Rev. bras. psicoter. 2017; 19(1):1-13
Parcianello RR, Mardini V, Ceresér KMM, Xavier F, Zavaschi MLS, Rhode LAP, et al. Comparaçao dos níveis séricos da Cocaine and Amphetamine Regulated Transcript (CART) entre sangue de cordao umbilical e sangue periférico em gestantes usuárias de crack. Rev. bras. psicoter. 2017;19(1):1-13
Artigo Original
Comparaçao dos níveis séricos da Cocaine and Amphetamine Regulated Transcript (CART) entre sangue de cordao umbilical e sangue periférico em gestantes usuárias de crack
Comparison between serum levels of Cocaine and Amphetamine Regulated Transcript (CART) between umbilical cord blood and peripheral blood of pregnant crack users
Rodrigo Ritter Parcianello1; Victor Mardini1,2; Keila Maria Mendes Ceresér1,3; Fernando Xavier4; Maria Lucrécia Scherer Zavaschi1,2; Luis Augusto Paim Rhode1,2,5,6; Flávio Pechansky1,6,7; Pâmela Ferrari3; Claudia Maciel Szobot1,2,7
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
O abuso de substâncias psicoativas (SPAs) é um dos problemas mais importantes em saúde pública da atualidade. As mulheres representam aproximadamente 30% da populaçao de usuários de cocaína (National Survey on Drug Use and Health - NSDUH). Em 2012 e 2013, nos Estados Unidos, 5,4% das gestantes entre 15-44 anos de idade eram usuárias de drogas1.
A exposiçao pré-natal à cocaína está associada a problemas neurocomportamentais durante a infância e adolescência2,3. Os efeitos prejudiciais da exposiçao intrauterina à cocaína nao se restringem às doenças mentais, com evidências de efeitos sistêmicos4, com mecanismos neurobiológicos ainda pouco elucidados. A cocaína pode desregular o sistema REDOX5,6. Estudos em roedores, por exemplo, mostraram que a administraçao diária de cocaína pode estar associada à diminuiçao dos níveis de glutationa no hipocampo7. A cocaína promove contraçao dos vasos uterinos e placentários8,9,10,11, podendo provocar hipóxia no feto, aumentando, assim, o estresse oxidativo (EO)12. Outra forma de a cocaína induzir o EO é através da toxicidade de seus metabólitos, como a norcocaína, o nitróxido, a N-hidroxinorcocaína, a norcocaína-nitrosônio, entre outros13.
O EO vem sendo estudado na situaçao de exposiçao à cocaína durante a gestaçao. Lipton et al.14 demonstraram que, após uma injeçao de cocaína em ratas grávidas, seus fetos apresentaram uma reduçao de 16,38% no nível de glutationa cerebral, sugerindo maior recrutamento do sistema antioxidante. Zaparte et al.15 pesquisaram os níveis séricos de proteína carbonil, conteúdo proteico de tióis, superóxido dismutase (SOD), glutationaperoxidase (GPx), glutationa reduzida (GSH) e potencial reativo antioxidante total (TRAP) em 30 mulheres nao gestantes internadas por dependência ao uso de crack. Os autores encontraram níveis elevados de proteína carbonil e conteúdo total de tióis nas pacientes após quatro dias de abstinência, e níveis significativamente mais baixos de SOD, GPx, GSH e TRAP, quando comparados aos controles. Em conjunto, esses dados sugerem que mulheres dependentes de crack podem apresentar, ao internar, um aumento no EO. Apesar dos estudos disponíveis sobre EO e cocaína em humanos16,17, dados referentes a gestantes e seus bebês ainda sao escassos.
Recentemente, o nosso grupo comparou níveis de TBARS (um marcador de estresse oxidativo), entre outros biomarcadores, no sangue do cordao umbilical (SCU) entre os recém-nascidos expostos ao crack intraútero (RNE, N = 57) e os recém-nascidos nao expostos (RNNE, N = 99), assim como no sangue periférico materno, no momento do parto. A média ajustada de TBARS no SCU foi significativamente menor no grupo de RNE (63,97, IC95% 39,43-88,50) em comparaçao com RNNE (177,04, IC95% 140,93-213,14, p <0,001; Cohen EF = 0,84, p <0,001), mesmo após ajuste adequado para os seguintes confundidores: psicopatologia materna, QI estimado, intensidade do uso de álcool, nicotina e maconha nos últimos 3 meses, doença infectocontagiosa na mae (sífilis, hepatite C ou HIV), acompanhamento pré-natal e presença de companheiro. Já a média ajustada de TBARS nao diferiu no grupo das puérperas (p = 0,86). Assim, as mudanças nos níveis de TBARS em EN sugerem que o feto exposto à cocaína mobiliza rotas antioxidantes endógenas, desde muito cedo no desenvolvimento. Neste sentido, acredita-se que o feto conta com um sistema antioxidante endógeno, estimulado pela presença de cocaína, a Cocaine and Amphetamine Regulated Transcript (CART)18.
