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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2017; 19(2):17-27



Artigo de Revisao

"Um, Nenhum, Cem Mil" - Uma breve compreensao do narcisismo em Green através de um personagem literário de Pirandello e de um caso clínico*

"One, None and a Hundred Thousand" - A brief discussion of narcissism in Green through a Pirandello personage and a clinical case

Camila de Araujo Reinert1; Matias Strassburger2

Resumo

Cada vez mais encontramos, na clínica psicoterápica, pacientes com uma intensa precariedade de seus limites psíquicos e com uma dificuldade de representaçoes simbólicas que parecem ir além do amor pela própria imagem. Tem-se a impressao de estar diante de um cenário de falha na constituiçao narcísica do ego: uma angústia frente a imagem que nao se enxerga porque existem apenas fragmentos, ainda nao existe uma unidade. O presente artigo pretende apresentar aspectos do tratamento psicoterápico da clínica do narcisismo através da discussao de fragmentos do livro "Um, nenhum, cem mil" de Luigi Pirandello, de uma breve revisao sobre o trabalho do negativo em André Green e da ilustraçao de um caso clínico.

Descritores: Psicoterapia; Relaçoes Interpessoais; Narcisismo.

Abstract

Increasingly we find, in the psychotherapeutic clinic, patients with an intense precariousness of their psychic limits and with a difficulty in symbolic representations that seem to go beyond the love of their own image. One has the impression of facing a scenario of failure in the narcissistic constitution of the ego: an anguish before the image that can not be seen because there are only fragments, there is still no unity. This article intends to present aspects of the psychotherapeutic treatment of the narcissism clinic through the discussion of fragments of Luigi Pirandello's book "One, No One and One Hundred Thousand", a brief review of the work of the negative in André Green and the illustration of a clinical case study.

Keywords: Narcissism; Psychotherapy; Object Attachment.

 

 

INTRODUÇAO - RELEVANCIA ATUAL DO TEMA

"Enquanto bebe, preso à bela imagem vista,
ama objeto incorpóreo, sombra em vez de corpo.
Se embevece de si, e no êxtase pasma-se,
como um signo marmóreo, uma estátua de Paros.
Contempla, à beira, os seus olhos, estrelas gêmeas,

a cabeleira digna de Apolo e de Baco,
a face impúbere, o pescoço ebúrneo, a grácil
boca e o rubor à nívea candura mesclado;
e admira tudo aquilo que o torna admirável.
Sem o saber, deseja a si mesmo e se louva,

cortejando, corteja-se; incendeia e arde.
Quantos beijos irados deu na falaz fonte!

Quantas vezes querendo abraçar a visao,
na água os braços mergulhava achando nada!
Nao sabe o que está vendo; mas ao ver se abrasa,

e o que ilude os seus olhos mais o incita ao erro.
Por que, em vao, simulacro fugaz buscas, crédulo?
O que amas nao há; se te afastas, desfaz-se.
Isto que vês reflexo é sombra, tua imagem;
nada tem de si; vem contigo e se estás fica;

se partes, caso o possa, partia contigo."

(Metamorfose III , Ovídio)1


Na tradiçao grega, o termo narcisismo2 designa o amor de um indivíduo por si mesmo: a lenda de Narciso foi apresentada por Ovídio na terceira parte de sua obra Metamorfoses1. A despeito de suas insuficiências conceituais e das diferentes descriçoes feitas por Freud, o conceito de narcisismo serviu de ponto de partida para inúmeras elaboraçoes pós-freudianas2. Atualmente, o narcisismo pode ser considerado uma fonte organizadora do psiquismo, uma etapa da constituiçao da identidade do ego e da constituiçao das relaçoes com os outros. Integra diferentes conceitos como: a busca por autonomia e autossuficiência em relaçao aos outros; a pretensao de dominar a alteridade; a tentativa de compreender a diferença entre fantasia e realidade. Por isso, quando usado como um construto patológico, o termo narcisismo pode englobar vários tipos de constelaçoes sintomáticas através de diferentes estruturas de personalidade. Aparece através de uma baixa estima de si nos quadros de depressao e nos quadros melancólicos, através de uma falta de identidade do eu nos quadros borderline e nos quadros paranoides e através de um desinvestimento libidinal nas patologias do vazio. Na escultura "Vazio" de Angela Pettini3, a fragilidade egóica do narcisismo fica representada pelos furos que nao se fecham, por um corpo que se materializa apenas nas bordas.


