Rev. bras. psicoter. 2016; 18(3):69-79
Salvador JM. A dor de crescer: marcas da angústia de separaçao. Rev. bras. psicoter. 2016;18(3):69-79
Relato de Caso
A dor de crescer: marcas da angústia de separaçao
Julia Macedo Salvador
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A dor de crescer: marcas da angústia de separaçao
E essa angústia de onde vem?
A partir de uma revisao teórica do conceito de angústia de separaçao, desde sua origem no desenvolvimento de um indivíduo até sua possível elaboraçao, o presente trabalho busca abordar a forma como essa angústia pode se manifestar na vida e no tratamento psicanalítico. Para ilustrar, é apresentado o caso de uma paciente de 28 anos atendida em psicoterapia psicanalítica, inicialmente com duas sessoes semanais que se mantiveram durante dois anos, e no último ano de tratamento com uma sessao na semana.
Em "Inibiçao, sintoma e ansiedade", Freud1 reformula sua teoria e atribui a origem da angústia às fantasias de temor à separaçao e à perda do objeto, dando origem a uma concepçao verdadeiramente psicológica. Refere que a angústia é um estado de insuficiência psíquica do ego frente a um perigo que o ameaça e, assim, desperta o desamparo biológico e psíquico sentido pelo bebê na ausência da mae, a qual ama e deseja.
Zimerman2 explica que, no início da vida, a existência do bebê é um estado caótico que consiste em sensaçoes agradáveis e desagradáveis, sem consciência de si, ou do outro, do que é dentro ou fora. O outro, geralmente a mae, é concebido pelo bebê como uma extensao de si, o qual deve estar de forma permanente à sua disposiçao para suprir suas necessidades. Para o autor, nao ser visto, nesse momento em que o narcisismo é essencial e estruturante, é o mesmo que nao existir. A ausência do olhar da mae é sentida internamente pelo bebê, como uma ameaçadora separaçao, com consequentes angústias de aniquilamento, de perda de amor ou de castraçao.
Pode-se considerar a ausência do olhar materno quando ocorre um afastamento da mae, mas também quando esta olha para o bebê, mas nao o enxerga. Maria[1] nasceu do desejo de sua mae de ter uma companhia, pois se sentia muito sozinha e sem ocupaçao. O pai de Maria trabalhava muito e raramente estava em casa. Queria esperar um pouco mais para ter filhos, mas a mae acabou engravidando. Vê-se que Maria nasceu para suprir uma falta da mae, e nao para existir como um ser separado e diferente da mesma.
A mae de Maria tinha depressao. A paciente nao lembrava de nada marcante que tivesse ocorrido ao longo de sua vida em funçao da doença da mae, apenas que ela nunca foi uma pessoa alegre, divertida ou cheia de vida. Esteve sempre "na volta dos filhos, sem muita ocupaçao ou distraçao própria". A mae tomava medicaçao "desde sempre". Em alguns momentos do tratamento, Maria trazia o medo de ser como a mae: "triste e sempre aumentando os problemas".
Ao longo de sua infância, Maria sempre fez tudo para agradar e satisfazer as vontades dos pais. Na escola, precisava tirar notas boas e, quando isso nao acontecia, era ameaçada por eles de ser colocada em uma escola interna, longe dos pais. Tinha a sensaçao de que, se nao fizesse como eles esperavam, nao seria amada e desejada.
Segundo sua percepçao, o irmao, seis anos mais novo, "viveu" muito mais do que ela. "Ele teve experiências diferentes, fez coisas consideradas erradas e ousou mais, pois nao se importava com o que os pais iriam pensar". Maria sentia que deixara de ter muitas vivências e, por isso, hoje, se sentia insegura: "A sensaçao que eu fico é que o que eu vivi nao fica em mim, como se nao colasse e, entao, nao me sinto preenchida por nada; parece que estou sempre vazia". Seu pai sempre considerou o mundo como muito perigoso e dizia que nao deveriam confiar em ninguém. Por conta disso, ela desconfiava das pessoas; acredita que isso contribuiu para que ela tenha ficado muito "debaixo da asa dos pais".
