Rev. bras. psicoter. 2017; 19(3):53-62
Tsutsumi MMA, Menezes ABC. Terapia Comportamental Infantil na relaçao mae e filho ante o luto materno - um relato de caso. Rev. bras. psicoter. 2017;19(3):53-62
Relato de Caso
Terapia Comportamental Infantil na relaçao mae e filho ante o luto materno - um relato de caso
Child Behavior therapy in the mother-child relationship towards the mother's mourning - a case report
Myenne Mieko Ayres Tsutsumia; Aline Beckmann de Castro Menezesb
Resumo
Abstract
A perda de um ente querido pode desencadear grande sofrimento. Basso e Weiner1 defendem que a imprevisibilidade dessa perda interfere no nível de dificuldade em superá-la. Perdas repentinas (e.g., acidentes ou suicídio), por exemplo, tendem a ser mais difíceis do que perdas relativamente previstas como no caso de pacientes hospitalizados por um período de tempo. Esses autores também colocam que o grau de parentesco é outro fator que pode agravar esta situaçao e quanto mais próximo, mais difícil. Para uma criança, portanto, perder um genitor pode ser uma experiência muito complicada em diversos níveis. Tem-se recomendado que o diálogo sem distorçoes ou fantasias a respeito do que aconteceu com o ente perdido, que a oportunidade de a criança se expressar e que a habilidade do cuidador de transmitir segurança e amparo sao fundamentais para que ela possa superar esse momento doloroso2-4. Neste sentido, os envolvidos podem se beneficiar da ajuda de um profissional de psicologia neste processo.
A Terapia Comportamental Infantil (TCI) é uma modalidade de psicoterapia adaptada às demandas e restriçoes do seu cliente, que é a criança, e cujo principal objetivo é analisar funcionalmente e alterar as contingências que aumentam a probabilidade ou mantêm a ocorrência de comportamentos-problema5. Para tanto, a utilizaçao de estratégias lúdicas possibilita meios alternativos ao relato verbal, muitas vezes ainda limitado devido à pouca idade, para a expressao de sentimentos13. Dentre as estratégias lúdicas que podem ser utilizadas, a situaçao de jogos, brincadeiras e fantasia envolvem comportamentos relevantes no estabelecimento de um bom relacionamento na díade psicoterapeuta-cliente, o que possibilita o fornecimento de informaçoes valiosas acerca das variáveis que controlam o comportamento da criança6,7,14.
As intervençoes na TCI nao sao feitas apenas com a criança em si, mas também com as pessoas que constituem seu ciclo de convivência, visto que estes podem ser peças-chave na mudança comportamental esperada. Considerar o meio relacional da criança pode ampliar as possibilidades de intervençao, uma vez que quem traz a queixa sao os pais ou responsáveis que acreditam que a criança possui determinadas dificuldades, percepçao esta que nem sempre é conhecida pelas crianças ou por elas compartilhadas8.
Diversos estudos têm apontado que pais que possuem relaçoes saudáveis com seus filhos sao aqueles com índices elevados de autoconhecimento e de habilidades sociais adequadas9-12. No entanto, nem sempre essas características fazem parte do repertório comportamental dos pais e sessoes de orientaçao com estes podem ser úteis para que eles identifiquem suas próprias demandas e suas principais dificuldades ao lidar com as demandas de seus filhos e, junto com o psicoterapeuta, traçar estratégias para solucioná-las.
Considerando que relatos sobre conduçoes clínicas em psicoterapia comportamental infantil envolvendo suicídio parental juntamente com a investigaçao de como o luto materno podem impactar no comportamento da criança nao sao muito frequentes na literatura, o objetivo do presente trabalho é relatar um atendimento psicoterapêutico baseado na Terapia Analítico-Comportamental Infantil, com uma criança cujo pai se suicidou, realizado para o cumprimento de um Estágio Supervisionado em Atendimento Clínico na Abordagem Comportamental, com duraçao de nove meses, em uma clínica escola de uma universidade na cidade de Belém, Pará.
