Rev. bras. psicoter. 2017; 19(3):17-32
Ferreira C, Costa CP, Gastaud M. Perfil de idosos que buscam psicoterapia em ambulatório de saúde mental. Rev. bras. psicoter. 2017;19(3):17-32
Artigo Original
Perfil de idosos que buscam psicoterapia em ambulatório de saúde mental
Profile of elderly people seeking psychotherapy in mental health outpatient clinic
Cristiane Ferreiraa; Camila Piva da Costab; Marina Gastaudc
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A Política Nacional do Idoso (PNI), lei nº 8.842, de 04 de janeiro de 1994, e o estatuto do idoso, Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003, definem por idosas pessoas com 60 anos ou mais1. A Organizaçao Mundial de Saúde (OMS), também determina que sao idosas as pessoas com 60 anos ou mais, válido para países em desenvolvimento, já nos países desenvolvidos a idade sobe para 65 anos2. Na última década essa populaçao aumentou consideravelmente, dando origem a um novo campo de reflexao, investigaçao e intervençao3.
Até recentemente, as abordagens psicológicas voltadas a idosos eram consideradas somente um suporte para aumentar a adesao à medicaçao. A associaçao americana de psicologia reconhecendo as particularidades especiais que envolvem a pratica profissional com esse setor populacional, publicou um documento que define as principais linhas de atuaçao do psicólogo. De acordo com o Guildelines for Psychological Practice with older adults4, diversas modalidades de psicoterapia mostram-se eficazes com essa populaçao. As intervençoes psicoterápicas incluem revisao de vida e trabalho das reminiscências, foco nas tarefas do desenvolvimento e adaptaçao as mudanças da idade avançada.
Atualmente, observa-se que o uso de psicoterapia psicanalítica no tratamento desta populaçao conta com objetivos mais amplos, como a reduçao dos sintomas, a elaboraçao do trabalho de luto relacionado às perdas decorrentes das modificaçoes nos papéis sociais e familiares e, principalmente, a melhora na qualidade de vida dos pacientes5. As intervençoes psicológicas também podem aumentar o funcionamento social, ocupacional e a capacidade de manejo de situaçoes estressantes.
Durante muito tempo, acreditou-se que os idosos nao poderiam se beneficiar das abordagens psicoterápicas6, 7. Em relaçao à psicoterapia psicanalítica de idosos ainda há a premissa de que estes nao teriam indicaçao para tratamento devido a uma maior dificuldade de mudança pela idade avançada. Porém, deve-se considerar que os critérios de indicaçao e contraindicaçao precisam se afastar da base exclusivamente teórica e buscar evidências empíricas que corroborem ou mostrem outras possibilidades,, tendo em vista que os critérios se modificam de tempos em tempos em virtude da modernizaçao das técnicas terapêuticas8.
Durante a evoluçao da teoria psicanalítica o critério da idade como fator de indicaçao para iniciar um tratamento foi-se se modificando. Em seu trabalho "Sobre a psicoterapia" (1905/1977b) Freud9 reconheceu que a idade do paciente é importante no processo de análise, já que a pouca elasticidade mental, diminuiria a capacidade do individuo tirar o devido proveito de uma análise.
Após quinze anos dessas declaraçoes de Freud, Abraham10 foi o primeiro psicanalista a contrariar a interdiçao analítica em candidatos na idade avançada, comprovando com casos que reagiram satisfatoriamente ao tratamento. Hanna Segal11, também publicou trabalhos reforçando a eficácia da psicanálise em pacientes com mais de 50 anos.
Outros autores, como, Dewald12, consideram que o adulto jovem teria mais capacidade para a terapia voltada ao insight, já que tem mais tempo e condiçoes de realizar mudanças, enquanto os insights do idoso podem deixá-lo deprimido, tendo em vista que há menos tempo pela frente. De qualquer modo, o autor nao defende que a idade seja fator de contraindicaçao para psicoterapia voltada ao insight, mas recomenda cuidadoso exame da indicaçao diante dos extremos da idade.
Autores contemporâneos13, 14, 15, 16, diante das crescentes evidências de que a análise ou psicoterapia psicanalítica é capaz de trazer benefícios tanto a crianças quanto a idosos, refutam este preceito e retiram do rol das contraindicaçoes clássicas um limite de idade pré-estabelecido.
No contexto brasileiro, as pesquisas sobre psicoterapia com idosos ainda sao incipientes. Existem poucos estudos sistemáticos sobre o processo psicoterápico e as medidas disponíveis aos pesquisadores desta área sao escassas17. Tanto no Brasil como no cenário internacional, a avaliaçao do processo psicoterápico e o consequente efeito das intervençoes psicológicas permanecem sendo um importante desafio para pesquisadores e clínicos.