A CART é encontrada em muitas áreas, entre elas a área tegumentar ventral (ATV) no cérebro, sendo secretada no hipotálamo, pituitária, glândulas suprarrenais e pâncreas. A CART também pode ser encontrada no sistema circulatório19. Estudos em ratos mostram que a CART atravessa rapidamente a barreira hematoencefálica20 e provavelmente regula a atividade de neurônios nessa área21. Sabe-se que a CART produz uma regulaçao positiva pela proteína de ligaçao ao elemento de resposta de AMPc, mais conhecida como cAMP response element-binding protein (CREB)22, uma proteína possivelmente ligada ao desenvolvimento de adiçao a drogas19,23,24. Dessa forma, a CART pode ser um potencial alvo terapêutico no abuso de SPAs. A CART exerce açao antioxidante, diminuindo os níveis de peróxido de hidrogênio (H2O2), devido às interaçoes envolvendo a glutationa. Além disso, ela está envolvida no processamento de espécies reativas de oxigênio (ERO) em excesso20, o que pode ter contribuído para menores níveis de TBARS no SCU dos bebês expostos ao crack em nosso estudo anterior. No entanto, nao encontramos estudos descrevendo como a CART se distribui no sangue periférico de gestantes, ou se ela circula para o SCU, tampouco como se correlacionam nesses dois sistemas.
Assim, o objetivo do presente estudo foi verificar a correlaçao entre os níveis séricos de CART no SCU de recém-nascidos com história de exposiçao intrauterina (EIU) ao crack e no sangue periférico das suas maes no puerpério imediato.
MATERIAIS E MÉTODOS
Os dados foram coletados no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas (HMIPV), na cidade de Porto Alegre, Brasil, de janeiro de 2012 a setembro de 2013. Ambos sao hospitais universitários e de referência para gestaçao de alto risco. Todas as maes forneceram consentimento informado por escrito e o projeto foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa das instituiçoes participantes.
DELINEAMENTO E AMOSTRA
Trata-se de um estudo transversal, cujo desfecho principal foi a correlaçao entre os níveis séricos de CART no SCU de recém-nascidos com história de EIU ao crack com os níveis de CART no sangue periférico das suas maes no puerpério imediato.
Os casos vieram do HMIPV, por uma amostragem consecutiva. As gestantes foram questionadas sobre o uso de substâncias de abuso no momento de admissao hospitalar. Durante o período do estudo, 2.228 nascimentos ocorreram no HMIPV e 105 maes (4,7%) foram identificadas como tendo história de uso de crack. Destas, 62 (59%) foram identificadas como usuárias de crack por ocasiao do parto e entao convidadas a participar no estudo, coletando-se o seu sangue periférico e o SCU do bebê. Perdas ocorreram devido a uma variedade de razoes, incluindo a recusa, nenhum relato de uso de crack no momento do parto e ausência de condiçoes técnicas para a coleta de SCU.
Para determinar o perfil das gestantes usuárias de crack que nao foram incluídas na amostra (41%) (controle de qualidade das perdas), foram utilizados registros médicos para comparar a idade materna, nível de escolaridade, etnia, a presença de um parceiro, o estado do acompanhamento pré-natal, o tipo de parto e a presença de doenças infecciosas (hepatite C, sífilis, e/ou HIV) entre participantes e nao participantes. Também se compararam os escores de Apgar no 1° e 5° minutos, o peso do RN e a idade gestacional (IG) no exame neonatal. O peso dos recém-nascidos foi significativamente menor em maes que nao participaram no estudo (2.653,46 vs. 2.878,09 g, p = 0,02), assim como foi a IG (37,30 [DP 2,50] vs. 38,64 [DP 2,4] semanas, p = 0,02) e a realizaçao ou nao de atendimento pré-natal (p = 0,02), sem outras diferenças significativas entre os grupos (dados disponíveis mediante solicitaçao).