Escultura "Vazio" de Angela Pettini3



Cada vez mais encontramos, na clínica psicoterápica, pacientes com uma intensa precariedade de seus limites psíquicos e com uma dificuldade de representaçoes simbólicas que parecem ir além do amor pela própria imagem. Tem-se a impressao de estar diante de um cenário de falha na constituiçao narcísica do ego: uma angústia frente a imagem que nao se enxerga porque existem apenas fragmentos, ainda nao existe uma unidade.

A realidade atual é muito diferente daquela que regia em Viena quando Freud elaborou sua teoria. Antes vigoravam a repressao e os valores tradicionais de disciplina. Hoje vivemos em uma realidade marcada pela fragilizaçao da lei simbólica, por relaçoes fugazes e por contatos tecnológicos superficiais que produzem mudanças profundas nas relaçoes humanas. A vida social está perdendo lugar para a individualidade, para o eu mínimo (contraído num núcleo defensivo)4 como discorreu o historiador Visentini: "Embora a pós-modernidade nao constitua uma corrente uniforme, constitui um fenômeno da sociedade de consumo. Busca ausentar-se da vida moderna, cultuando o niilismo. Almeja também destruir a 'tradiçao', com a 'destruiçao de valores' sem substituí-los por uma nova ética'."5

O tratamento psicoterápico da clínica do narcisismo utiliza uma metapsicologia surgida de uma clínica clássica cuja referência principal eram as neuroses de transferência, com uma problemática centrada na angústia de castraçao e com organizaçoes triangulares edípicas. Entretanto, o paciente com conflitos centrados em sintomas narcísicos, diferentemente do neurótico, nao está dominado por uma consciência internalizada nem pela culpa. Pelo contrário, apresenta oscilaçoes intensas do sentimento de identidade e de autoestima. É necessária uma articulaçao do modelo clássico para auxiliar o que parece ser um número cada vez maior de pacientes com aspectos pré-edípicos centrais: uma labilidade nas fronteiras entre o ego e o objeto - centrada na angústia de separaçao, de intrusao, de fragmentaçao - que dificulta o estabelecimento de relaçoes objetais satisfatórias.

Segundo Laplanche, a expressao relaçao de objeto é utilizada "para designar o modo de relaçao do sujeito com seu mundo, que é o resultado complexo e total de uma determinada organizaçao da personalidade, de uma apreensao mais ou menos fantasística dos objetos e de certos tipos privilegiados de defesa"6.

O paciente com traços caracterológicos narcísicos tem dificuldade de construir relaçoes de objeto satisfatórias. Vive em um eterno estado de desamparo, pois se percebe sempre impotente quanto a possibilidade de pôr fim a sua tensao interna através da satisfaçao da necessidade de ser amado e protegido pelo objeto. Por nao aceitar a necessidade da dependência de um objeto, sente continuamente a angústia traumática da perda e da separaçao.

"Para o sujeito inicia-se uma longa e silenciosa luta, em que todos os esforços se voltarao para a distinçao entre o 'reflexo' da realidade e a realidade, entre o desejo e o objeto do desejo.

Se o sujeito nao é invadido pelo fluxo pulsional, mantendo-se capaz de considerar a realidade, o ego pode enriquecer-se através da identificaçao com o objeto - suporte primitivo de identificaçao.

Caso contrário, Narciso transporá o mito, e ao confundir sua imagem com o seu reflexo no espelho, atualizará, no nível individual, a tragédia de quem se dissociou do corpo e ignorou a realidade na busca da realizaçao de um desejo
impossível." 7


O NARCISISMO E A RELAÇAO OBJETAL EM GREEN : "UM, NENHUM, CEM MIL"

Segundo Green, os narcisistas sao "pessoas carentes do ponto de vista do narcisismo"7. No texto "O narcisismo e a psicanálise: Ontem e Hoje "8, explana que ocorre uma ferida narcísica infligida a onipotência infantil. As desilusoes, sobre o que o objeto primário realmente é, provocam uma decepçao sobre o que pode se esperar dele. Frequentemente, ocorreu uma decepçao com ambos os pais que impediu o desenvolvimento do involucro chamado pele, o qual deveria permitir que o paciente aceitasse o risco de se ferir, de se decepcionar com novos investimentos em objetos.

Baranger denomina de ferida narcísica "tudo que venha diminuir a auto-estima do ego ou seu sentimento de ser amado por objetos valorizados"9. Encontra-se um exemplo literário de ferida narcísica na descriçao que o escritor italiano Luigi Pirandello faz, no romance "Um, Nenhum e Cem mil"10, do momento angustiante em que seu protagonista Moscarda descobre -por intermédio da esposa- que seu nariz pende para a direita:

"- O que você está fazendo? - perguntou minha mulher ao me ver demorar estranhamente diante do espelho.

- Nada - respondi - só estou olhando aqui, dentro do meu nariz, esta narina. Quando aperto, sinto uma dorzinha.

Minha mulher sorriu e disse:

- Pensei que estivesse olhando para que lado ele cai.

Virei-me para ela como um cachorro a quem tivesse pisado o rabo.

- Cai? O meu nariz?

E minha mulher respondeu, placidamente:

- Claro querido. Repare bem: ele cai para a direita."


Moscarda percebe desnuda a fragilidade do seu eu frente ao olhar do outro e segue em seus questionamentos anti-heróicos:

"Sim, ai está o nó do problema," pensava "nesta contrafaçao. Cada um quer impor aos outros o mundo que tem dentro de si, como se fosse algo externo, de modo que todos o devam ver daquele modo, sendo apenas aquilo que ele vê."

Aparece uma falta da identidade corporal que pode levar a angústia de fragmentaçao e uma falta de unidade egóica:

"Quer saber por que eu vim me esconder aqui? Ah, Bibi, porque as pessoas me olham. As pessoas têm esse vício e nao podemos nos livrar dele. Temos entao de levar sempre este corpo pela rua, a passeio, sempre sujeito a ser olhado. Ah, Bibi, Bibi, o que eu faço? Nao aguento mais ser olhado. Ninguém duvida daquilo que vê, e cada um caminha entre as coisas seguro de que elas aparecem aos outros tal como sao para ele."

Percebe-se através da ferida narcísica vivida pelo personagem já adulto, uma incapacidade de diferenciar verdadeiramente o eu do objeto, de reconhecer o objeto em si mesmo, nao apenas como uma projeçao ou emanaçao do ego. O narcisista retém apenas o que é agradável desses objetos e de si mesmo para formar um objeto idealizado em sua fantasia. Parece haver uma coexistência entre o objeto real e o de fantasia, sem que a realidade possa afirmar sua supremacia. Relaciona-se principalmente com seus objetos criados, desprovidos de desejos e atitudes próprias. Os objetos reais sao substituídos por imaginários, criados a partir dos protótipos infantis e do contato com os objetos investidos e abandonados.

O personagem Moscarda passa a perceber o seu corpo nao mais pelo seu ego especular, mas pela imagem de si que é percebida pelo olhar dos outros. Nesse momento, sofre de uma fragmentaçao imaginária de sua unidade corporal - modifica-se a maneira como percebia o seu corpo e a sua identidade até o momento. Sente raiva e inveja por ter que duvidar das convicçoes que tinha enraizadas, por aparecer a necessidade de aceitar a ajuda e o conhecimento do outro para encontrar a compreensao de si mesmo.

"Somos muito superficiais, eu e vocês. Nao vamos fundo no jogo, que é mais profundo e radical do que pensamos, meus queridos. E que consiste nisto: que o ser age necessariamente por formas que sao as aparências que ele cria para si e as quais nós damos o valor de realidade. Um valor que muda naturalmente, conforme o ser nos apareça nessa forma ou nesse ato."

Ao longo do processo de descobrimento de que o senso dominante que tem de si mesmo e do mundo difere da variabilidade de formas como os outros indivíduos podem vê-lo, o personagem passa a se desestruturar frente a sua própria imagem. Começa a perceber a diferenciaçao dos limites ego-objeto, ao dar-se conta que nao só a sua imagem é percebida de maneira diferente, mas todo o seu eu. Isso fere a sua onipotência infantil, pois se dá conta que nao pode controlar a maneira como os outros o enxergam:

"Mas quer sempre se ver. Em cada ato de sua vida. É como se tivesse sempre diante de si a própria imagem, em cada ato, em cada movimento. A fonte de seu sofrimento talvez seja isso. A senhora nao quer que o seu sentimento seja cego, obrigando-o a abrir os seus olhos e a se ver num espelho que sempre reflete. E o sentimento, assim que se vê, se congela. Nao se pode viver diante de um espelho. Procure nao se ver nunca. Porque, de qualquer modo, jamais conseguirá se conhecer pelos olhos dos outros. Sendo assim, de que vale conhecer-se só para si? Pode acontecer de a senhora nao compreender mais por que deveria ter aquela imagem que o espelho lhe devolve."

Green8 acredita que a ferida narcísica permanece em carne viva, muitas vezes mesmo depois do tratamento psicoterápico. A psicoterapia apenas facilita a utilizaçao de mecanismos de defesa mais adaptativos ao seu funcionamento. O narcisista nao deseja experimentar a sensaçao de que o centro nao está mais em si, mas em um objeto do qual está separado e ao qual deseja se unir para buscar satisfaçao na identidade reencontrada. Para buscar novamente o centro em si, a libido liga-se ao ego e o engrandece, inflando-o como grandioso. O ego como objeto único de desejo: o paciente nao quer saber nada, a nao ser de si mesmo, evitando assim novas feridas, novas decepçoes.

"Os narcisistas nos irritam talvez mais do que os perversos. Talvez porque podemos sonhar com ser o objeto de desejo de um perverso, enquanto o narcisista nao tem outro objeto de desejo do que ele mesmo". (Green)8

Em o "Seminário sobre o trabalho do negativo"11, Green discute a clínica do vazio e a teoria das relaçoes objetais. O objeto absolutamente necessário (geralmente a mae) precisa ser apagado para que se possa construir um espaço psíquico, um vazio estruturante. O trabalho do negativo11 possibilita que o objeto possa tanto conter quanto estimular a pulsao e ao ser esquecido, possa estruturar o ego, o qual se torna apto para novas relaçoes com objetos substitutivos.

Claudia Amorim12, discutindo o trabalho do negativo de Green, diz que " O objeto é aquilo que continua existindo como constituinte da estrutura psíquica, mesmo quando dele nao se tem notícia". A ausência enquanto presença (um objeto capaz de assegurar uma continuidade entre presença e ausência) permite a construçao de uma trajetória desejante, da representaçao, do pensamento e da tolerância da experiência de separaçao.

Em "A mae morta"13 Green discorre que o apagamento do objeto primário ocorre quando as condiçoes sao favoráveis à separaçao da relaçao fusionada entre a mae e a criança, ocorrendo uma alteraçao no ego que passa a ser capaz de investir nos seus próprios objetos. O objeto primário nao desaparece, transforma-se em uma "estrutura enquadrante do ego" na qual as representaçoes da mae permanecem. A alteraçao para criaçao da estrutura enquadrante ocorre quando o amor objetal é seguro o suficiente para poder conter o espaço representativo, quando a criança sente-se segura pela presença materna mesmo na sua ausência e quando a criança pode tolerar a espera da satisfaçao e os estados de falta. O espaço enquadrado oferece um campo vazio (porém investido de libido), a ser ocupado pelos investimentos em relaçoes objetais futuras.