Diante desse contexto, o presente estudo se justifica nao só pela carência de investigaçoes com essa populaçao, mas principalmente pela necessidade de se elaborar programas de ensino mais coerentes com a realidade atual e a aperfeiçoar os atendimentos nos ambulatórios de psicoterapia.
MÉTODO
Trata-se de um estudo transversal e documental realizado a partir de prontuários de pacientes idosos atendidos no Contemporâneo - Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade (CIPT), em Porto Alegre, sul do Brasil. O CIPT constitui-se em uma instituiçao que forma especialistas em psicoterapia psicanalítica, que integra um ambulatório que oferece prática clínica nas áreas da psicoterapia (individual, familiar, conjugal e grupal), psiquiatria, psicopedagogia, fonoaudiologia e nutriçao, promovendo, assim, a saúde emocional dos indivíduos. O ambulatório é voltado à populaçao de média e baixa renda, os tratamentos têm término aberto e os honorários sao estipulados pela dupla paciente-terapeuta a partir de um valor mínimo estabelecido pela instituiçao.
Os atendimentos nesta instituiçao funcionam da seguinte forma: o paciente comparece a uma Entrevista de Recepçao e Pesquisa, e na primeira etapa preenche um questionário sócio-demográfico e clínico e três instrumentos: qualidade de vida (WHOQOL-Bref), sintomas (SCL-90R) e mecanismos de defesa (DSQ-40). Na segunda etapa o paciente é entrevistado por um profissional especializado em triagens, sendo posteriormente encaminhado para o tipo de tratamento indicado para o seu caso. Os dados da presente investigaçao foram obtidos a partir dos formulários preenchidos pelos pacientes e pelos triadores durante esta entrevista.
As variáveis de interesse para este estudo foram assim definidas:
- Sexo, religiao, com quem reside e fonte de encaminhamento: conforme preenchido pelos pacientes nos prontuários.
- Idade: consideraram-se idosas as pessoas com 60 anos de idade ou mais, de acordo com Estatuto do Idoso1.
- Renda: conforme preenchido pelos pacientes nos prontuários dentre as seguintes categorias: 1) Até 1 salário mínimo, 2) de 2 a 3 salários mínimos, 3) de 4 a 6 salários mínimos,4) de 7 a 10 salários mínimos, 5) mais de 10 salários mínimos.
- Cidade em que reside: agrupada nas categorias Porto Alegre, Regiao Metropolitana e Serra/Litoral/Interior do estado.
- Escolaridade: conforme descrita pelo paciente e assim categorizada: Ensino Fundamental, Ensino Médio, Ensino Técnico Profissionalizante e Ensino Superior. Considerou-se, nesta pesquisa, o grau máximo de instruçao do paciente, independentemente de ter completado ou nao o curso referido.
- Estado civil: conforme preenchido pelos pacientes. Foram agrupados da seguinte forma: 1) Solteiro; 2) Casado/Uniao Estável; 3) Separado/Divorciado; 4) Viúvo.
- Motivo da consulta: definido conforme descriçao dada pelos pacientes no momento da triagem. As informaçoes referentes ao motivo de consulta apresentadas no prontuário foram armazenadas de forma livre.
Para classificaçao desta variável, os triadores registravam a queixa do paciente e em seguida categorizavam-na usando como modelo as categorias propostas pelo ABCL (Adult Behavior Check-List)23.
- Mês da busca por atendimento, história de tratamentos prévios, uso de medicaçao e conduta terapêutica: conforme relatado pelos triadores nas fichas de triagem.
- Qualidade de vida: esta variável é definida como a percepçao do indivíduo de sua posiçao na vida, no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele vive e em relaçao aos seus objetivos, expectativas, padroes e preocupaçoes18. Nesta pesquisa, ela foi avaliada de acordo com o WHOQOL-Bref (World Health Organization Quality of Life - Brief version), que é um inventário desenvolvido pela Organizaçao Mundial de Saúde para avaliar a qualidade de vida, com base em 4 domínios: 1) Domínio Físico: avalia se o indivíduo apresenta dor ou desconforto, energia ou fadiga para realizar atividades, a qualidade de seu sono e seu repouso; 2) Domínio psicológico: avalia se o indivíduo percebe-se como tendo sentimentos positivos, seu pensamento, aprendizado, memória e concentraçao, sua autoestima, sua satisfaçao com sua imagem corporal e aparência física, bem como a presença de sentimentos negativos; 3) Relaçoes sociais: como o indivíduo percebe e se gratifica com suas relaçoes pessoais, seu suporte social e sua atividade sexual; 4) Ambiente: como o indivíduo percebe e se preocupa com sua segurança física e sua proteçao, o ambiente no seu lar, seus recursos financeiros, a disponibilidade e qualidade dos cuidados de saúde e sociais, o sentimento de ter oportunidade para adquirir novas informaçoes e habilidades, etc. OS valores obtidos através do WHOQOL-Bref, variam entre zero (muito baixa qualidade de vida) e cem (muito alta qualidade de vida).A versao em português dos instrumentos WHOQOL foi desenvolvida no Centro WHOQOL para o Brasil19.
