Rev. bras. psicoter. 2017; 19(1):73-85
Massaroli LS, Zerbielli D. A importância do vínculo materno na construçao do Eu e do Nao-Eu. Rev. bras. psicoter. 2017;19(1):73-85
Artigo de Revisao
A importância do vínculo materno na construçao do Eu e do Nao-Eu
The Importance of the Maternal Link in the Construction of the Self and the Non-Self
Letiele dos Santos Massaroli1; Daiana Zerbielli2
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
O estudo foi desenvolvido a partir de uma revisao bibliográfica embasada no referencial psicanalítico. Procurou compreender a relaçao entre o vínculo materno e as manifestaçoes dos adoecimentos psíquicos contemporâneos, os impactos da sociedade de consumo na perpetuaçao do sentimento de vazio e da deterioraçao da capacidade simbólica, bem como a importância do vínculo materno na construçao da personalidade, as implicaçoes da falha na sustentaçao materna e a influência da sociedade no delineamento desse vínculo. O trabalho visou compreender o conceito de vinculaçao materna postulado por alguns autores, como Freud, Klein, Winnicott, Bion, Bick e Meltzer, e identificar os avanços da teoria e a implicaçao da sociedade na perpetuaçao desse mal-estar moderno.
No começo do século XX, Freud iniciou seus estudos sobre a histeria e descobriu que essa patologia estava ligada a um conflito entre o desejo inconsciente e as exigências da realidade. As transformaçoes que ocorrem na sociedade possuem um papel importante para compreender a dinâmica dos adoecimentos mais prevalentes. O período sociocultural em que Freud iniciou sua teoria era permeado por uma repressao à sexualidade, em que essa nao podia ser expressa, assim o foco dos adoecimentos psíquicos ocorria pela descarga pulsional por meio do corpo, devido à falta de simbolizaçao1. A cultura contribui para a estruturaçao do sujeito e é nessa era pós-moderna, conhecida como sociedade de consumo, que os progenitores estao inseridos. O bebê nasce dentro de uma sociedade que usa e abusa do mundo das aparências, que busca evitar o contato real com a experiência.
Já os indivíduos contemporâneos têm evidenciado uma preocupaçao maior nas formas de garantir sua própria existência. O mal-estar da contemporaneidade está atrelado à falta de sentido para a vida, à sensaçao de irrealidade, à vaidade da existência, ao medo da finitude do ser2.
A mae/cuidador tem um papel fundamental na estruturaçao do Self, pois ela proporciona a sustentaçao materna, integrando as partes fragmentadas do Eu e delimitando o que é do bebê e o que faz parte do mundo externo da criança. Porém, quando há falhas no cuidado e/ou na relaçao de amor e dedicaçao da mae com o seu bebê, a criança poderá nao desenvolver a noçao de si mesma e do outro e desenvolver um permanente sentimento de vazio.
NARCISISMO
O narcisismo primário é regido por um egoísmo típico da pulsao de autoconservaçao, que pode estar presente em todos os seres vivos. Nessa fase, existe uma retençao de libido no Eu para que depois seja direcionada a outros locais. O sistema psíquico funciona com uma oposiçao econômica entre os termos, ou seja, quando há um investimento maior em uma das partes a outra sofre um prejuízo. Inicialmente, o Eu é investido de libido e uma parte dessa libido posteriormente é direcionada ao objeto, entretanto, fundamentalmente a libido fica retida no Eu3.
O bebê nasce com as pulsoes autoeróticas, porém a unidade do Eu nao nasce pronta. É necessário um objeto externo (mae/cuidador) que auxilie o psiquismo a integrar e organizar as representaçoes fragmentadas, para que se constitua o narcisismo primário3. Nesse momento da existência humana existe um superinvestimento da libido e a experienciaçao de uma integralidade, em nível corporal que gera no bebê um momento de júbilo, regozijo, plenitude com ele mesmo4.
O narcisismo somente poderá ser instaurado à medida que a mae garanta a segurança do Eu e supra suas necessidades. A experiência do Eu constituído em sua totalidade só é possível ao sujeito a partir da vivência do narcisismo5.
