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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2016; 18(3):81-87



Artigo Especial

Processo criativo: uma visao pessoal das artes plásticas

Júlia Niero Páfaro

Resumo

Este relato de experiência tem o objetivo de trazer o que é o processo criativo dentro da experiência pessoal, ilustrado através de histórias pessoais, colegas, amigos, todos que trabalham com artes visuais. Além disso, este relato de experiência tem intençao de trazer um pouco do que foi falado na mesa Processo Criativo e Artes, da XXVIII Jornada Sul-Rio-Grandense de Psiquiatria Dinâmica.

Descritores: Artes; Artes plásticas; Processo criativo; Criatividade; Artistas.

Abstract

This experience report that aims to bring what is the creative process within the personal experience, illustrated by personal, colleagues and friends stories, everyone of them who works with visual arts. Moreover, this experience report intends to bring a little of what was said in the directorate of creative process and arts creative process and table arts, in the XXVIII Jornada Sul-Rio-Grandense de Psiquiatria Dinâmica.

Keywords: Arts; Plastic arts; Creativity process; Creativity; Artists.

 

 

INTRODUÇAO

Embora existam muitos artigos e textos sobre o que é criatividade e o que é o processo criativo, os artigos acadêmicos em si sao de difícil acesso. Criatividade sempre esteve associada à loucura ou entao a genialidade, pelo fato de que as criaçoes criativas sao criativas pelo fato de que nem todos conseguiriam formá-las. A definiçao de criatividade dada pelo dicionário Priberam é a seguinte:

1. Capacidade de criar, de inventar.

2. Qualidade de quem tem. Idéias originais, de quem é criativo.

3. [Linguística] Capacidade que o falante de uma língua tem de criar novos enunciados sem que os tenha ouvido ou dito anteriormente.

Em inglês, a expressao "think out side of the box" para criatividade significa: pensar fora da caixa, pensar diferente da maioria, do comum ou do esperado. No português a palavra criatividade vem da raiz "criar". Criatividade, portanto, pode ser traduzida como: a arte de criar.


OBJETIVOS

Este texto é um relato de experiência sobre o processo criativo voltado para as artes plásticas, composto de histórias de diversos artistas, entre amigos, colegas e momentos por que eu mesma passei. Elas foram recolhidas em grande parte durante minha jornada dentro das artes e têm aprovaçao dos indivíduos para serem utilizadas aqui. A ideia deste texto também é trazer ao leitor um pouco do que palestrei na XXVIII Jornada Sul-Rio-Grandense de Psiquiatria Dinâmica, para os interessados que nao puderam estar presentes no evento.


RELATO

Durante a maior parte das vezes em que estou mostrando algum desenho a alguém, escuto as seguintes frases: "parabéns por esse dom" ou "eu gostaria de ter um dom assim". O importante dessas frases é que nelas o trabalho artístico está relacionado com a ideia de dom. Pelo dicionário Priberam, temos que "dom" significa:

1. Donativo; dádiva; benefício.

2. Prenda, talento, dote natural.

3. Título honorífico que em Portugal se dava aos membros da família real e da antiga nobreza e a certas categorias religiosas.

Entretanto, quando analisamos essas frases percebemos algo mais grave sobre a criaçao artística, que, na XXVIII Jornada Sul-Rio-Grandense de Psiquiatria Dinâmica, ilustrei através da seguinte imagem:




Essa imagem exemplifica muito bem o que a grande maioria das pessoas pensa a respeito da arte, que poderia ser simplificada na seguinte afirmaçao: "a arte é uma mágica, para a qual ou você tem talento ou nao". Nao há passos para fazer a coruja, ela simplesmente é feita de um momento para o outro, como se nao existisse um meio de caminho entre o começo e a imagem final. Já a palavra dom remete à seguinte afirmaçao: "a arte é uma dádiva", ou seja, a arte é um poder que foi adquirido de forma gratuita, e, portanto, nao advém do esforço de cada um dos indivíduos. Esse caráter mágico da arte parece acompanhar a grande maioria dos artistas ou entao a capacidade de desenhar.