A clínica do vazio fica caracterizada pela destrutividade, pelo desinvestimento pulsional através da funçao desobjetalizante devido a um trabalho do negativo que ocorreu de forma insatisfatória11. O objeto nao é apagado pois se apresentou como absoluto (ao invés de falível e nao satisfatório). Ocorre uma maternagem "suficientemente ruim": uma mae extremamente ausente ou extremamente presente e invasiva. O excesso de presença de um objeto mau invasivo ou um objeto bom idealizado impossível de ser acessado levam a fragilidade dos limites psíquicos, a falha da representaçao, uma impossibilidade de pensar e uma passagem aos actings próprios da pulsao de morte (na clínica, aparecem como os acting-in das psicossomatizaçoes ou como os acting-out da dependência de álcool e drogas). Na relaçao objetal, se alternam a disjunçao e a vinculaçao devido as angústias de intrusao (excesso de presença) e separaçao (ausência excessiva). Ocorre uma disputa entre a libido e a destrutividade, impedindo o acesso ao prazer de uma relaçao objetal verdadeira, devido a ameaça de fusao regressiva (a necessidade de se defender de um objeto intrusivo para manter os limites psíquicos fica mais importante do que o movimento desejante). O narcisismo torna-se negativo, nos limites da morte, do inanimado e do vazio. Existe um vazio interno, aniquilador ao invés de ter sido construído um espaço interno neutro que poderia ser ocupado pelas relaçoes de objeto. Ocorre uma falha na constituiçao das barreiras psíquicas (delimitaçao entre o ego e o objeto, entre a realidade interna e externa) e ataques ao ego e às relaçoes de objeto que impedem a construçao de vínculos.


ILUSTRAÇAO CLINICA

Essa ilustraçao clínica desenvolve algumas consideraçoes sobre o tratamento psicoterápico de orientaçao analítica desse tipo de paciente.

Um homem jovem chega ao tratamento queixando-se de sua incapacidade de estabelecer relacionamentos amorosos satisfatórios. Parecia sempre a ponto de abandonar a associaçao livre e recorrer a atuaçao, cortava-se para testar os limites do seu eu-pele, para evitar sentir a dor da frustraçao de depender dos objetos: "Ai eu quebrei um copo e usei os cacos para me cortar. E foi um alívio sabe. Depois eu sei que nao faz bem, que vai doer na hora de dormir... E eu fico pensando por que fazer isso, e eu penso que aquela dor me faz esquecer as outras dores... Se é pra sentir dor, eu que me machuco, nao vou mais deixar os outros me machucarem." Apresentava fronteiras do ego relativamente porosas e um pensamento concreto e onipotente que revelavam uma certa incapacidade de simbolizaçao.

Podia-se perceber uma hipersensibilidade a aproximaçoes que sentia como intrusoes e tentativas de domínio por parte do objeto (mostrava-se muito irritado e humilhado nas tentativas da psicoterapeuta de ampliar a frequência das sessoes). Ao mesmo tempo notava-se que conservava a fantasia de um relacionamento fusionado, tal qual a relaçao mae-bebe, no qual todas suas necessidades seriam supridas por um único objeto: "Eu nao consigo mais ficar sozinho. Como que eu faço? Eu preciso de alguém fisicamente perto de mim, que queira transar comigo e dormir do meu lado, que esteja SEMPRE ali. Como que eu faço para conseguir isso? Eu nao aguento mais ficar sozinho..."

Nao existia uma relaçao objetal que pudesse trazer sentimentos de vitalidade, de segurança e de proteçao, que pudesse compensar déficits e neutralizar angústias. A estima que tinha por si dependia exclusivamente da satisfaçao da libido-objetal. O paciente buscava no objeto a soluçao para sua fragilidade egóica, realizava esforços insaciáveis para substituir o amor próprio pouco desenvolvido pela admiraçao externa que supostamente preencheria seu vazio. Por esse motivo substituía compulsivamente os vínculos afetivos superficialmente estabelecidos: "Mas porque eu nao consigo aproveitar? A própria faculdade, eu vejo que as vezes eu estou na aula e fico pensando que eu nao merecia estar ali. Ao invés de aproveitar e ficar feliz. Eu faço isso com tudo, fico desvalorizando o que eu tenho. Mas eu lembro do que eu fazia quando era mais jovem, que estava sempre com uma pilha imensa. Nao precisava de ninguém, estava sempre correndo atrás de tudo. E eu fico me perguntando se nao seria melhor continuar daquele jeito. Mas ao mesmo tempo eu transava com uma mulher diferente a cada noite, me fazia mal. Sao tapa buraco. Nao ocupam todo o espaço". Sentia cada término como uma nova ferida narcísica, porque dava-se conta da necessidade de ter seu ego alimentado por outros, para compensar falhas nas fontes primitivas de proteçao. Entretanto, os seus vínculos eram regidos pelo princípio do prazer, ignorava a diferença entre interno e externo, entre os objetos reais e os objetos idealizados de sua fantasia. Assim, nao conseguia tolerar que os outros tem uma vida própria, com suas próprias demandas, nao tolerava a experiência do contato através da percepçao da alteridade. O amor por si mesmo parecia ter sido substituído por lástima por si mesmo, predominava o narcisismo de morte: "Ontem eu fiquei com vontade de me cortar, queria jogar as coisas no chao para quebrar e me cortar. Eu nao consigo gostar de mim. Eu me odeio. Eu só fico repetindo tudo sempre, uma vez atrás da outra acaba tudo igual."

