os aspectos criativos do paciente, até entao encapsulados como uma defesa à relaçao desarmoniosa entre eu e ambiente. Estes, juntamente com aspectos criativos do terapeuta, podem e devem permitir o nascimento de um espaço novo e transformador.


REFERENCIAS

1. Kernberg O, et al. Patologia borderline e alternativas psicoterápicas In: Kernberg O, et al. Psicoterapia psicodinâmica de pacientes borderline. Trad. Rita de Cassia Sobreira Lopes. Porto Alegre: Artes Médicas; 1991, p.13-21.

2. Kernberg O. Abordagem psicodinâmica das explosoes emocionais dos pacientes borderline. In: Psicoterapia de Orientaçao Analítica: fundamentos teóricos e clínicos. Organizadores: Eizirik CL, Aguiar RW, Schestatsky SS e colaboradores. 2.ed. Porto Alegre: Artmed; 2005, p.628-645.

3. Libermann Z. Patologias atuais ou psicanálise atual? In: Revista Brasileira de Psicanálise, 2010, 44 (1), p.41-49.

4. Schestatsky SS. Abordagem psicodinâmica do paciente borderline. In: Psicoterapia de Orientaçao Analítica: fundamentos teóricos e clínicos. Organizadores: Eizirik CL, Aguiar RW, Schestatsky SS e colaboradores. 2.ed. Porto Alegre: Artmed; 2005, p.628-645.

5. Ribeiro LVM. Quando nao há pensamento: o que a psicoterapia de orientaçao analítica pode fazer por pessoas com transtorno ou organizaçao borderline. In: Revista Brasileira de Psicoterapia, 2010, 12 (1), p.85-99.

6. Bizzi IZ. A clínica borderline: da psicopatologia às configuraçoes do campo analítico. Revista de Psicanálise da SPPA, 2010, v 17.

7. Costa GP. Psicopatologia psicanalítica contemporânea: clínica do desvalimento. Revista Brasileira de Psicanálise, 2008 [acesso em 2015 set 25]; 42(2), 89-102. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbp/v42n2/v42n2a09.pdf

8. Zimerman DE. A clínica do vazio. In: Zimerman DE. Manual de Técnica Psicanalítica: uma re-visao. Porto Alegre: Artmed; 2008, p.289-294.

9. Winnicott DW. Desenvolvimento emocional primitivo. In: Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Traduçao de Jane Russo. Francisco Alves; 1945, p.269-285.

10. Winnicott DW. A mente e sua relaçao com o psique-soma. In: Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Traduçao de Jane Russo. Francisco Alves; 1978, p.409-425.

11. Decker C. As patologias do vazio e as mudanças na técnica. In: Anais do II Simpósio Interno Integrado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, 2007, 2, p.69-88.

12. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Traduçao: José Octávio de Aguiar Abreu e Vanede Nobre. Rio de Janeiro: Imago; 1975.

13. Bion WR. Diferenciaçao entre a personalidade psicótica e a personalidade nao-psicótica. In: Melanie Klein Hoje: Desenvolvimentos da teoria e da técnica. Volume I. Editado por Elizabeth Bott Spillius; traduçao de Belinda Haber Mandelbaum. Rio de Janeiro: Imago; 1991, p.69-86.

14. Green A. A mae morta. In: Green A. Narcisismo de Vida Narcisismo de Morte. Sao Paulo: Editora Escuta Ltda; 1988, p.10-29.

15. Winnicott DW. Teoria do relacionamento paterno-infantil. In: O ambiente e os processos de maturaçao. Porto Alegre: Artes Médicas; 1982, p.38-54.

16. Martini II. Psiquismo fetal, vivências traumáticas e psicoterapia. Revista Brasileira de Psicoterapia, 2004, 6 (1), p.89-98.

17. Klein M. Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In: Os progressos da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar; 1978/1946, p.313-343.

18. Ferro A. Evitar as emoçoes, viver as emoçoes. In: Ferro A. Evitar as emoçoes, viver as emoçoes. Traduçao: Marta Petricciani. Porto Alegre: Artmed; 2011, p.13-27.

19. Winnicott DW. Agressao e suas raízes. Privaçao e delinquência. Sao Paulo: Martins Fontes; 2005, p.93-110.

20. Sousa N. A cena psicanalítica - encontro e criaçao no espaço potencial. In: Anais do V Simpósio Interno Integrado - AC/IP-SPPA, 2011, 5, p.169-175.

21. Winnicott DW. Vivir creativamente. In: Winnicott DW. El hogar, nuestro punto de partida: ensayos de un psicoanalista. Buenos Aires; Paidós, 2011, p.48-65.

22. Somenzi L. A contratransferência no atendimento com transtornos alimentares. In: Anais do V Simpósio Interno Integrado - AC/IP-SPPA, 2011, 5, p.151-165.

23. Freud S. História de uma neurose infantil ("O Homem dos Lobos" 1918[1914]). In: Obras Completas. Sao Paulo; Companhia das Letras, 2010, 14, p. 13-160.










Mestrado - (Psicóloga) - Santa Maria - RS - Brasil

Correspondência
Carina Teixeira Leite
Rua Pinheiro Machado, 2380/305
97060-500 Santa Maria, RS, Brasil

Submetido em: 17/10/2017
Aceito em: 23/03/2018

Instituiçao: Centro de Estudos Luis Guedes - Porto Alegre - RS - Brasil

*Winnicott9 sustenta que a psicose é uma doença de deficiência ambiental.

**A autora escreve a partir de uma abordagem da clínica psicanalítica, mas podemos transportar a ideia à psicoterapia de orientaçao analítica.

***A autora escreve a partir de uma abordagem da clínica psicanalítica, mas podemos transportar a ideia à psicoterapia de orientaçao analítica.

****Ao realizar um diagnóstico estrutural, Otto Kernberg em 1967, introduz esse termo. Antes dele, em 1963, Modell enfatizava o tipo de relaçao estabelecida com o terapeuta nos episódios psicóticos, quando ocorriam, que era "uma forma primitiva e consistente de relaçoes de objeto na transferência", chamando de "transferência transicional", em que o terapeuta, embora visto pelo paciente como um objeto exterior a ele, este ainda o considerava como uma extensao de si mesmo.

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo