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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2017; 19(3):43-51



Relato de Caso

A elaboraçao do trauma através do psicodrama - um relato de caso

The trauma elaboration through psychodrama - a case report

Carla Mafalda de Castro Ferreira Martins do Rioa; Silvia Catarina Freitasb; Maria Teresa Cabralc

Resumo

A Perturbaçao Stress Pós-Traumático (PSPT) define-se como uma resposta inadequada e aumentada a um evento, vivenciado como excecionalmente grave e ameaçador da integridade física e/ou psicológica do ser humano. Frequentemente está associada a sentimentos de culpa, vergonha, medo e impotência, repercutindose nas várias dimensoes da vida do indivíduo. A psicoterapia afigura-se, nestes casos, essencial por permitir a elaboraçao do evento traumático, facilitando uma nova narrativa onde este se inscreva de forma mais adaptativa na história de vida. Este artigo pretende reflectir sobre o tratamento psicoterapêutico desta perturbaçao através do Psicodrama Individual, descrevendo o caso clínico de uma vítima de assalto com sequestro e tentativa de abuso sexual, com critérios de diagnóstico de PSPT, associado a sintomatologia depressiva grave e repercussao na auto-imagem e na vivência da sexualidade. Ao longo das sessoes foram dramatizados materiais relacionados a história de vida e com o evento traumático, entre outros, história psicodramática (filme da vida), esculturas da família, a dramatizaçao do acontecimento traumático e a representaçao simbólica da relaçao erótica com o marido. Após conclusao da psicoterapia, a doente apresenta remissao da sintomatologia com recuperaçao do funcionamento pessoal e social. Através do psicodrama foi possível à doente exprimir as emoçoes negativas, integrando-as no acontecimento traumático e confrontar-se com a sua própria vulnerabilidade, permitindo-lhe assim dar continuidade ao seu presente.

Descritores: Transtornos de Estresse Pós-Traumáticos; Psicodrama; Psicoterapia Breve; Sequestro; Violência Sexual.

Abstract

Post-traumatic stress disorder (PTSD) is defined as an inadequate and increased response to an event, which seems exceptionally severe and threatening to the physical and/ or psychological integrity. It is often associated with feelings of guilt, shame, fear and helplessness, with important repercussions on several dimensions of functioning. In these cases, psychotherapy is essential by allowing the elaboration of the traumatic event and the construction of a new narrative where the event takes a more adaptive role in life story. This article aims to reflect on the psychotherapeutic treatment of this disorder using individual psychodrama, describing the case of an assault's victim with kidnapping and attempted sexual abuse with PTSD diagnostic criteria, associated with severe depressive symptoms and with high impact on self-image and sexuality. In the psychodrama sessions were held psychodramatic history, family sculptures, dramatization of the traumatic event and the symbolic representation of her erotic relationship. After completion of psychotherapy, the patient presents remission of symptoms with recovery of her personal and social functioning. Through psychodrama it was possible to express negative emotions, integrating them in the traumatic event, allowing the patient to confront with her own vulnerability and give continuation to the present. Key words: Post-traumatic stress disorder; Individual psychodrama; Psychotherapy; Traumatic event; Kidnapping; Sexual abuse.

Keywords: Stress Disorders, Post-Traumatic; Psychodrama; Psychotherapy, Brief; Kidnapping (Disasters); Sexual Violence.

 

 

INTRODUÇAO

O trauma psíquico é definido como "um acontecimento na vida do indivíduo que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o indivíduo de lhe responder de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogénicos que provoca na organizaçao psíquica"1. Desta forma, o indivíduo é confrontado com um acontecimento que, pelo seu fator imprevisível, o coloca numa posiçao de impotência, angústia, medo e desamparo, sentindo que nao possui as capacidades ou aptidoes necessárias para lhe fazer face.

O transtorno de estress pós-traumático (TEPT) tem a sua origem epidemológica em 1980, enquanto entidade nosológica reconhecida pela Associaçao Americana de Psiquiatria2, no seguimento de algumas dificuldades forenses relacionadas com o aumento do número de mortes entre ex-combatentes. Surgindo a necessidade de explicaçao deste aumento, verificando-se que o mesmo estaria ligado às neuroses de guerra ou traumas de guerra, já anteriormente estudados em Psicologia.

O TEPT define-se como uma resposta exarcebada a um evento sentido como excecionalmente grave e ameaçador da integridade física e psicológica do ser humano1.

O conceito teve origem epidemológica em 1980, enquanto entidade nosológica reconhecida pela Associaçao Americana de Psiquiatria2, no seguimento de algumas dificuldades forenses relacionadas com o aumento do número de mortes entre ex-combatentes.