Os critérios de inclusao maternos para os casos foram história de uso de crack e idade entre 18 e 45 anos. Os critérios de exclusao foram incapacidade de compreender e preencher os questionários neuropsiquiátricos no período pós-parto imediato.
INSTRUMENTOS E VARIAVEIS
O QI foi estimado usando os subtestes cubo e vocabulário do Wechsler Adult Intelligence Scale, third edition (Escala de Inteligência Wechsler para Adultos); WAIS-III25,26. Psicopatologia materna foi avaliada usando o Mini International Neuropsychiatric Interview (MINI), versao brasileira 5.0.0/DSM-IV/Current27. O MINI é uma entrevista diagnóstica padronizada, de aplicaçao rápida (em torno de 15 minutos), que explora os principais Transtornos Psiquiátricos do Eixo I com base nos critérios do DSM-IV. Uso de substâncias psicoativas foi avaliado através do Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test (ASSIST, teste de triagem para álcool, nicotina, maconha, cocaína e outras substâncias)28. Esse instrumento mensura o nível de dependência e contém oito questoes, sendo as sete primeiras referentes ao uso e aos problemas relacionados a tabaco, álcool, maconha, cocaína, estimulantes, inalantes, hipnóticos/sedativos, alucinógenos e opiáceos nos últimos três meses; a última questao relaciona-se às drogas injetáveis. O nível socioeconômico foi baseado no critério ABA/ABIPEME e dicotomizados em alto nível socioeconômico (classes A e B) ou baixo nível socioeconômico (classes C, D e E), com base na escolaridade do chefe da família e quantidade de determinados bens de consumo29. Idade, etnia autorreferida, estado civil e outras variáveis sociodemográficas foram sistematicamente coletados por meio de um formulário-padrao. A etnia foi dicotomizada como nao branco ou branco. As seguintes variáveis neonatais foram obtidas por revisao de prontuários médicos: peso, índice de Apgar no 1° e 5° minutos, idade gestacional (IG) ao exame neonatal, sexo, necessidade de hospitalizaçao. Os dados sobre a presença de doenças infectocontagiosas da mae (sífilis, HIV e/ou hepatite C), tipo de parto e assistência pré-natal também foram coletados de registros médicos. O nível de medidas de resultados da CART no SCU e sangue materno foram coletados e processados como descrito a seguir.
COLETA E PROCESSAMENTO DE SANGUE
O sangue total (10 mL) foi coletado por punçao venosa para dentro de um tubo de vácuo livre de anticoagulante. Imediatamente após a coleta, as amostras de sangue foram centrifugadas a 200 g/min durante 10 min e o soro foi dividido em alíquotas, etiquetado e armazenado a -80 °C até ao momento do teste. O sangue da mae foi coletado em até 24h após o parto. Já o SCU, no pós-parto imediato, como orienta o Protocolo do Banco de Sangue de Cordao Umbilical e Placentário do Instituto Nacional do Câncer30. As mensuraçoes foram realizadas no soro.
MENSURAÇAO DA CART
Os níveis de CART foram medidos pelo método de ELISA (enzyme-linked immunosorbent assay). Os ensaios de ELISA foram feitos através de kits comerciais (Intra-Assay: CV < 10%; Inter-Assay: CV < 15%) desenvolvidos por RayBiotech (USA), de acordo com o protocolo fornecido pelo fabricante. Devido à alta concentraçao de CART nas amostras, todas elas foram diluídas 200 vezes, pois ultrapassavam o limite de detecçao do espectrofotômetro. O fator de diluiçao foi incluído no software de análise. Os resultados foram expressos em µg/mL.
ANALISE ESTATISTICA
Os valores foram descritos como média e desvios-padrao (distribuiçao normal) ou mediana e intervalo interquartil (distribuiçao assimétrica). As variáveis categóricas foram descritas como frequência absoluta e relativa. Para verificar possíveis correlaçoes, foi aplicada a correlaçao de Spearman, após verificaçao do padrao de distribuiçao pelo teste de Kolmogorov-Smirnov. O nível de significância aceito foi de p ≤ 0,05. Os dados foram processados e analisados em SPSS Statistics 18.0.
RESULTADOS
As características da amostra estao descritas na Tabela 1. Aproximadamente 90% dos bebês foram adequados para IG, com peso médio de 2.882,15 (473,32). As maes eram, na maioria, de etnia nao branca (67,9%) e 61% apresentavam algum outro diagnóstico psiquiátrico positivo no MINI que nao dependência química.
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