Rev. bras. psicoter. 2018; 20(1):105-109
Doellinger Ov. Possuídos - da prisao do adoecer psicótico. Rev. bras. psicoter. 2018;20(1):105-109
Resenha
Possuídos - da prisao do adoecer psicótico
Bug - the prison of the psychotic illness
Orlando von Doellinger
Resumo
Abstract
Na representaçao cinematográfica da doença mental (e da patologia psicótica, em particular) encontramos, com alguma frequência, lugares-comuns que reverberam erradas convicçoes que atravessaram os tempos, do Renascimento ao romantismo do fin de siècle (Porter, 2003)1. O primeiro é a frequente associaçao entre a doença mental grave e a genialidade, ajudando a manter a estafada mentira que a loucura advém do cansaço, do "esgotamento" das capacidades e que, por isso, assola preferencialmente as mentes mais exercitadas, inteligentes ou portadoras de capacidades extraordinárias. A segunda alegoria é ainda mais absurda: a associaçao da doença mental (e da psicose) à liberdade criativa, quando a psicose é a mais inexorável das prisoes.
Filmes com razoável sucesso nos últimos anos, como "Uma mente brilhante" (Ron Howard, 2001)2 "A prova" (John Madden, 2005)3 ou "O solista" (Joe Wright, 2009)4, transmitem perspectivas da doença mental que, de forma mais ou menos explícita, tendem a oferecer ao espectador uma visao que nega o caráter catastrófico (intrapsíquico e interpessoal) da psicose. Ao mesmo tempo, as técnicas cinematográficas utilizadas, nesses filmes, tendem a colocar o espectador no lugar de mero observador externo (retirando-lhe a possibilidade de duvidar e de se angustiar).
Na cinematografia mais recente, há, contudo, outros exemplos de excelentes filmes onde a representaçao da doença mental é, seguramente, mais verdadeira. A filmografia de John Cassavetes, os filmes de Roman Polansky (particularmente os dos anos de 1960 e de 1970), bem como alguns dos filmes de Alfred Hitchcock poderiam ser a base para um bom tratado de psicopatologia.
Mais recentemente, David Cronenberg e David Lynch sao dois dos autores ainda em atividade que, sistematicamente, melhor nos dao a conhecer os meandros dos processos mentais e, consequentemente, a doença mental.
"Videodrome: a síndrome do vídeo" (1983)5 e "Spider: desafie sua mente" (2002)6 de David Cronenberg sao óbvias representaçoes da vivência do processo psicótico experienciado na unidade somatopsíquica do indivíduo (unidade presente em toda a obra deste realizador).
Do lado de David Lynch salientamos "Estrada perdida" (1997)7 ou "Império dos sonhos" (2006)8 onde o espectador é colocado na cabeça, no processo mental, do portador da patologia psiquiátrica, o que, porventura, explicará a inquietaçao, a incompreensao e a rejeiçao do grande público a estes filmes.
Por vezes, contudo, outros autores e outros filmes nos surpreendem. William Friedkin, um dos expoentes da brat pack generation e realizador de clássicos como "Operaçao França" (1970)9 ou "O exorcista" (1973)10 lançou, em 2006, "Possuídos"11. Filme de reduzido orçamento, "Possuídos" é um objecto cinematograficamente relevante na verdade que transmite na representaçao da doença mental. Ao vê-lo os espectadores nao sao apenas observadores da loucura; sao, também, muitas vezes, confrontados com as dúvidas que certamente assaltarao alguns dos nossos pacientes.
No início há um plano picado sobre um motel, no meio de nada. É um plano que se vai repetir (antes do filme se confinar a um dos quartos desse motel) e que na medida em que se repete nos transmite uma sensaçao de que alguém observa (persegue?) uma das residentes (Agnes; interpretada por Ashley Judd).
No quarto, de paredes maltratadas e com um ar condicionado que funciona ao soco, vai tocar algumas vezes um telefone, sem que ninguém fale quando Agnes atende.
A dúvida, a suspeita (e quao fina pode ser a linha que estabelece o limite para a paranóia?) parece começar a instalar-se. Está alguém no outro lado do telefone? Será Agnes de facto "perseguida" pelo ex-marido? Estaremos nós, espectadores, a desconfiar demasiado?
É no trabalho de Agnes que lhe é (e nos é) apresentado Peter (Michael Shannon). A postura e a motricidade de Peter colocam-nos de imediato sobreaviso (para além do fato de que ele é o único homem visível num bar de lésbicas). Há uma lentidao, um movimento repetitivo do membro superior direito, uma obliquidade do corpo e do olhar. Há qualquer coisa...
Quando Agnes e Peter acabam por passar a noite no mesmo quarto (mas nao na mesma cama, pois Peter, "filho de um pregador sem igreja nem discípulos", tinha, segundo ele, "arrumado o sexo" há muito...) há um outro sinal de alarme. E, desta vez, literal. O ruído de um detetor de incêndios é confundido com um eventual inseto e quando damos conta já a conversa vai em "envenenamentos" por "amerício 241".
O aparecimento do ex-marido de Agnes, de manha, quando ela acorda e pensa estar a agradecer o café a Peter, nao ajuda a desvanecer a ideia da conversa tida no dia anterior onde se dizia que "nunca ninguém está em segurança"...