- Gravidade dos sintomas e tipo de sintomas: essas variáveis foram avaliadas a partir dos resultados do SCL-90-R (Symptom Check-List 90 - Revised). Este instrumento é um inventário multidimensional de auto avaliaçao de sintomas, projetado para avaliar um amplo espectro de problemas psicológicos e sintomas psicopatológicos, dentro das seguintes dimensoes: 1) Somatizaçao: distúrbios provindos da percepçao da disfunçao corporal; 2) Obsessividade/compulsividade: pensamentos, impulsos e açoes que sao vividos como repetitivos, irresistíveis e indesejáveis; 3) Sensibilidade interpessoal: sentimentos de inadequaçao, inferioridade, principalmente em comparaçao com outras pessoas; 4) Depressao: manifestaçoes clínicas da depressao que sao representadas por sinais de retraimento, de baixo interesse na vida, falta de motivaçao e falta de energia vital, sentimentos de derrota, pensamentos suicidas.; 5) Ansiedade: sinais de nervosismo, tensao e tremor, bem como sentimentos de terror, de apreensao e medo; 6) Hostilidade: pensamentos, sentimentos ou açoes que sao características da afetividade negativa do estado de raiva; 7) Ansiedade fóbica: resposta de medo persistente dirigida a uma pessoa específica, lugar, objeto ou situaçao; 8) Ideias paranoides: modo desordenado de pensamento caracterizado por pensamento projetivo, hostilidade, desconfiança, grandiosidade, medo de perder autonomia e desilusao; 9) Psicoticismo: sintomas como retraimento, isolamento, estilo de vida esquizoide que passam de um contínuo graduado de uma suave alienaçao interpessoal para uma dramática psicose. A partir dos 90 sintomas pontuados, cada dimensao pode estar nada (zero), pouco (um), moderadamente (dois), bastante (três) ou muito (quatro) presente na sintomatologia do paciente. Foi desenvolvido por Derogatis e Savitz20 e adaptado e validado para a populaçao brasileira por Laloni21.
- Estilo defensivo: mecanismo de defesa é uma ferramenta inconsciente utilizada pelo indivíduo para lidar com um conflito ansiogênico. Será avaliado mediante o DSQ-40 (Defense Style Questionnaire), que mensura o grau com que o paciente faz uso de determinados mecanismos de defesa. O questionário agrupa os 20 mecanismos de defesa pressupostos, em três categorias hierárquicas de funcionamento: defesas imaturas, defesas neuróticas, defesas maduras. As defesas imaturas sao as defesas narcísicas, que envolvem uma maior distorçao na imagem de si mesmo ou de outros, podendo ser empregadas para regular a autoestima. As defesas neuróticas sao as defesas que permitem as formaçoes de compromisso, ou seja, o indivíduo mantém as ideias, sentimentos, recordaçoes, desejos ou temores, considerados potencialmente ameaçadores, fora da consciência. As defesas maduras sao as defesas consideradas adaptativas, pois conseguem maximizar a gratificaçao do impulso e permitem o conhecimento consciente dos sentimentos, ideias e suas consequências. Validado para a populaçao brasileira por Blaya, Ceitlin, Isolan, Kipper, Heidht e Band22.
PARTICIPANTES
Participaram do estudo 104 prontuários de pacientes adultos que buscaram atendimento entre maio de 2009 e abril de 2013 (4 anos), que assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido autorizando que os dados de seu atendimento fossem usados para pesquisa e ensino.
ANALISE DE DADOS
O banco de dados foi elaborado no SPSS versao 17. A análise estatística utilizou o mesmo programa e foi feita em termos de frequência, porcentagem, medidas de dispersao e tendência central.
RESULTADOS
Durante o referido período, 2765 pacientes buscaram atendimento no ambulatório; destes, 108 (3,9%) pacientes eram idosos. Dos idosos, 4 nao assinaram o termo de consentimento, restando os 104 pacientes para a amostra final desta investigaçao. Como se trata de pesquisa com dados secundários, algumas variáveis nao puderam ser obtidas a partir dos prontuários, demonstradas nas tabelas como "nao consta".
A tabela 1 mostra as características sócio-demográficas dos pacientes adultos pesquisados.
artigo anterior | voltar ao topo | próximo artigo |
Rua Ramiro Barcelos, 2350 - Sala 2218 - Porto Alegre / RS | Telefones (51) 3330.5655 | (51) 3359.8416 | (51) 3388.8165-fone/fax