O narcisismo pode ter dois tipos de desdobramentos: o narcisismo de vida, que está atrelado às funçoes protetoras, que o investimento libidinal no psiquismo pode gerar como a cura de doenças, a conservaçao do sono, a integralidade das representaçoes do Ego, entre outras6; e o narcisismo de morte, como uma defesa psíquica patológica que expressa uma tendência a apagar o desejo, reduzir o investimento e as tensoes a nível zero, aproximando-se dos objetivos da pulsao de morte. O equilíbrio entre o investimento narcísico e das relaçoes objetais, juntamente com a sustentaçao da onipotência inicial do ideal de Eu, modulam o sentimento da estima de si. Esse conjunto pode ser a base para um desenvolvimento psíquico saudável. O narcisismo pode tanto favorecer os aspectos de vida quanto se transformar em letal, causando o sofrimento e até mesmo a morte psíquica6.
Freud postula na segunda tópica que o Ego tem sua origem através da modificaçao do Id no contato com a realidade. O Ego é um pedaço do Id organizado7. O Ego é primeiramente corporal, para depois se constituir como instância psíquica que regula o princípio da realidade. O Eu tem como funçoes a inibiçao de alucinaçoes e o recalcamento. Por meio da frustraçao com a realidade, o Id adia sua satisfaçao, criando uma instância mais evoluída capaz de mediar as pulsoes advindas do Id e do contato com a realidade. Deste modo, é de suma importância a participaçao do objeto (outro/mae) nessa estruturaçao7.
É com o investimento libidinal que a mae proporciona ao bebê por intermédio dos cuidados maternos que se torna possível a constituiçao do narcisismo e a constituiçao do Ego6. O ambiente externo bom faz com que o bebê passe a direcionar a libido, antes investida em si, para o objeto, pois o excesso de energia pode originar adoecimentos. O amor real irá compensar a perda da onipotência originária do narcisismo3.
VINCULAÇAO MATERNA
A criança, antes do nascimento biológico, já está constituída no imaginário de seus pais. A gravidez, na gestante, provoca um conjunto de experiências, emoçoes e expectativas a respeito do filho, o que contribuirá no desenvolvimento da relaçao mae-bebê8. O bebê desde o útero experimenta sensaçoes agradáveis e desagradáveis, respondendo de forma singular às variaçoes do ambiente9.
O primeiro contato que a espécie humana realiza com o mundo externo é através da pele. Desta forma, a epiderme é a primeira mediadora entre o Eu e o mundo10. A partir do contato físico com situaçoes de prazer e desprazer que se iniciam os registros mnêmicos no psiquismo da criança11.
A mae, fonte geradora de alimento, exerce a funçao de prover o cuidado e a sobrevivência desse ser biologicamente vulnerável e totalmente dependente do outro. O bebê espera mais do que apenas o alimento, aguarda conforto e compreensao, o que é representado pela forma como a mae lida com seu filho, gerando uma sensaçao inconsciente de uniao12. A mae representa para o bebê um "envelope corporal", ou seja, é ela quem envolve o bebê e realiza os cuidados do recém-nascido, possibilitando assim a diferenciaçao do mundo interno e externo13.
Melanie Klein desenvolveu os mecanismos de estruturaçao do Ego criando os conceitos de introjeçao e projeçao. A introjeçao ocorre por meio das experiências que o bebê absorve do mundo externo e transpoe para o mundo interno, como se fosse um reflexo parcial da realidade. E a projeçao é a capacidade que a criança possui de fazer atribuiçao ao mundo externo a partir da disponibilidade dos seus recursos internos12.
As experiências corporais e sensoriais que envolvem a díade mae-bebê, como o toque, o olhar, contato da boca do bebê com o seio, quando supridas e compreendidas, propiciam ao bebê a sensaçao de estar em um espaço delimitado envolvido por uma pele, tendo assim as primeiras sensaçoes rudimentares de delimitaçao do Eu e do outro14. A introjeçao da experiência agradável de acolhimento e delimitaçao do Ego proporciona a ideia de continuidade de existência do Ser, constituindo assim o Self.
A mae, que exerce a funçao protetora no psiquismo, alimenta a onipotência do bebê investindo nas realizaçoes do Eu ideal, mas também fazendo o contraponto para o investimento no objeto. Desta forma, ela auxilia no fortalecimento da estima do bebê consigo e com o outro, formando a base para um psiquismo saudável6. A constituiçao da fase do narcisismo primário, em que o bebê é regido pelo Eu Ideal, somente ocorre se o objeto fizer um investimento libidinal na idealizaçao do Eu, colocando-o em um lugar soberano15.
A relaçao mae-bebê é permeada por uma série de variáveis que irao formar o psiquismo infantil. Nesse período inicial, a forma como a criança vivencia a separaçao do objeto (mae) influenciará no desenvolvimento da simbolizaçao, ou seja, o símbolo surge para ocupar o lugar da mae ausente16.
A "mae suficientemente boa", nos primeiros meses do bebê, deve desempenhar três funçoes: o holding (sustentaçao), handling (manejo) e a apresentaçao dos objetos. A mae suficientemente boa valida os gestos espontâneos do bebê, proporcionando um ambiente sustentador e acolhedor a fim de dar suporte e favorecer a constituiçao do verdadeiro Self. O holding é compreendido pelo autor como a sustentaçao, o suporte, o acolhimento, o amparo que a mae fornece ao bebê durante esse período de total dependência, alimentando a onipotência inicial, necessária ao desenvolvimento saudável. O handling é a forma como a mae maneja o bebê, como exerce seu contato físico com a criança. Na apresentaçao dos objetos, a mae apresenta novos objetos para que o bebê consiga substituí-la17.
A mae deve exercer a funçao integradora do Eu, como se fosse um envoltório, uma "pele psíquica", capaz de unir as partes fragmentadas, proporcionando assim a introjeçao do objeto continente. A identificaçao com a mae permite que o bebê inicie a criaçao dos espaços internos e externos, substituindo a desintegraçao das experiências de abandono18.
A mae suficientemente boa nutre a onipotência do bebê e se identifica com a criança para protegê-la, trabalhando como um Ego auxiliar, que integra as sensaçoes corporais advindas dos múltiplos estímulos do ambiente e internos. A genitora deve decodificar e se adaptar às necessidades do bebê, validando seu gesto espontâneo, fornecendo um suporte para que o verdadeiro Self comece a se formar, fortalecendo assim o sentimento de ser único e real. A partir desse amparo físico e emocional, fornecido por essa devoçao da mae ao seu bebê (holding), ele passa a ter uma maior coesao e acreditar na realidade externa como um objeto bom19.
O vínculo materno também se torna importante para a constituiçao do pensamento, pois a mae desempenha a funçao Alfa, que permite significar, conter, entender, comunicar e transformar os elementos Beta em Alfa. Os elementos Beta sao caracterizados pelas necessidades, angústias, ansiedades e desejos vividos pela criança.
Além do pensamento, a funçao Alfa também permite desenvolver a aprendizagem pelas vivências emocionais, tendo um papel importante na formaçao da memória. Essa funçao permite o desenvolvimento da capacidade onírica simbólica, ou seja, utilizar do sonho para expressar conteúdos recalcados. Pode-se perceber que, ao ocorrer uma falha nesse mecanismo, os pacientes sonham apenas como forma de descarga pulsional. A mae recebe as projeçoes Beta do bebê e as devolve transformadas em Alfa. Desempenha a funçao de catalizadora, metabolizando e desintoxicando as projeçoes, devolvendo de forma elaborada ao bebê, para que esse consiga introjetar/absorver o conteúdo. A mae funciona como um filtro que separa os elementos Beta dos Alfa, descartando os elementos nao sintetizados. "Uma alfa-betizaçao emocional é impulsionada"21, dando suporte para o desenvolvimento da aprendizagem.
O conceito de rêverie, abordado por Bion, é um componente da funçao Alfa materna. O termo Revê, de origem francesa, significa sonho, ou seja, a capacidade da mae de imergir em um estado de ilusao fusional com seu bebê e utilizar sua intuiçao e sensibilidade20. Esse conceito é trabalhado como a busca da mae para exercer a funçao continente, proporcionando um equilíbrio entre a perda da onipotência e o contato com o ambiente21.
A relaçao materna empática fornece subsídios para que a criança desenvolva o sentimento de esperança, que se estabelece pela crença de que pode confiar na espera. A ajuda voltará a vir de alguém que já lhe forneceu antes amparo e segurança22.
O bebê, antes mesmo de ter experiências com o objeto, dirige a pulsao sexual para o próprio corpo, realizando assim um investimento autoerótico. Na falta do objeto, a criança fixa em si mesmo e forma uma "falsa pele"18.
O investimento de libido no Eu, quando ultrapassa uma determinada quantia, faz com que haja uma necessidade de desviar uma parte desse investimento para o objeto, que surge como forma de impor o princípio da realidade. Para que ocorra um desenvolvimento saudável do Eu, é necessário que o indivíduo se distancie cada vez mais do narcisismo primário.
A criança espera encontrar um objeto bom (mae boa) para investir seu desejo, um ambiente externo acolhedor que comporte o suprimento de suas necessidades. O nao cumprimento dessa expectativa gera uma frustraçao pelo nao investimento esperado, privaçao essa que impede que o bebê se constitua com uma noçao de ser único, gerando uma falta de algo que nunca chegou a ter. O rompimento precoce da simbiose primária, necessária para a estruturaçao do Self, causa uma sensaçao de aniquilamento, de nao integraçao, um "terror sem nome". Para suprir a falta do bom objeto, o psiquismo ergue as barreiras das defesas simbióticas visando extinguir a dor psíquica oriunda dessa ausência. O objeto almejado é substituído, nao possibilitando a elaboraçao do processo de luto, havendo assim uma tentativa desesperada de preencher o vazio existente. Deste modo, o sujeito busca através da repetiçao reviver a relaçao simbiótica que anteriormente foi impossível23.
As crianças que nao tiveram uma mae que exercesse a funçao integradora do Ego acabam por nao formar um espaço interno e usam apenas de imitaçoes externas para tentar formar esse espaço; já a mae continente possibilita ao bebê construir um Self separado do objeto18.
A constituiçao de uma pele defeituosa compromete a integraçao e o desenvolvimento do psiquismo. Essa fragilidade compromete o sistema psíquico pela falta da introjeçao da funçao continente. Sendo assim, o sujeito pode nao desenvolver a capacidade de aceitar perdas, lidar com angústias, dores, frustraçoes, gerar a somatizaçao e/ou transtornos emocionais14,18.
A mae nao suficientemente boa falha em atender o gesto espontâneo do bebê, impondo sua vontade a ele. Devido a sua incapacidade de compreendê-lo, interpreta suas necessidades de forma errônea17. A mae projeta seus desejos e ignora o objeto (bebê), assim a criança se vê simplesmente como objeto que reflete o desejo do ambiente18. Desse modo, o bebê fica obrigado a submeter-se aos desejos da mae como uma forma de garantir e obter o amor materno, iniciando assim a formaçao do falso self19.
As privaçoes iniciais do ambiente (relacionamento materno) para com a criança colaboram para a formaçao do falso Self. Devido a sua submissao à mae, o bebê perde a espontaneidade e tem um prejuízo no desenvolvimento da capacidade simbólica19.
No falso Self a personalidade é construída sobre o desejo e a necessidade do outro. O sujeito deixa de significar suas próprias experiências, tornando-se igual ao objeto, para obter seu afeto19. A identificaçao projetiva é narcísica, porque a mae projeta suas questoes no bebê e desconsidera suas necessidades. Sendo assim, o objeto passa a ser como a mae o projetou18. O bebê apenas adere à projeçao como forma de adaptar-se para preencher as expectativas e obter amor. A ausência do objeto capaz de conter o EU ocasiona um estado de nao integraçao, nao diferenciaçao do espaço interno/externo24,18.
O fracasso dessa primeira conquista gera no bebê a incapacidade de projetar ou introjetar. É como se nao existisse um espaço limitado para a personalidade. Desta forma, a saída que o psiquismo encontra para sobreviver é realizar uma identificaçao por adesao, imitando como se fosse um espelho, que nao imagina nem cria, apenas reflete o outro. A "identificaçao adesiva" explica essa lacuna na delimitaçao dos espaços internos e externos, que direciona o indivíduo a relacionar-se sem profundidade, tratando o objeto superficialmente, deixando-o apenas no plano bidimensional. O sujeito, em seus processos de identificaçao, nao utiliza a introjeçao porque nao aprendeu de acordo com suas experiências reais vividas, apenas imita a do outro e nao se identifica com o interior do objeto, mas com a sua superfície externa24.
Na falta de um ambiente bom que compense a troca de investimento libidinal do Eu para o objeto, o psiquismo, para sobreviver à frustraçao de suas expectativas de amor nao cumpridas, continua a se autoinvestir libidinalmente e passa a funcionar como uma defesa ativada pelo sofrimento excessivo. O Eu entao realiza uma fuga do mundo externo e se refugia no mundo interno, pela impotência diante da sensaçao insuportável de aniquilamento. A partir disso, tudo se torna inautêntico, o sujeito passa apenas a aderir por imitaçao sem vivenciar experiências com profundidade emocional6. A falha no narcisismo primário pode gerar nao somente o desinvestimento no objeto, mas também do próprio Eu, que paralisa com o objetivo de promover uma anestesia, uma "reduçao das tensoes ao nível zero, que é a aproximaçao da morte psíquica"5.
Dependendo da amplitude do sofrimento gerado no bebê e de sua capacidade para lidar com a situaçao traumática de privaçao, ele realiza uma tentativa de extinguir toda tensao ocasionada pelo desejo5. Caso as condiçoes para o desenvolvimento da criança continuem desfavoráveis, há uma tendência ao narcisismo primário absoluto, que poderá estar presente devido às "marcas do ressentimento do ódio, do desespero"5. É entao a busca ativa nao da unidade, mas do nada, isto é, de uma reduçao das tensoes ao nível zero, que é a aproximaçao da morte psíquica. Pacientes presos ao narcisismo apresentam um empobrecimento na sua capacidade mental e possuem uma forte tendência à somatizaçao22.
Essa falta de investimento materno gera uma falha, um buraco, uma sensaçao de vazio. Alguns transtornos psicopatológicos ocorrem na tentativa de preencher esse vazio, que aumenta cada vez mais pela falta de experiências reais e genuínas23.
O vazio pode aparecer na clínica como as patologias narcisistas: neossexualidades, drogadiçao, autismo, bulimia, anorexia, doenças psicossomáticas etc.23. Esses quadros clínicos sao a consequência da nao internalizaçao do bom objeto. Portanto, o bebê cresce e configura seu funcionamento baseado no predomínio da onipotência, na desconfiança, voltando-se mais para si, nao realizando investimentos autênticos no objeto. As relaçoes ocorrem em uma superfície defensiva25.
A CULTURA E SUAS CONTRIBUIÇOES
A sociedade capitalista encontra na fragilidade psíquica, advinda de uma falha de vínculo materno, um meio de lucrar com o sofrimento. Os meios de comunicaçao, em especial a publicidade, buscam através da confusao do desejo imaginário e do desejo real, vivenciado pela criança, fazer com que o público infantil estabeleça as necessidades de afeto em virtude dos bens de consumo que a mae lhe proporciona, como se fosse uma forma de expressao ou troca afetiva por sua demasiada ausência na vida da criança6.
Atualmente, é crescente o número de doenças relacionadas às condiçoes psíquicas. A sociedade vem sendo uma produtora potencial de adoecimentos, pois existe uma notória relaçao da psicopatologia com a cultura de cada período2. O homem, enquanto ser sociável, que se constitui através da interaçao com o meio, sofre influência de diversos fatores, entre eles a cultura, período histórico, econômico, político, familiar que está inserido.
No começo do século XX, época em que nascia a modernidade, chamada falência do patriarcado, Freud iniciou a formulaçao de sua teoria, primeiramente direcionando seus estudos à histeria e descobrindo que a doença estava ligada a um conflito entre o desejo inconsciente e as exigências da realidade. As transformaçoes que ocorrem na sociedade possuem um papel importante para compreender a dinâmica dos adoecimentos mais prevalentes. O período sociocultural em que Freud iniciou sua teoria era permeado por uma repressao à sexualidade, em que essa nao podia ser expressa. Assim, o foco dos adoecimentos psíquicos ocorria pela descarga pulsional através do corpo, devido à falta de simbolizaçao1.
Atualmente, a histeria deixou de estar em primeiro plano, porque diminuiu seus impactos patológicos. Os sujeitos do século XXI têm evidenciado uma preocupaçao maior nas formas de garantir sua própria existência. O mal-estar da contemporaneidade está ligado à falta de sentido para a vida, à sensaçao de irrealidade, à vaidade da existência, ao medo da finitude do ser2.
A cultura contribui para a estruturaçao do sujeito, e é nessa era pós-moderna, conhecida como sociedade de consumo, que as relaçoes se estabelecem superficialmente, que o imediatismo se torna um hábito, havendo uma supervalorizaçao do corpo e da imagem, uma dificuldade de lidar com a frustraçao, um egoísmo exacerbado e um querer sem limites que tenta preencher um vazio crônico. Nesse meio, dominado por uma lógica individualista e de mercado, é que a criança se constitui enquanto sujeito23.
A sociedade fomenta uma autonomia sem regras e sem modelos a seguir. Envolto em toda essa liberdade de escolha, o sujeito fica perdido e sozinho, sentindo-se culpado por nao conseguir acompanhar a lógica de consumo capitalista. Isso também fomenta uma fantasia de autossuficiência, que torna a pessoa ainda mais frágil e impotente diante da frenética e alucinada sociedade competitiva, que desconsidera a importância dos laços afetivos2.
Na contemporaneidade, existe uma tendência em tentar eliminar o conflito, terminar com as inquietaçoes, preencher a sensaçao de falta que permeia o sujeito, ao invés de buscar algo que faça sentido. A procura incessante por soluçoes rápidas alimentadas pelo imediatismo, causado pela falta de frustraçao, torna comum a satisfaçao momentânea. O sujeito do século XXI é caracterizado como o inverso do inconsciente, pois existe um empobrecimento na capacidade simbólica sendo regidos por falsas necessidades, devido à falta de experiências genuínas sendo substituídas por satisfaçoes ilusórias, desprovidas de sentido, nao demonstrando o desejo real. A apariçao sintomática está atrelada ao tipo de relaçao que o sujeito estabeleceu com o outro, inicialmente atrelado ao papel do cuidador, por conseguinte da família e por fim ao convívio social1.
A falha no vínculo materno se reflete na sociedade como um sentimento de vazio e confusao mental, pela falta de experiências autênticas. A criança, mediante essa inundaçao de experiências superficiais impostas, simplesmente adere a esse mundo esquizofrênico. O mundo real e o virtual se confundem e muitas vezes ocorre a substituiçao da experiência real por um mundo de aparências, causando um empobrecimento na construçao da subjetividade e uma deterioraçao na capacidade criativa23.
A televisao (TV) pode ser percebida como "uma falsa companhia por ser mecânica, inanimada e 'incondicional'" (p. 5) e seus programas alimentam a onipotência narcísica através da disseminaçao das ideias de autossuficiência, invertendo o significado da aprendizagem pela identificaçao e experiência. A TV, a internet, o celular, se mal utilizados, levam à imobilidade e à passividade, que sao regressoes primitivas. O tempo de estagnaçao na frente da televisao faz com que o sujeito perca a exploraçao do mundo, o brincar, o pensamento, a criatividade, a curiosidade, o convívio com outras pessoas. É por meio do convívio social que se aprende a lidar com as emoçoes, conflitos, frustraçoes e desenvolver amor, solidariedade e tolerância com o outro23.
As pessoas nao observam suas próprias emoçoes, mantêm-se sempre se espelhando nos outros, copiando, imitando, sempre ligadas na moda, preocupadas com o status24,18.