Quando ficou menstruada, a mae lhe disse que deveria sempre contar tudo para ela e que seria sua melhor amiga. Ao longo do tratamento, Maria foi percebendo que, a partir do momento em que poderia ter começado a se sentir mulher, nao teve nada que fosse particular, pois desde esse dia passou a dividir tudo que vivia com a mae: "Eu passei a contar tudo para ela, nao tinha mais segredos. Acabei nao tendo mais nada que fosse só meu e que eu pudesse sentir como fazendo parte de mim".
Maria chegou com 28 anos para tratamento se sentindo perdida. Queria sair de casa e abrir um negócio próprio, mas ficava em dúvida se realmente desejava essas mudanças ou se "era porque estava na hora". Tinha consciência de sua idade cronológica, mas ainda se sentia uma menina incapaz de dar conta de uma vida adulta, separar-se dos pais e sentir-se uma profissional bem-sucedida. Sofria muito com a ideia de sair de casa, e se sentia insegura longe dos pais. Tinha dificuldade de ficar sozinha em casa nos finais de semana. Quando os pais iam para a praia, ela ia junto ou convidava alguma amiga para ficar com ela em casa, pois sentia "medo de espíritos e de que algo acontecesse".
Trabalhava em um escritório há cinco anos, mesmo local em que realizou seu estágio curricular. Era uma empresa pequena familiar, na qual Maria se sentia, muitas vezes, envolvida no drama das proprietárias, mae e filha. Por vezes, sentia vontade de abrir seu negócio próprio, mas tinha muita dificuldade de pedir para sair, imaginando que a chefe iria "queimá-la no mercado e que nao iria conseguir se colocar em mais nenhum local".
Maria ficava em dúvida se deveria utilizar suas economias para abrir seu negócio ou sair de casa. Aos poucos, foi entendo que nao se sentia pronta para nenhum dos dois. Ela ficava brava e insegura quando percebia que nao se sentia capaz de dar esses passos. Percebia que tinha muito medo de falhar e fazer escolhas erradas, como se nao tivesse retorno, e tudo estivesse acabado.
O que é possível pensar ao escutar Maria em sua psicoterapia? A angústia de separaçao é um fenômeno universal que está presente no cotidiano de muitas pessoas. É uma emoçao estruturante para o ego, pois o sujeito toma consciência de que existe como um ser só e único em relaçao ao outro, no momento em que sente a dor da solidao. A partir dela, percebe que o outro é separado e diferente, o que forja o início do sentimento de identidade3,4.
Quando se fala em angústia de separaçao normal, em um contexto de relaçoes entre pessoas, considerase o sentimento doloroso de medo sentido por uma pessoa quando a relaçao afetiva estabelecida com um indivíduo importante de seu ambiente é ameaçada de interrupçao ou é interrompida de fato. Costuma-se usar o termo "perda" quando existe um caráter permanente, e "separaçao" quando sao situaçoes provisórias. No entanto, é comum que as fantasias de separaçao sejam confundidas com as de perda e, nesses casos, a separaçao é vivida como uma perda3,4.
Ao pensar em pacientes com um sofrimento muito grande devido a separaçoes, é possível entender que "a relaçao com o objeto original foi traumática e que o ego nao foi inteiramente capaz de lidar com a frustraçao e com o sentimento catastrófico" (p. 496)5. No caso de Maria, pode-se pensar que a falta de desejo do pai por sua chegada e uma mae deprimida tenham gerado marcas traumáticas no princípio de sua existência.
Uma ruptura traumática acontece em funçao de a mae nao conseguir (por motivos internos ou externos) dar conta e processar as descargas e excitaçoes fisiológicas e psíquicas, ocasionando que o bebê viva uma sensaçao precoce de "dualidade" como uma ameaça de desastre. É fundamental que o bebê "atinja uma suficiente integraçao para que possa suportar a tensao inerente ao processo de diferenciaçao e a consciência crescente do objeto como entidade separada" (p. 496)5.