CASO CLINICO
Mário (todos os nomes sao fictícios) era uma criança brasileira de 6 anos de idade, estudante do Ensino Fundamental I em uma escola particular e filho único. Estava iniciando a alfabetizaçao, porém já sabia ler com certa fluência. Tinha amigos na escola onde estudava, mas passava a maior parte do tempo com seus primos e tios, os quais moravam perto da sua casa. Tinha pouco contato com as crianças vizinhas, pois a mae nao permitia que ele saísse para brincar sem supervisao.
Joao, pai de Mário, suicidou-se quando Mário tinha dois anos de idade, na casa onde vivia com a esposa e o filho. Segundo Joana, mae de Mário, a sua morte foi o final de um processo de sofrimento em decorrência de fortes dores originadas em um acidente que Joao sofreu e de um diagnóstico de fibromialgia com episódios depressivos. Segundo ela, pai e filho conviveram durante esses dois anos, mas Mário nao tinha muitas lembranças sobre pai. Joana contou para o filho que o pai havia morrido e que agora "estava no céu". Quando Mário passou a frequentar a escola, atividades de dever de casa que envolviam o tema "família" como, por exemplo, colagem de fotos, ou eventos, como o dia dos pais, eram contextos nos quais o cliente perguntava para a mae como seu pai morreu. A mae entao respondia que ele ficou muito doente e faleceu. Joana relatou que estes questionamentos a deixavam muito angustiada, pois nao sabia se deveria falar sobre o suicídio ao filho e, em caso afirmativo, qual seria o melhor momento. Ela levou o filho à psicoterapia para que ele pudesse lidar com essa informaçao, caso ela precisasse contar.
Foi hipotetizado que as perguntas do cliente em relaçao à morte do pai eram mantidas pela falta de informaçoes sobre o pai em decorrência da apresentaçao de um comportamento de esquiva da mae quando o cliente solicitava tais informaçoes. Assim, os principais objetivos terapêuticos foram: 1) ampliar o conhecimento que o cliente tinha acerca do pai e 2) instrumentalizar a mae para que ela mediasse esse processo. Houve objetivos adicionais, mas que fogem do escopo do presente relato.
MATERIAIS E INSTRUMENTOS
Foram utilizados os brinquedos disponíveis nas salas de atendimento infantil da Clínica Escola utilizada, os quais eram bastante variados contendo brinquedos típicos de ambos os sexos, como por exemplo, bonecas, carrinhos, bola, jogo da memória e xadrez. Também estavam disponíveis outros recursos lúdicos como revista de colorir e livros de contos infantis. Este jogo da memória, o qual continha imagens de animais, foi adaptado pela terapeuta com o intuito de obter informaçoes sobre o cliente. Sendo assim, no jogo foi estabelecido que quem acertava deveria responder uma pergunta aleatória feita pelo oponente.
Além desses brinquedos, foi criado pela primeira autora deste trabalho um jogo de tabuleiro chamado Jogo dos Sentimentos - Comporta Games com o objetivo de explorar e identificar os sentimentos do cliente. Após rolar um dado de seis lados, o jogador deveria percorrer o tabuleiro com um pino. Cada casa do tabuleiro continha uma atividade diferente, como por exemplo, voltar uma casa, pular cinco vezes com a perna esquerda ou tirar uma carta, a qual continha uma pergunta que jogador deveria responder. A maior parte das perguntas pedia que o jogador relatasse qual sentimento teria em determinada situaçao (e.g., "Como você sente quando briga com alguém?"). Porém, também havia outros tipos de pergunta que ajudavam a terapeuta a conhecer o dia-a-dia da criança, como por exemplo, "Qual seu esporte favorito?" e "Quais os nomes dos seus melhores amigos?". Na confecçao deste jogo foram utilizadas folhas de papel A4 para a impressao da imagem do tabuleiro e das cartas com as perguntas. Além disso, um pedaço de papelao no formato da folha A4 e uma folha de cartolina serviram de suporte para a imagem do tabuleiro e para as cartas, respectivamente.