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Trastornos Mentais (DSM-V, 2013), o TEPT diagnostica-se quando estao presentes os seguintes critérios: A) exposiçao a um episódio concreto ou ameaça de morte, lesao grave ou violência sexual; B) presença de um (ou mais) sintomas intrusivos associados ao evento traumático, começando depois de sua ocorrência; C) evitaçao persistente de estímulos associados ao evento traumático, começando após a ocorrência do evento; D) alteraçoes negativas nas cogniçoes e no humor associadas ao evento traumático começado ou piorando depois da ocorrência de tal evento; E) alteraçoes marcantes na excitaçao e na reatividade associadas ao evento traumático, começando ou piorando após o evento; F) o transtorno (Critérios B, C, D e E) dura mais de um mês; G) o transtorno causa sofrimento clinicamente significativo e prejuízo social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo; H) o transtorno nao se deve aos efeitos fisiológicos de uma substância (p. ex., medicamento, álcool) ou a outra condiçao médica.

O quadro clínico do TEPT caracteriza-se por emoçoes dolorosas causadas pela experiência traumática, evitamento de situaçoes ligadas ao trauma, revivência do trauma (por pesadelos, flashbacks, pensamentos intrusivos ou estados dissociativos) e estado de alerta constante evidenciado por hipervigilância, irritabilidade, respostas exageradas a situaçoes inesperadas ou sintomas vegetativos3. Nao raros sao os sentimento de vergonha, culpa, medo e impotência que afetam consideravelmente a auto-imagem e a identidade1,4,5.

Os fatores causais mais freqüentes para TEPT sao as situaçoes de combate, nos homens, e os estrupos e assaltos, nas mulheres6,7.

Depois da vivência de um evento traumático, a vida nao é mais sentida como igual, já que a identidade, os afetos, a forma como se perspetiva a vida e a relaçao com o perimundo sofrem alteraçoes significativas5,8. No TEPT perdese a segurança, a previsibilidade e a confiança, enquanto que o medo, a impotência e a perda de controlo passam a ser uma constante4. A culpa surge pela sensaçao de se terem colocado, eles mesmos, em perigos desnecessários ou nao terem sido capazes de se defender5. Muitas vezes, e como tentativa de superaçao do trauma, este quadro é compensado por adiçao a drogas, álcool ou binge-eating9.

Sao reconhecidos alguns fatores de vulnerabilidade predisponentes do quadro, como a presença de trauma infantil, traços de personalidade disfuncionais, baixo suportefamiliar, sexo feminino, vulnerabilidade genética, mudanças estressantes no quotidiano, perceçao de um evento com locus de controlo externo e consumos recentes de álcool ou drogas1.

O TEPT pode estar associado a outros transtornos psiquiátricos. Um estudo conduzido por Foaet al (2009)10 mostrou que aproximadamente 80% das pessoas com TEPT apresentam outra comorbilidade psiquiátrica, encontrandose, em metade dos casos, transtornos depressivos e, num terço, transtornos ansiosos10. Existe boa evidência a suportar a utilizaçao de psicofármacos no tratamento da TEPT, nomeadamente os inibidores seletivos da recaptaçao da serotinina (ISRS) e os inibidores ds recaptaçao de serotonina e norepinefrina (INRS), estando a sertralina e a paroxetina aprovadas pela FDA. A trazodona pode ser utilizada, em particular, quando há distúrbio do sono marcado. Estes fármacos atuam também ao nível das patologias comorbidas.1 As benzodiazepinas nao sao recomendadas neste tratamento11.

O desenvolvimento da perturbaçao surge com comportamentos de evitamento, dada a impossibilidade em apagar a existência do acontecimento original, impedindo assim o necessário confronto com a realidade1,12.

A psicoterapia tem, assim, por objetivo permitir ao doente exprimir e identificar as emoçoes negativas acumuladas, integrá-las no evento traumático e proporcionar estratégias de confrontaçao e mecanismos de coping8.

Os sintomas gerados por experiências traumáticas podem ser diretamente trabalhados com recurso ao enactment12.

A reconstruçao do acontecimento, com o reviver das emoçoes, induz um processo de descarga emocional pelo qual a pessoa se liberta do conteúdo afetivo e de fortes emoçoes associadas12,13.

O psicodrama é uma psicoterapia de grupo cujas origens se encontram no teatro, na psicologia e na sociologia, sendo a dramatizaçao o seu núcleo14.

O criador do psicodrama foi Jacob Levy Moreno que, aos quatro anos e meio, organizou uma brincadeira com algumas crianças no porao da sua casa, empilhando cadeiras sobre uma mesa, até o teto, para brincar de ser Deus. Essa experiência psicodramática é sentida pelo autor como uma cena precursora da criaçao do psicodrama. Moreno ao mesmo tempo em que dirige a cena, transforma-se em autor e ator do drama. O seu público compartilha e estimula o protagonista à açao. A experiência marca e a idéia germina na adolescência15.

Moreno persegue as suas idéias e projeta em 1922, com a ajuda do seu irmao William, um Teatro da Espontaneidade (Das Stegreiftheater), em Viena, passando a realizar improvisaçoes espontâneas com um grupo de atores profissionais, até descobrir que a representaçao espontânea de situaçoes da vida cotidiana produz efeitos terapêuticos (1924). Nasce assim entre 1922 e 1924 o Psicodrama em Viena15.

O psicodramatista atua in vivo, objetivando e analisando a situaçao permitindo ao protagonista observar o conteúdo do seu mundo interno antes de ser solicitado a reflectir abstratamente sobre ele14.

Uma sessao de psicodrama é constituída por três fases (aquecimento, dramatizaçao e comentários), tendo em conta três contextos (dramático grupal e social) e utilizado cinco instrumentos (protagonista, ego auxiliar, diretor, cenário e plateia).

O objetivo do psicodrama é promover a catarse de integraçao através do treino da espontaneidade. Desenrola-se num cenário montado, em uníssono, pelo protagonista e pelo diretor, utilizando os egos auxiliares como ponte de comunicaçao, quando necessário.

A hipervigilância para sinais de perigo tende a esbater-se quando é experimentada a consciencializaçao e a expulsao de sentimentos intensos14. O desamparo aprendido começa a diminuir quando o protagonista é colocado no centro da sua experiência e estimulado a contar a sua história por meio da acçao e da palavra, dentro da segurança clinica e com aliados terapêuticos12. As palavras sao assim associadas a experiências e sentimentos internos, até entao anónimos13.

Um dos riscos das técnicas psicodramaticas é a regressao descontrolada e o fortalecimento do trauma quando utilizadas de forma amadora e pouco fundamentadas numa teoria sólida e numa prática consciente12.


CASO CLINICO

Relata-se de seguida a abordagem terapêutica de Manuela (nome fictício), de 30 anos de idade, casada, com 2 filhos, vítima de assalto com sequestro e tentativa de estrupo um ano antes do ingress na consulta de Psiquiatria. Foi proposto um plano de intervençao que consistiu nao só em tratamento psicofrmacológico, mas também integraçao em psicodrama individual quinzenal.

Trata-se de uma doente sem antecedentes de perturbaçao psiquiátrica, considerando inclusivamente que "nunca precisaria de Psiquiatria... eu penso sempre muito positivo". Esta problemática foi abordada pela Manuela com o seu Médico de Família que lhe prestou um suporte adequado e entendeu ser necessário referenciaçao a consulta de Psiquiatria.

Na consulta era visível a sua dificuldade em sintonizar os sentimentos com o acontecimento e com as consequências do mesmo, focando-se essencialmente na temática sexual "quando estou com o meu marido nao consigo ter atividade sexual satisfatória como acontecia antes; surgem imagens daquele momento do assalto e paraliso".

Na primeira consulta, a 25 de Junho de 2015, procedeuse a uma escuta empática do relato do episódio do assalto que incluíra ameaça à sua integridade física e à dos filhos e tentativa de estrupo. Foi medicada com duloxetina 60mg, trazodona 100mg e zolpidem 10mg, tendo realizado, previamente, uma avaliaçao psicológica.

A avaliaçao psicológica ocorreu em três momentos do processo terapêutico - na primeira consulta individual (18/07/2014), antes do início o psicodrama individual (22/08/14) e após quatro sessoes de psicodrama individual (31/10/2014). Foram aplicadosos seguintes testes: S.CL.90 R (avaliaçao de sintomatologia psicopatológica), I.R.P (inventário de resoluçao de problemas), Inventário Clínico de Auto-Conceito, PCL-C (Posttraumatic Stress Disorder Checklist - Civilian Version), QAECCS (questionário de ativaçao de esquemas cognitivos em contexto sexual), QCSD (questionário de crenças sexuais disfuncionais) e QMS (questionáriode modos sexuais).