Durante o tratamento de Maria, aos poucos foi-se entendendo que, junto com o "medo de dar errado" profissionalmente, existia também um "medo muito grande de dar certo". O que aconteceria se conseguisse abrir seu próprio negócio? Como se sentiria saindo de casa e deixando os pais?
Maria sentia como se estivesse "matando os pais", como se eles nao fossem capazes de sobreviver a sua separaçao. "Quem vai cuidar deles?", perguntava-se. Sentia que a mae já estava mais limitada e nao conseguia se cuidar. Ela havia caído em casa e cortado a sobrancelha. Ficou muito assustada vendo a mae sangrar e se questionando o que teria acontecido se ela nao estivesse ali.
Maria nao costumava viajar sozinha. Anualmente, o pai e a mae faziam uma viagem para um mesmo local, a negócios do pai. Ela sempre ia junto "para acompanhar a mae, que ficaria sozinha enquanto o pai trabalhava". Brincava que "seguia sendo a dama de companhia da mae".
No primeiro ano de tratamento, surgiu a possibilidade de ela fazer uma viagem com uma prima próximo ao período em que acompanhava os pais nessa viagem de negócios. Sentiu-se culpada, com a sensaçao de estar abandonando a mae. Durante os meses que antecederam a viagem, Maria teve fantasias de que algo poderia acontecer com os pais enquanto estivessem longe: imaginava que poderiam sofrer um acidente e que ela nao teria tempo de voltar para vê-los. Também ficava angustiada e sofria com a ideia de estar sozinha no exterior, com medo de que algo acontecesse consigo.
Pode-se pensar que, nesse aspecto, Maria funcionava predominantemente na posiçao esquizoparanoide6, ora com receio de que estaria atacando os pais e se sentindo responsável caso algo acontecesse com eles, ora com medo de que os pais a retaliassem, e ela ficasse sozinha e desamparada.
Esses sentimentos também apareciam em relaçao à terapeuta. Segundo Klein6, as vivências de perda trazem à tona as fantasias sádicas e o sentimento de culpa, o que acaba reativando o conflito de ambivalência afetiva de amor-ódio em relaçao ao objeto. Nessas situaçoes, o ódio fica maior e é projetado sobre a pessoa amada e perdida, representada, posteriormente, pelo terapeuta na relaçao transferencial.
COMO A ANGUSTIA DE SEPARAÇAO SE MANIFESTA...
De acordo com Quinodoz3, pode-se considerar a angústia de separaçao como o "sentimento de estar abandonado e só, triste ou pesaroso, frustrado ou desesperado" (p. 25). O grau da angústia interfere na expressao das reaçoes afetivas. Tais reaçoes podem ser menores, como ansiedade ou mágoa, mas podem ser manifestaçoes mais sérias. Nesse caso, podem ser psíquicas, como depressao, delírio ou suicídio; somáticas, que afetariam as funçoes do organismo; ou psicossomáticas, que provocariam lesoes orgânicas, como uma retocolite ulcerativa, por exemplo.
Logo que chega para tratamento, Maria conta que tem muito medo de dirigir. Tal medo teve início na aula teórica de autoescola, quando assistiu "àqueles vídeos horríveis de acidentes e pessoas morrendo e despedaçadas". Ela teve taquicardia e ficou tonta. Relata que "tudo ficou preto" e sentia que iria morrer. Chegou a dirigir algumas vezes, mas nao se sentia segura quando estava na direçao.
Após um período investigando o que sentia, ela procurou um psiquiatra. Foi diagnosticada com transtorno do pânico, e foi iniciado tratamento com um ansiolítico. Ao falar da apresentaçao teórico-clínica do transtorno de pânico, Pereira7 descreve que uma grande parte dos pacientes que apresentam essa forma clínica de angústia sofre de ansiedade de separaçao durante a infância.
A habilidade de conter a angústia de separaçao varia de sujeito para sujeito. Quando se pensa em "normalidade", fala-se da condiçao da pessoa de enfrentar a angústia e elaborá-la psiquicamente. Contudo, por vezes, a angústia é excessiva e, por razoes tanto externas quanto internas, excede a capacidade de conter e elaborar tamanha intensidade. Com base nessa variaçao, pode-se entender que as reaçoes à separaçao ou à perda do objeto têm origem inconsciente; por isso, muitas vezes o significado da angústia nao fica claro para o indivíduo que sofre3.