A publicaçao das informaçoes coletadas a partir do processo psicoterapêutico conduzido com a criança foi autorizada pela mae do cliente por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Todos os cuidados éticos foram tomados de acordo com o Código de Ética Profissional do Psicólogo (Resoluçao CFP Nº 010/05). Assim, todos os nomes citados no presente relato sao fictícios.
PROCEDIMENTO
No total foram realizadas 25 sessoes, sendo 12 com Mário e 13 com Joana. Apesar do cliente foco das sessoes de psicoterapia ter sido a criança, as sessoes foram dividas quase que igualmente para mae e filho, pois avaliou-se a pertinência do acompanhamento da mae e buscou-se respeitar sua disponibilidade de tempo, podendo estar na clínica apenas uma vez por semana.
Utilizou-se a Terapia Comportamental Infantil nas 12 sessoes conduzidas com Mário e, dentre essas, três sessoes foram de investigaçao, sete de intervençao e duas de encerramento. Todas as sessoes tinham duraçao máxima de 50 minutos cada. Os brinquedos disponíveis na clínica escola supracitados foram utilizados em todas as sessoes, os quais foram úteis incialmente para o estabelecimento de vínculo com a criança e, após os objetivos terapêuticos serem traçados, para a conduçao da intervençao nas sessoes seguintes. Durante as brincadeiras, a terapeuta conduzia diálogos mediados por perguntas a fim de identificar possíveis variáveis que estivessem controlando o comportamento da criança, além de buscar informaçoes sobre as lembranças que esta pudesse ter do pai e quais eram seus sentimentos a respeito dele. Tanto a escolha dos brinquedos quanto das brincadeiras eram atividades sugeridas ora por proposiçao do cliente ora da terapeuta. Nas duas últimas sessoes os objetivos foram 1) explicar os motivos do encerramento das sessoes e 2) explorar os sentimentos da criança em relaçao a finalizaçao.
Nas 13 sessoes conduzidas com a mae, três delas foram de investigaçao, sete de intervençao, uma de devolutiva e duas de encerramento. Inicialmente as sessoes com a mae visaram obter informaçoes sobre a demanda clínica do cliente e, após o estabelecimento dos objetivos terapêuticos, foram feitas sessoes de orientaçao com a mesma.
RESULTADOS
Nas sessoes de investigaçao foram levantadas características importantes do cliente e de sua mae, as quais basearam a construçao da formulaçao comportamental. Mário demonstrou desenvoltura ao se expressar, capacidade de resoluçao de conflitos (e.g., durante as sessoes, o cliente acatava ou negociava as sugestoes de brincadeiras da psicoterapeuta) e clareza sobre o que era morrer. Joana mostrou-se uma mae dedicada, carinhosa e atenta ao comportamento do filho. Observou-se que mae e filho pareciam ter um vínculo bastante forte, com demonstraçoes de afeto, confiança e amizade.
A queixa principal trazida pela mae eram as perguntas do cliente sobre como o pai havia falecido. Além disso, uma queixa secundária foi levantada pela terapeuta, a qual envolvia a esquiva da mae em responder essas perguntas.
Em relaçao às perguntas feitas pelo Mário, foi observado que a única fonte de informaçao que ele tinha sobre o pai era a mae e que nao tinha outros conhecimentos a respeito dele além de que havia falecido. Joana relatou que evitava falar sobre o marido, sobre os momentos de interaçao entre pai e filho e sobre lembranças do passado, pois tinha medo de que Mário perguntasse ainda mais sobre como foi a morte do pai. Por conta disso, além de evitar falar sobre qualquer aspecto que mencionasse o marido na presença do filho, ela também mantinha as fotos de seu casamento guardadas na casa da mae e retirou os porta-retratos com fotos do marido de sua casa logo após seu falecimento. Nas sessoes feitas com Joana, foi observado que falar sobre o suicídio do pai de Mário era fonte de sofrimento. No início dos atendimentos, ela chorava ao mencionar o marido e relatava se sentir culpada pela sua morte. Assim, foram identificados duas operaçoes estabelecedoras que atuavam sobre a resposta de perguntar de Mário: 1) a falta de outras informaçoes sobre o pai e 2) a esquiva da mae em responde-las, sendo que esta última foi tida pela terapeuta como uma queixa secundária, como dito acima.