A criança necessita de uma regularidade, continuidade e constância no contato com o outro para que o psiquismo introjete a noçao do objeto. A falta do objeto protetor, capaz de conter, sustentar, compreender e inserir o bebê no mundo emocional, paralisa a existência humana. A construçao de subjetividade, o desenvolvimento do pensamento e o da criatividade exigem experiências reais de afeto. A ausência desse vínculo afetivo real ocasiona uma perpetuaçao do vazio mental, deteriorando a estruturaçao do psiquismo23.
Atualmente, os pacientes que chegam à clínica, cada vez mais, possuem dificuldade de simbolizaçao, apresentam sentimento de desvalia, de vazio, de falha no processo de subjetivaçao e muitas vezes nao possuem uma mínima compreensao do seu sofrimento. O trabalho do psicólogo está muito atrelado à construçao de um sentido daquelas experiências que nao haviam sido significadas afetivamente, tanto pela ausência materna como pelo excesso das falsas experiências que a cultura muitas vezes impoe à criança.
Ainda cabe incitar a discussao sobre nosso papel enquanto agentes atuantes dessa sociedade que dificulta o estabelecimento de laços afetivos. Está-se proporcionando condiçoes para o desenvolvimento da relaçao entre mae e bebê? Está-se oferecendo subsídios para que as maes tenham condiçoes de suprir as demandas emocionais de seus filhos para que se tornem seres capacitados a exercer de modo pleno seu potencial humano?22
CONSIDERAÇOES FINAIS
Por meio da explanaçao teórica apresentada neste trabalho, foi possível ressaltar a importância materna na construçao da personalidade, mostrar as influências sociais na construçao psíquica da criança e suas possíveis consequências nos indivíduos adultos.
A relaçao materna fornece a base para compreender as relaçoes que o sujeito estabelece com os objetos ao longo da vida, pois está vinculado a marcas mnêmicas mais arcaicas do psiquismo. O bebê nao possui a capacidade de distinguir o Eu do Nao-Eu. Em meio a essa fusao entre o Eu e o Objeto, constata-se a importância do cuidador como um elo que liga e separa a realidade interna da externa. As teorias apresentadas por Freud, Melanie, Bick, Meltzer, Anzieu e Bion coadunam-se no que diz respeito à necessidade que o ser humano tem do outro para que nasça psiquicamente.
O sentimento de vazio gerado pela falta de continência, sustentaçao e afeto materno podem causar adoecimento psíquico, devido à busca incessante na satisfaçao e preenchimento dessa lacuna na formaçao e estruturaçao do Eu. A sociedade possui um papel relevante nesse processo, pois estimula as relaçoes superficiais sem a devida experienciaçao do contato afetivo real, fomentando o esvaziamento das relaçoes com os objetos de amor. Deste modo, compreende-se que o sujeito apresenta uma necessidade de ter vínculos afetivos intensos e verdadeiros, desde antes do nascimento e ao longo da vida, para uma estruturaçao saudável do Eu.
Com este estudo, conclui-se que: existe uma necessidade de capacitaçao dos profissionais da área da saúde para que desenvolvam um olhar integrado sobre a maternidade; deve haver uma maior inserçao do psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde para promover a estimulaçao da funçao materna; é preciso promover espaços de acolhimento, estímulo, discussoes e orientaçoes sobre o papel dos cuidadores no desenvolvimento de uma base sólida na estrutura do aparelho psíquico da criança.
E, por fim, esperamos ter possibilitado nao somente uma reflexao, mas a compreensao da relevância do papel materno para a sociedade. É preciso apontar a necessidade de investimento em políticas públicas destinadas às puérperas, bem como conscientizar sobre o nosso papel enquanto sociedade, que contribui para o fortalecimento/empobrecimento das relaçoes afetivas, dizendo com isso que cuidar das gestantes e crianças significa promover e prevenir a saúde mental.
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1. Graduaçao. Psicóloga. Porto alegre, RS, Brasil
2. Especialista em Saúde Pública. Psicóloga
Instituiçao: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
Correspondência
Letiele dos Santos Massaroli
Rua Roca Sales, 739 - Rondônia
93320-360 Novo Hamburgo, RS, Brasil
letiele.massaroli@gmail.com
Submetido em: 04/03/2017
Aceito em: 14/04/2017
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