A medida que foi sendo trabalhada a dificuldade de Maria se sentir inteira longe dos pais, ela foi entendendo que o carro e a capacidade de dirigir lhe dariam a possibilidade de ir para longe (fisicamente, mas também emocionalmente). Era-lhe insuportável a ideia de ter liberdade para ir e vir, de nao depender mais dos pais. Assim, ela nao conseguia dirigir na estrada se nao estivesse acompanhada, companhia que acabava sendo, geralmente, a mae.
No final do primeiro ano de tratamento, Maria começou a se relacionar com Gabriel. Era constante sua sensaçao de que gostava mais dele do que o contrário. Quando ele ficava alguns dias sem entrar em contato, ela achava que estava tudo terminado e que ele nunca mais iria procurá-la. Era como se o que sentissem um pelo outro nao fosse permanecer dentro dela quando estavam distantes. Ela nao o procurava e se mantinha distante, esperando que ele tomasse alguma iniciativa. Contudo, quando ele a procurava, ela muitas vezes o afastava, desconfiando de seus sentimentos e acreditando que acabaria machucada. Lembrava do pai quando sentia isso, relatando sua desconfiança do mundo e percebendo como isso hoje fazia parte dela.
Quinodoz4 ressalta que, quando o sofrimento frente à separaçao é excessivo, a dor psíquica leva à utilizaçao de mecanismos de defesa primitivos próprios da posiçao esquizoparanoide, e o ódio se torna mais forte que o amor. Com fins defensivos, o objeto é, entao, cindido em um objeto idealizado e um objeto persecutório. Em consequência da projeçao da pulsao de morte, a ameaça de aniquilamento do ego é percebida como proveniente do objeto parcial mau, situado no exterior, enquanto o objeto parcial idealizado é introjetado, a fim de manter os perseguidores à distância.
Podemos pensar que, ao se deparar com a separaçao, Maria projeta seus sentimentos agressivos em Gabriel, como sua raiva. Passa a vê-lo como o objeto perseguidor que nao a deseja, sentindo assim que a relaçao acabou, e funcionando predominantemente na posiçao esquizoparanoide6. Passa a sentir raiva também para se defender do objeto e deixa de se conectar com o amor que ainda sente. Nao consegue integrar e perceber que, mesmo sentindo raiva, ainda o ama. Dessa forma, toda vez que se separam, o que sente é tao insuportável que sua sensaçao é de que a relaçao acabou.
O CAMINHO ENTRE A DIFERENCIAÇAO E A SEPARAÇAO
Como já foi explicitado, inicialmente o bebê nao se percebe como um ser separado e diferente da mae. Para que ocorra um crescimento mental, é essencial que o indivíduo possa desenvolver um vínculo no qual reconheça que o outro nao é meramente um espelho seu, mas um ser diferente, com valores, ideias e condutas distintas das suas. O reconhecimento de si mesmo e do outro sao fatores importantes para a constituiçao do sentimento de identidade. Isso ocorre a partir da evoluçao de sua habilidade de pensar e, logo, de conhecer e reconhecer2.
Quando chegou para tratamento, Maria sentia que nao sabia como era e do que gostava. Percebia que o pai tinha um jeito mais duro e rígido, e a mae era mais flexível e jeitosa. "Me sinto entre a taquara e o bambu." Gostaria de poder se encontrar independente do jeito dos pais, mas se sentia perdida.
Para Quinodoz3, a noçao psicanalítica de separaçao tem duas acepçoes diferentes. A primeira ocorre quando o indivíduo tem consciência de que o outro é livre e separado de si, mesmo que sua ausência lhe cause sentimentos de tristeza, solidao, dor, ou até mesmo de alívio e liberdade. Nesta, a separaçao no espaço e no tempo nao significa obrigatoriamente uma ruptura de vínculos ou de perda do amor, e o indivíduo nao sente que o objeto irá tirar vantagem dessa situaçao para abandoná-lo. Existe confiança no objeto, de maneira que nao há necessidade de sua presença constante. Mesmo com o medo de uma perda do amor, existe a esperança do retorno; nesse caso, a ausência do objeto investido nao causa um dano à estrutura psíquica do indivíduo, mas sim o afeta em seus sentimentos.