Dessa forma, o principal objetivo terapêutico traçado foi a ampliaçao do conhecimento que o cliente tinha acerca do pai. Para tanto, também foi planejada a orientaçao e instrumentalizaçao da mae para que ela mediasse esse fornecimento de informaçoes. Assim, esperava-se que, ao final do processo psicoterapêutico, a criança fizesse outras perguntas sobre o pai além de como ocorreu sua morte.
Após a devolutiva e discussao dos objetivos terapêuticos, Joana foi estimulada a ampliar o conhecimento de Mário sobre o pai a partir de elementos que ela se sentia mais segura para abordar. Uma vez que foi identificado que falar sobre o marido era fonte de sofrimento, foi sugerido a ela que um acompanhamento psicoterapêutico pudesse ser útil. No entanto, ela nao aceitou a sugestao.
Logo no início das sessoes de intervençao, Joana espontaneamente selecionou fotos de Joao com Mário e de demais membros da família, disse que mostraria a Mário e que contaria o que ele perguntasse acerca das fotos. Além disso, Joana localizou um vídeo em que Joao fazia uma apresentaçao de canto, o que oportunizaria Mário a conhecer a voz do pai. Nas sessoes de intervençao com a mae, foi discutido quais desses recursos reunidos seriam menos ansiogênicos para ela e a possibilidade de que a apresentaçao das fotos e do vídeo para Mário fosse feita em uma sessao, mas Joana preferiu fazer em casa, justificou que gostaria de ter esse momento a sós com o filho e se mostrou ciente da possibilidade do surgimento de mais perguntas a partir dessa atividade. Durante todo o processo psicoterápico, a mae do cliente mostrou ser bastante colaborativa mesmo quando o assunto em questao poderia lhe causar sofrimento, algo que foi de extrema importância para o avanço do caso.
Ao longo das sessoes de intervençao, foi observado que Joana começou a falar com mais naturalidade sobre o pai de Mário, como por exemplo, falar sobre casos engraçados de quando os três estavam juntos. Além disso, ela demonstrou compreender que a morte de Joao era algo que sempre faria parte da vida deles e que eles poderiam conviver com isso:
"Eu leio com ele aqueles livros que eu comprei que tu indicaste daquela coleçao. O tempo que eu vou lendo pra ele, eu também converso sobre a história, pra explicar o contexto e também relaciono com a nossa vida, né? A avozinha do menino da história morreu, ele estava triste e tem uma parte que diz que outras coisas iam fazer ele feliz. Aí eu disse pra ele: "tá vendo, meu filho, assim é com a gente também. A falta que o seu pai faz nunca vai ser preenchida, mas outras coisas podem nos fazer felizes" (S.I.C, 10ª sessao com Joana).
"Nós estávamos passando na frente da rua onde nós morávamos quando o pai dele ainda era vivo e eu perguntei pra ele: "meu filho, você se lembra dessa rua?" e ele disse: "nao, mamae, nao me lembro". Aí eu disse, aqui era onde nós morávamos, eu, você e seu pai. Nós vínhamos aqui nesse supermercado. Aí ele disse: "ah, é, mamae? O que eu fazia no supermercado?" Eu disse: "ah, você corria entre as prateleiras, pegava as coisas pra comprar, às vezes nós vínhamos lanchar, fazer compras". E aí foi quando ele perguntou: "mae, como foi que o meu pai morreu?". Aí eu disse: "meu filho, seu pai ficou muito doente, ele tinha uma doença chamada depressao". Aí ele perguntou: "mas, mae, o que é depressao?". Eu disse que era quando a pessoa ficava muito triste, sem alegria de viver, e ele nao tocou mais no assunto. Na verdade, eu nunca digo o "como", né? Eu digo do que ele morreu e eu vejo que pra ele é a mesma coisa, ele nao sabe a diferença e eu vou continuar respondendo assim até eu perceber que ele entende a diferença." (S.I.C., 11º sessao com Joana)
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