Apresentava estruturas psicológicas pouco integradas e um predomínio de objetos cindidos ou parciais. Inicialmente, negava a sua dependência dos outros, dizia que nao queria casar-se ou ter filhos, o seu ego inflado era o seu próprio objeto de desejo. Utilizava defesas maníacas para nao entrar em contato com seu sofrimento : abuso de álcool, promiscuidade sexual. Ao longo da psicoterapia, quando essas defesas foram sendo identificadas e descontruídas, passou-se a observar a inexistência de um objeto psíquico interno que funcionasse como consolador, apaziguador na ausência de um objeto externo, o que levava a um desespero intenso toda vez que o paciente se percebia desacompanhado: "Parece que eu tô sentindo um vazio gigante, que eu nunca senti antes. Que eu tô sofrendo como eu nunca sofri... E se eu nao conseguir? Eu nao acho que eu vou conseguir. E se eu for continuar usando as relaçoes líquidas? E se eu nao conseguir ter nenhuma relaçao sólida?"

Segundo Winnicott14, é o suporte egóico recebido através do cuidado maternal suficientemente bom que possibilita à criança viver e desenvolver-se, embora ainda nao esteja pronta para controlar, ou se sentir responsável, pelo que é bom ou mau no ambiente. O paciente parece nao ter tido uma maternagem suficientemente boa na qual funcionasse plenamente o amor objetal que pudesse tornar as pulsoes toleráveis ao seu ego15. Pelo contrário, chama a atençao que as referências à mae ou ao pai sao raras. A relaçao de objeto que o paciente passou a estabelecer com a psicoterapeuta funcionou como iniciaçao das modificaçoes psíquicas necessárias ao facilitar momentos em que aparecem e perduram experiências relacionais simbolizantes que levem a uma maior estruturaçao egóica.

Na psicoterapia de orientaçao analítica realizada com pacientes com organizaçoes de base narcisista algumas cláusulas do contrato podem ser modificadas temporariamente, como um parâmetro, de maneira a proporcionar um contrato mais singular, específico para o paciente em questao. De acordo com Green15, nas estruturas nao neuróticas, o funcionamento representativo está interferido pelo trabalho do negativo: o irrepresentável entra em cena e o paciente nao é capaz de associar livremente pois fica prejudicada a capacidade de simbolizaçao e de elaboraçao. Isso demanda alteraçoes do enquadre, Green propoe um "enquadre interno do analista" no qual "sustenta a qualidade analítica da comunicaçao quando o paciente nao tem condiçoes de reconhecer a sua dimensao metafórica"16.

"Paciente - Eu fico me perguntando: 'por que eu sempre chego atrasado aqui?' Eu sei que é importante, eu quero vir mas eu sempre chego atrasado.

Terapeuta - Chegas atrasado, e reclama que as sessoes sao curtas, porque para ti ainda duram só 35 minutos...

Paciente - Mas eu sei que aqui, quando eu tava bem mal... chorando desesperado... você fez uma concessao e prolongou a sessao quando podia... E isso foi muito importante para mim, saber que me abriria esse espaço se eu estava tao mal."


O prolongamento da sessao aparece nao apenas como uma quebra do setting, mas como um parâmetro que permitiu a manutençao do processo de simbolizaçao através da inicial relaçao objetal vivenciada pela dupla.