Em uma segunda acepçao, no entanto, o indivíduo mostra sinais de angústia que indicam que seu ego se sente ameaçado pela possibilidade de uma separaçao. Assim, "separar-se" assume um significado diferente: a ausência do objeto relevante "reaviva a angústia sentida pelo ego do indivíduo afetado, obrigado a perceber que ele nao é esse objeto, que esse objeto é diferente de seu ego e que ele nao confia nas intençoes do objeto" (p. 44)3.
Nas relaçoes com Gabriel e com os pais, Maria ficava muito angustiada quando percebia que estava sentindo falta deles. Nesses momentos, relatava que era como se eles levassem uma parte dela. "Sinto que é como se eu tivesse me desmanchando, como se eu fosse um castelo de areia, frágil, sem estrutura." Isso também ocorria quando sentia que fracassava no trabalho e que deveria ter sido capaz de fazer diferente. Ao se sentir sozinha, tendo que lidar com a dificuldade profissional, sentia-se insegura: era como se tudo voltasse à estaca zero, como se o que ela havia vivido nao ficasse nela, como uma experiência com a qual havia aprendido. Tinha a sensaçao de estar se "desintegrando". Ficava muito assustada, com medo de se perder, de enlouquecer e nao voltar mais dessa condiçao de loucura.
A ANGUSTIA DE SEPARAÇAO NO TRATAMENTO PSICOTERAPICO...
No tratamento psicoterápico, a angústia de separaçao pode ser percebida na perspectiva de seu término, nas férias, nas interrupçoes de finais se semana, e até mesmo nos finais das sessoes. Ela está sempre presente. Porém, há uma variaçao na maneira como o paciente lida com as descontinuidades fantasiadas ou reais do encontro psicanalítico3,4.
Na transferência, é possível acessar e transformar as reaçoes psíquicas conscientes e inconscientes ligadas à separaçao e à perda de objeto, sejam estas de origem real ou fantasiosa. Isso pode ser revivido na relaçao transferencial, sendo assim interpretado e elaborado8.
No entanto, Hissa9 ressalta que "os movimentos regressivos em direçao à vivência fusional com a maeanalista podem ser muito temidos, pela angústia de ser reenglobado, perder os limites do self frágil" (p. 517). Assim, visando a se proteger, o paciente se defende; se lhe dermos, porém, tempo para desenvolver uma confiança, podemos ajudar o paciente a chegar mais perto de si do que jamais esteve.
Após as primeiras férias da psicoterapia de Maria, ela achava muito engraçado quando a terapeuta perguntava como havia sido o tempo de separaçao. Ela nao entendia a que a terapeuta se referia, pois relatava nao ter sentido nada na ausência desta. Nas segundas férias, desorganizou-se um pouco mais, e foi possível entender como esse movimento poderia estar relacionado com a ausência das sessoes.
Com o tempo, ela pode ir valorizando o espaço da terapia. Quando sofria com a ideia de deixar a mae, pensava na terapeuta e como seria dolorido o dia em que também ali houvesse uma separaçao. Sabia que a terapeuta nao fazia parte de sua família, e achava que era estranho: "É como se, em minha árvore genealógica, tu fosses uma bolinha ali, sem linhas de ligaçao, mas sempre presente". Assim, foi sendo compreendido o quanto era difícil para Maria se sentir próxima da terapeuta e reconhecer que sentia suas ausências, porque também pensava no dia em que teria que ali se separar.
Na medida em que isso foi sendo trabalhado, Maria pôde ir desenvolvendo sua capacidade de autocontinência10. Assim, quando começava a ficar mais angustiada, conseguia conter-se, nao atuar e ir se acalmando. Ela trazia as situaçoes para o tratamento contando como havia lidado com o sentimento: "Eu ainda sinto, mas nao é mais forte, do mesmo jeito, e nao toma mais conta de mim como tomava. Acho que, de algum jeito, eu sempre vou sentir, mas agora sei que posso controlar".