Destaca-se, nesta avaliaçao, uma elevada pontuaçao em todas as dimensoes avaliadas pelo SCL90-R (Somatizaçao, Obsessoes e Compulsoes, Sensibilidade Interpessoal, Depressao, Ansiedade, Hostilidade, Ansiedade Fóbica, Ideaçao Paranóide e Psicoticismo) e um grau de severidade dos sintomas de TEPT significativamente acima da média, avaliados pelo PCLC. Na avaliaçao da capacidade de coping, através do Inventário de Resoluçao de Problemas, denotou-se uma boa capacidade de funcionamento, apresentando contudo baixa capacidade em pedir de ajuda, e elevada tendência ao confronto e resoluçao activa dos problemas. A aplicaçao do Inventário Clínico do Auto-Conceito mostrou, também, um resultado total considerado ligeiramente abaixo da média. Relativamente ao funcionamento sexual, avaliado com a aplicaçao dos Questionários deActivaçao de Esquemas Cognitivos em contexto sexual, das Crenças Sexuais Disfuncionais e dos Modos Sexuais, concluiu-se nao existirem crenças disfuncionais, mas sim pensamentos de fracasso/ desistência, de estrupo, de passividade e emoçoes prevalentes no decorrer da atividade sexual de tristeza, medo e vergonha.

A paciente foi reavaliada numa segunda consulta em julho de 2015 e apesar da ligeira melhoria da sintomatologia, mantinha dificuldade importantes no desempenho sexual com reaçao de evitamento de atividade sexual e empobrecimento emocional na relaçao conjugal. Dada a evidência da relaçao entre a sintomatologia apresentada e o evento traumático foilhe proposto tratamento individual em psicodrama, que aceitou.

Iniciou psicodrama individual de frequência quinzenal no início de Setembro.

Antes da primeira sessao de psicodrama realizou nova avaliaçao psicológica onde revelou manutençao da pontuaçao elevada para a presença de Sintomatologia Psicopatológica e de TEPT. No Inventário de Resoluçao de Problemas nao pontuou na baixa capacidade de pedir de ajuda. Na Avaliaçao do Auto-Conceito apresentou já um resultado total considerado normativo. A funcionalidade sexual mantinha-se globalmente semelhante à primeira avaliaçao.


1. Primeira sessao

Pediu-se à Manuela para realizar a História Psicodramática (de Bermudez) onde se denotou uma infância feliz, mas com várias vivências difíceis, todas elas encaradas com elevado optimismo. Referia ter tido situaçoes difíceis "mas sempre consegui controlar...", apercebendose que o assalto se apresentou diferente uma vez que o seu desenlace nao dependia de si, nao sendo controlável. Elegeu os três momentos piores e melhores da sua vida e escolheu o assalt para trabalhar na sessao.

Pediu-se para representar simbolicamente a família antes e depois do assalto, auxiliada, para tal, por duas fotografias de cada momento escolhidas por si. Fez a representaçao de duas fotografias muito semelhantes, envolvendo os quatro elementos da família: a primeira, uma fotografia tirada à saída da maternidade, após nascimento do 2º filho e a segunda ocorre no batismo do mesmo. Os solilóquios durante troca de papéis evidenciaram uma homeostase familiar, como se o evento traumático nao tivesse contaminado o equilíbrio familiar. Contudo salientava a alteraçao na intimidade do casal, que relacionava com o acidente e perante a qual revelava dificuldade de resoluçao. Nos seus solilóquios, começa a perceberse mais do impacto do assalto na sua situaçao financeira e na estruturaçao da sua vida profissional e familiar, assim como o impacto na autoestima, pois desde entao regrediu em termos profissionais e aumentou significativamente de peso.


2. Segunda sessao

A Manuela apresentou-se mais organizada no que respeita ao impacto do assalto, centrando-se na necessidade de reviver o acidente, relatandoo, pelo que o faz em palco, com a dramatizaçao desse momento. Ficou evidente o medo de morrer e o medo de retaliaçao com vingança nos seus filhos (ameaças estas feitas pelo assaltante) durante toda a dramatizaçao. No final da dramatizaçao, a Manuela disse sentirse aliviada e compreendida, desculpabilizando-se e percebendo que nada poderia ter feito para modificar favoravelmente aquele momento. Comentou ainda que o que sentiu na dramatizaçao, tal como na vida real foi tao intenso que "...é dificil encontrar palavras para o descrever".