CONSIDERAÇOES FINAIS

O avanço da psicanálise levou a um desafio dos limites do que seria analisável e essas novas fronteiras trazem desenvolvimentos teóricos e técnicos. Nos pacientes narcisistas, a funçao desobjetalizante do narcisismo de morte é marcada pela fragilidade dos limites psíquicos e pela dificuldade de simbolizaçao secundária. A impossibilidade do esquecimento do objeto primário, através da açao patológica do trabalho do negativo, impede a formaçao de novos vínculos, novas relaçoes objetais dentro do processo de reconstituiçao psíquica.

A prática psicoterápica clássica tem um ideal no qual o psicanalista se mostra neutro, abstinente e anônimo e que usa a interpretaçao como seu instrumento exclusivo. Entretanto, acredito que a técnica do psicoterapeuta deve ser modificada para tratar pacientes nos estados limites do analisável. O psicoterapeuta precisa disponibilizar, além do seu afeto e da sua escuta, também a sua capacidade de simbolizaçao (para nao apenas recuperar o existente, mas para produzir o que nunca esteve). Assim, é criada a possibilidade de amparar o paciente através de uma constância objetal que nao seja percebida nem como intrusiva, nem como ausente.


REFERENCIAS

1. Carvalho RNB. Metamorfoses em Traduçao. [dissertaçao]. Sao Paulo: Universidade de Sao Paulo; 2010.

2. Roudinesco E. Dicionário de psicanálise. Zahar; 1998.

3. Pettini A. Vazio. Série: Nossas Cruzes. Material:bronze/ferro; 2008. apo@terra.com.br/www.angelapettini.com.br

4. Lasch C. O mínimo eu-sobrevivência psíquica em tempos difíceis. Sao Paulo: Editora Brasiliense;1984.

5. Visentini PF. A sociedade hipertecnológica da pós modernidade. Jornal do Celg 2015;76(1):6-7.

6. Laplanche J; Pontalis JB. Vocabulário da Psicanálise. Sao Paulo: Martins Fontes; 1996.

7. Fernandes EB. Narcisismo [dissertaçao]. Sao Carlos: Universidade Federal Sao Carlos; 2002.

8. Green A. Prefácio, O narcisismo e a psicanálise: Ontem e Hoje. In: Green, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Sao Paulo: Escuta; 1988. p. 9-29.

9. Baranger W. O narcisimo em Freud. In Baranger W Contribuiçoes ao conceito de objeto em psicanálise. Sao Paulo : Casa do psicólogo; 1994, p. 21-37.

10. Pirandello L. Um, nenhum e cem mil. Sao Paulo: Cosac & Naif; 2001.

11. Green A. Seminário sobre o trabalho do negativo. Anexo 3. In: O trabalho do negativo. Porto Alegre: Artmed, 2009b.

12. Garcia CA. Os estados limite e o trabalho do negativo: uma contribuiçao de A. Green para a clínica contemporânea. Rev Mal-estar e Subjetividade. 2007; 7(1): 123-135.

13. Green A. A mae morta. In: Green, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Sao Paulo: Escuta; 1988. p. 247-282.

14. Winnicott DW. The Theory of the Parent-Infant Relationship. Int. J. Psycho-Anal.1960; 41:585-595.

15. Green A. A angústia e o narcisismo. In: Green, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Sao Paulo: Escuta; 1988. p. 143- 185

16. OS CASOS-LIMITE E A PSICANALISE CONTEMPORANEA: do desafio clínico à complexidade teórica - Entrevista com ANDRÉ GREEN. Rev SIG. 2013; 2, nº 1.










1. Médica, Psiquiatra pela PUCRS, Especialista em Psicoterapia de Orientaçao Analítica pelo CELG. Porto Alegre - RS - Brasil
2. Médico, Psiquiatra pela UFRGS, Psicanalista Membro Associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre - RS - Brasil

Correspondência
Camila de Araujo Reinert
Rua Carvalho Monteiro, 237, apto. 404 - Bairro Petropólis
90470-100 Porto Alegre, RS, Brasil
reinertcamila@gmail.com

Submetido em: 15/06/2017
Aceito em: 06/08/2017

Instituiçao: CELG, PUCRS, SPPA.

*Trabalho de Conclusao de Curso do Primeiro Ano do Curso de Especializaçao de Psicoterapia de Orientaçao Analítica do CELG.

 

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