Diversos fatores influenciam para que o sentimento de solidao possa ser tolerado e integrado. Gama e Silva5 e Mestriner11 sugerem que o setting analítico pode ser visto como uma incubadora na qual o paciente "prematuro" psicologicamente pode encontrar um espaço para fazer as integraçoes básicas nao realizadas ao nascer e, a partir delas, desenvolver sentimentos de ligaçao e de confiança. Ao longo do tratamento psicoterápico, o paciente pode transformar a experiência desesperadora de solidao em uma solidao domesticada, na qual predomina a confiança, bem como a comunicaçao consigo mesmo e com o outro.
A síntese do amor e do ódio possui uma funçao importante entre os fatores de integraçao. O entendimento das relaçoes objetais e das defesas, nas fantasias e na realidade, possibilita que o paciente diferencie melhor a realidade externa da realidade interna do objeto, gerando uma necessidade menor de projeçao, podendo, entao, estar mais em contato com sua realidade psíquica12.
No início da relaçao de Maria com Gabriel, quando se desentendiam, ela achava que ele nao gostava mais dela e que ele terminaria a relaçao. Com o passar do tratamento, pôde começar a perceber que, sempre que eles falavam em término, era ela quem introduzia o assunto, que ele estava apenas chateado ou incomodado, e que era ela quem tinha dificuldade de suportar a raiva que sentia e já pensava em acabar. Ao dar-se conta disso, ela pôde diminuir as projeçoes nele e vê-lo de forma mais real, que ele desejava e demonstrava querer estar com ela.
Quinodoz4 refere que é quando as boas experiências predominam que as projeçoes e a perseguiçao diminuem, de modo que a cisao entre os objetos idealizados e persecutórios também pode diminuir. Assim, o paciente se aproxima da posiçao depressiva, ou seja, da integraçao dos objetos e do ego, e da integraçao do amor e da raiva, podendo o objeto ser sentido como total. Para Klein6, isso "significa que as pessoas podem ser amadas apesar de suas falhas e que o mundo nao é visto apenas em termos de preto e branco" (p. 289).
QUEM SABE UM DIA PODE-SE "VIR A SER"
Freud1 mostrou que, quando a angústia de separaçao é muito forte, ela é vivida como um temor desesperador de se ver só e abandonado, o que constitui a fonte da dor psíquica e do sentimento de luto. Winnicott13 refere que a "maturidade e capacidade de ficar só significam que o indivíduo teve oportunidade, através de maternidade suficientemente boa, de construir uma crença num ambiente benigno" (p. 34).
Pensando no espaço que o terapeuta pode proporcionar para e com o paciente, Hissa9 refere que, em condiçoes favoráveis oferecidas pelo terapeuta, o paciente pode vir a "arriscar-se à mais completa dependência" (p. 517). Ao longo do tratamento, vivências de separaçoes vao fazendo com que o paciente se desorganize e sinta o desespero ou até sensaçoes de morte, como se fosse um bebê à espera do cuidado da mae.
Para Hissa9, "o caminho analítico é muito difícil, sendo tremendamente doloroso sentir-se tao dependente, tao frágil, tao necessitado dos cuidados do analista, abrindo mao de estratégias desenvolvidas ao longo da vida para evitar o contato com esses sentimentos penosos, e tendo que, ao mesmo tempo, tolerar os limites do setting" (p. 517). Mas, apenas revivendo as faltas da relaçao original, na transferência, pode-se desenvolver a habilidade de tolerar faltas e ir se consolidando estruturas que possibilitem levar adiante o crescimento mental, havendo, assim, "[...] a aceitaçao dos limites humanos, no lugar das tentativas de compensar e negar a fragilidade através das atitudes maníacas, em busca de confirmar fantasias onipotentes" (p. 517). Dessa maneira, "o mundo interno ameaçador, vazio, pode ser transformado, com o desenvolvimento de um 'self' mais integrado, em condiçoes de estabelecer relaçoes objetais significativas, com um investimento afetivo mais maduro" (p. 517).