3. Terceira sessao

A paciente apresentou-se mais animada, referindo sentir novamente mais energia perante a vida. Relatou uma conversa ocorrida entre si e a filha sobre as dificuldades da vida atual, em que esta usou a história do tesouro escondido no final do arco-íris, para simbolizar a situaçao. Contou ter dito à filha que iriam procurá-lo juntas. A paciente acrescentou que, também na sua perspetiva, o tratamento era a busca desse tesouro e que, quando começou a terapia nao conseguia ver o arco-íris, considerando que naquele momento tinha percorrido 70% do caminho para chegar ao local do tesouro. Referia que ainda precisava de perceber o que lhe faltava para retomar o nível de satisfaçao e confiança na vida que tinha antes do assalto. Foilhe proposto dramatizar nesta sessao a relaçao erótica com o marido, antes e depois do assalto. Percebeu-se que existia no casal uma intimidade, sintonia e cumplicidade na relaçao sexual muito satisfatória antes do assalto e, após o mesmo, existiam comportamentos disfuncionais por parte da paciente, havendo pouca partilha da sua vivência interna. O marido nao a questionava, respeitando, em silêncio, o sofrimento da Manuela. No aqui e agora, a Manuela mostrava alguma libertaçao, com maior disponibilidade e iniciativa para a relaçao erótica.

A disponibilidade na partilha dos aspectos mais difíceis da sua experiência de trauma, afacilidade progressiva em se expôr e também o aporte vivencial que um auditório mais alargado poderia trazer à evoluçao clínica da Manuela, levounos no final desta sessao a propor-lhe continuar o tratamento em contexto de grupo terapêutico. Aceitou, nesta sessao, integrar um grupo de psicodrama.

Procedeuse, neste momento, a uma reavaliaçao psicológica que revelou ausência de psicopatologia, nomeadamente daquela associada ao TEPT. No Inventário de Resoluçao de Problemas observou-se uma aquisiçao de estratégias adaptativas para a resoluçao de problemas e relativamente à funcionalidade sexual, já nao apresentava praticamente pensamentos e emoçoes disfuncionais.


DISCUSSAO/ CONCLUSAO

Com o acontecimento vivido e assalto e tentativa de estrupo, tornouse subitamente claro para a Manuela que nao é absolutamente "dona do próprio destino", o que provocou um colapso nas crenças pré-estabelecidas e evocou nos um outro conceito, o de vulnerabilidade. Esta noçao de vulnerabilidade/impotência, juntamente com as mudanças económicas consequentes do assalto, levou a uma forte distorçao na sua autoimagem, passando a considerar-se menos atraente e tornando-se menos aguerrida, portanto menos capaz em importantes papéis da sua vida, nomedamente de esposa, mae e empresária. É de salientar ainda que este sofrimento foi vivido em silêncio, o que sugere uma "retracçao do eu, em campo tenso".

O psicodrama permitiu à Manuela reexperienciar o momento traumático, libertando-se dos sentimentos de medo e de culpa perante o sucedido. Quando avaliada em consulta, a Manuela aparentou ser uma mulher com bom funcionamento e saúde mental previamente ao evento traumático. Nesse sentido, entendeuse que o psicodrama estaria precisamente indicado por permitir focar este seu período de vida. De facto, a sua rápida evoluçao ao longo de 3 sessoes, confirmada pela disparidade entre a 2ª e 3ª avaliaçoes psicológicos, confirmou a hipótese de estarmos perante uma pessoa com uma personalidade com uma boa adaptaçao pré-mórbida, apresentando-se a sintomatologia em estreita relaçao com o evento em causa.

A Manuela, após conversa filha, escolheu espontaneamente o arco-íris para simbolizar o tratamento, sinalizando a necessidade de percorrer um caminho para alcançar o nível de funcionamento antes do evento estressor.

De facto, simbolicamente, o arco-íris é visto como uma transfiguraçao da luz, uma ponte que liga o terreno ao divino ou, por outras palavras, uma mensagem divina que anuncia algo: alegria e transformaçao. Figura-se como o caminho para alcançar o desejado.


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Revisao bibliográfica realizada por Catarina Freitas. Caso clínico e Discussao/ Conclusao elaboradas por Carla Rio. Revisao e supervisao do trabalho por Teresa Cabral.


a Master's Degree in Medicine, Psychiatrist, Penafiel, Portugal
b Master's Degree in Medicine, Psychiatry Resident, Penafiel, Portugal
c Medical Doctor, Psychiatrist, Psychodramatist, Portugal

Correspondência
Carla Rio
Avenida do Hospital Padre Américo 210
4564-007 Guilhufe, Penafiel, Portugal
carlamio@gmail.com

Submetido em: 31/12/2015
Aceito em: 25/07/2017

Instituiçao: Centro Hospitalar Tâmega e Sousa

 

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