Após Peter e Agnes terem relaçoes sexuais (e muitas interpretaçoes poderiam ser feitas acerca deste evento, sendo que Agnes, no final, vai acabar por fazer a interpretaçao delirante dela) Peter diz-se mordido no pulso (e essas "primeiras" lesoes nós nao as vemos) por uns minúsculos insectos. Agnes vê as lesoes, mas parece nao ver os insectos. Parece...
O filme passa a centrar-se no espaço encerrado do quarto, que começa a modificar-se, e, à medida que vamos sabendo novos fatos da vida anterior dos protagonistas, dúvidas e angústias também se nos levantam.
Agnes era, provavelmente, vítima de violência doméstica; terá perdido o filho num supermercado; e está em fuga de um ex-marido acabado de sair da prisao. Peter é um veterano da Guerra do Golfo, de onde foi evacuado por um provável surto psicótico e está, também ele, em fuga (de um provável internamento psiquiátrico e de um tal Dr. Sweet, saberemos mais tarde).
Assistimos, ao longo do filme, à espantosa representaçao de duas diferentes formas do adoecer psicótico.
O luto nao resolvido de Agnes vai conduzi-la a um investimento maciço em Peter (nao por acaso, só uma vez têm relaçoes sexuais, para que depois a relaçao se torne em algo de cuidador, de materno-filial, evidenciada, até, numa lindíssima "Pietà"). E é esse investimento que a conduz à loucura. No caso dela, nao o fazer, nao ficar louca (psicose induzida? Mas nao por substâncias, ainda que consuma cocaína) seria perder Peter. E perdê-lo (perder o filho uma vez mais?) seria insuportável.
No caso de Peter perceberemos que a situaçao é bem grave e já antiga. E nao uma "psicose delirante com tendências esquizofrénicas" (como dirá o Dr. Sweet) mas sim uma esquizofrenia. Nenhuma psicose delirante se apresenta com tamanha exuberância sintomática e com total interferência na conduta social do paciente.
Atentemos nos monólogos finais de ambos os protagonistas. Num quarto que foi sofrendo graduais alteraçoes e agora se encontra revestido por papel de alumínio para prevenir as transmissoes de sinais por parte dos insectos, ouvimos Peter e percebemos a extensao do sistema delirante e das bizarras associaçoes que o conduzem das experiências militares a chips introduzidos em todos os seres humanos, de acçoes da CIA ao Unabomber (Ted Kakzynski) ou a Timothy Mcveigh. Isto depois de ter morto o Dr. Sweet, que nao passaria de "uma máquina"...
Depois ouvimos Agnes que, num processo de interpretaçoes e associaçoes delirantes, vai atingir a "revelaçao" final, a verdadeira epifania que "ligará" tudo o que lhes diz respeito (desde o desaparecimento do seu filho até à multiplicaçao dos insectos).
O final, o suicídio, é entao encarado como a única libertaçao possível daquela prisao.
Um par de personagens principais e três acessórias (em quem nao podem confiar); um quarto cada vez mais claustrofóbico; um sentimento de perseguiçao sem tréguas; uma prisao sem fim. Agnes e Peter estao enclausurados na loucura. E creio que nós estivemos muito perto deles e das suas dúvidas. E, de forma admirável, William Friedkin nem por uma vez nos mostrou o que eles viam: apenas sabemos o que eles diziam ver e sentir, exatamente como na realidade clínica.
Também daí virá o mal-estar que este filme poderá transmitir a quem o vê. Coloca dúvidas. Angustia. Nao é "bonito" de se ver. Mas a esquizofrenia é assim...
REFERENCIAS
1. Porter R (2003). Breve historia de la locura. Madrid/México, D.F.: Turner Publicaciones/Fondo de Cultura Económica
2. Howard R (realizador). 2001. A beautiful mind (filme). EUA: Universal Pictures.
3. Madden J (realizador). 2005. Proof (filme). EUA: Miramax
4. Wright J (realizador). 2009. The soloist (filme). EUA: DreamWorks Pictures.
5. Cronenberg D (realizador). 1983. Videodrome (filme). Canada: Fimplan International/Guardian Trust Company.
6. Cronenberg D (realizador). 2006. Spider. Canada/Reino Unido/França: Odeon Films.
7. Lynch D (realizador). 1997. Lost Highway (filme). França/EUA: October Films/CiBy2000/Asymmetrical Productions/Lost Highway Productions LLC.
8. Lynch D (realizador). 2006. INLAND EMPIRE (filme). França/Polónia/EUA: StudioCanal/Fundacja Kultury/Camerimage Festival/Absurda/Asymmetrical Productions/Inland Empire Productions.
9. Friedkin W (realizador). 1971. The French connection (filme). EUA: D'Antoni Productions.
10. Friedkin W (realizador). 1973. The exorcist (filme). EUA: Warner Bros.
11. Friedkin W (realizador). 2006. Bug (filme). EUA: Lions Gate Films.
PhD - (Psiquiatra e Psicanalista. Diretor do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa) - Penafiel - Portugal
Correspondência
Orlando von Doellinger
Avenida padre Américo, 210
4564-007 Guilhufe - Penafiel - Portugal
Submetido em 21/07/2017
Aceito em: 20/02/2018
Instituiçao: Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa
Colaboraçoes: Resenha elaborada por Orlando von Doellinger.
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