Maria já cresceu muito desde que iniciou o tratamento, mas ainda existem ocasioes em que sente dificuldade em se entregar totalmente para a terapeuta e para o tratamento. Por vezes, consegue estar muito próxima e contar com a ajuda e o suporte, mas também realiza constantes movimentos de distanciamento. Estes apareceram ao longo do tratamento em sessoes em que contava que estava tudo bem; sentia que "tudo estava indo", sem falar do que realmente a estava incomodando; ou na necessidade de reduçao das sessoes semanais (de duas para uma) em diferentes momentos ao longo dos três anos de sua psicoterapia; ou, ainda, na incômoda sensaçao que, muitas vezes, trazia de se "sentir presa e dependente da terapeuta, como se estivesse com uma bola de ferro presa nos pés".
Maria está saindo de casa e indo morar com Gabriel. Há um ano, sua relaçao com Gabriel se estabilizou, e ela parou de ter constantes fantasias de abandono. Conseguiu se reaproximar de uma forma mais saudável dos pais, relaçao que vinha repleta de fantasias de engolfamento e retaliaçoes. Começou a trabalhar como autônoma, ter seus clientes e trabalhos relativamente constantes, conseguindo se sustentar.
Durante o último ano de terapia, ela seguiu de forma estabilizada, mas sem querer mexer muito no que estava relativamente acomodado. "Sinto que o buraco é mais embaixo, mas nao estou querendo entrar nisso agora." Ela estava melhor, podendo suportar mais as conquistas que tinha tido, deixando de destruir suas conquistas, ainda que muito assustada com o que estava por vir.
Quinodoz12 fala de duas faces da solidao: como um medo desesperador de ser abandonado, quando a angústia de separaçao é experienciada de forma excessiva; e como uma força motivadora e propulsora para a vida, quando conseguimos elaborá-la. Quem sabe, um dia, Maria possa "domesticar" sua solidao, conseguindo pensar em seguir a vida sem que o sofrimento de se separar dos pais fique em seu caminho, impedindo-a de crescer e se desenvolver enquanto uma mulher adulta.
Quinodoz12 ressalta que nao é quando acabamos com a angústia que domesticamos a solidao, mas sim quando aprendemos a suportá-la e colocá-la a serviço da vida. A medida que se pode tomar consciência de que se é um ser único e o outro também, a relaçao consigo mesmo e com o outro se torna imensamente valiosa.
Maria pode hoje muito mais do que podia antes de chegar para tratamento. Ainda se atrapalha e, por vezes, sua angústia fica no caminho de passos mais certeiros a serviço da vida. Mas está indo... Penso que a relaçao transferencial tornou-se, de fato, valiosa para ela. Principalmente pelo que pôde ser inaugurado dentro dela, consigo mesma, de se perguntar e se entender, nem que seja para assumir que nao deseja olhar para o que habita dentro dela naquele momento. Seguimos trabalhando para que, cada vez mais, ela possa se encontrar e seguir seu caminho com mais vida e menos angústia.
REFERENCIAS
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13. Winnicott DW. A capacidade de estar só. In: Winnicott DW. O ambiente e os processos de maturaçao. Porto Alegre: Artes Médicas; 1983. p. 31-37.
Psicoterapeuta no Estudos Integrados de Psicoterapia Psicanalítica (ESIPP). Psicóloga clínica. Porto Alegre, RS, Brasil
Correspondência
Julia Macedo Salvador
Rua Desembargador Moreno Loureiro Lima, 385/704, bairro Bela Vista
90450-130 Porto Alegre, RS, Brasil
juliasalvador@terra.com.br
Submetido em: 27/07/2016
Aceito em: 08/11/2016
Instituiçao: Estudos Integrados de Psicoterapia Psicanalítica (ESIPP)
[1] Todos os nomes reais e dados que pudessem identificar os envolvidos neste material clínico foram alterados, a fim de manter seu anonimato.
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