O caráter mágico da arte nao é só algo errôneo, como mistifica o artista e também o empenho de cada indivíduo no aprimoramento de suas obras. Além disso, ele mascara o processo de criaçao dentro das artes plásticas, já que todas as imagens se formam de maneira instantânea.

Todo processo criativo dentro das artes plásticas passa por dois pequenos passos, que poderiam ser subdivididos em tantos outros, de acordo com o desejo de cada um. Entretanto, o mais importante para o processo criativo é 1. A capacidade de ver e 2. A capacidade de escolha sobre o que se está vendo.

A primeira parte eu ilustrei na Jornada da seguinte forma: "Qual ou quais as cores de uma maça?", e junto desta eu trouxe um pequeno relato:

Durante o mês de maio eu e meu namorado, Paulo, estávamos trabalhando com giz pastel oleoso. Nesse dia era a primeira vez que ele trabalhava com esse tipo de material, entao decidimos começar com algo simples. Paulo começou fazendo uma planta e eu comecei com uma maça. Durante parte do processo percebi que ele achou estranha minha escolha de cores para a maça, eu havia usado basicamente amarelo e laranja até entao, mas, embora tenha olhado de forma desconfiada para o meu trabalho, nao disse nada. Quando Paulo olhou novamente meu desenho ele se surpreendeu, porque dessa vez ele conseguia ver claramente a maça. Eu questionei-o por qual motivo ele tinha achado que eu nao sabia o que estava fazendo com o desenho, ele disse "eu estava achando muito estranho, mas é que maça nao tem tanto amarelo assim". Ouvindo isso, desafiei-o a ver a maça que tínhamos dentro da geladeira. Ela tinha mais amarelo que qualquer outra cor.




Entretanto, a maioria das pessoas tende a responder vermelho, ou pensar em vermelho como a única cor para a maça. Isso se deve em grande parte ao fato de que durante a infância somos ensinados a desenhar a maça de vermelho, mas a composiçao dela é muito superior a isso. Mas como nao paramos de fato para ver a maça, ela passa a ser uma simplificaçao: vermelha.

Todos os artistas que eu conheço têm um cuidado e um apreço pelas coisas que veem, muito embora seus enfoques sejam diferentes: cores, formas, sons, composiçao, entre outros. Lembro-me de que em 2011 estive no Instituto de Artes da Unicamp e lá fui apresentada a um rapaz que cursava artes cênicas. Durante uma das conversas, ele imitou o caminhar, que ele achava fantástico, de um determinado indivíduo. Até entao eu jamais parara para prestar atençao no caminhar das pessoas, nem muito em seus movimentos.

A segunda parte do processo criativo é a decisao sobre o que foi observado. Matisse nao pintou em "A dança" as pessoas de laranja porque as pessoas eram laranja, houve uma escolha dele sobre de que cor pintá-las e a decisao de representá-las foi assim. Dali também nunca viu elefantes de pequenas e finas patas, ainda assim é isso que encontramos em vários de seus quadros.

Nessa parte nao basta só ver, é preciso agir de forma ativa sobre o que se viu. Perguntar-se: "Como é que representarei este objeto?", "Como é que eu particularmente o vejo?"

Durante um trabalho final da cadeira de pintura da Unicamp, fomos apresentados ao trabalho de uma moça que fazia esculturas baseadas em algumas figuras que estavam presentes nas obras de Hieronymus Bosch. No entanto, ao chegar atrasada, sem café da manha, e nao tendo intervalo devido à participaçao da moça em nossa aula, tudo o que consegui ver em suas figuras eram vários salgadinhos com pernas. Uma amiga minha, ao ver meus desenhos, me aconselhou a desenhar exatamente isso para o trabalho de conclusao da cadeira, afinal havia sido isso o que eu realmente tinha visto durante a palestra dela. Acabei, entao, fazendo uma pintura que tentava imitar Bosch, mas substituindo todos os personagens por salgadinhos com pernas.

Escolher o que fazer com o que foi visto é a parte com que o artista tem mais liberdade de expressar o que se passa em sua mente. Entretanto, se o artista nao vê, entao a obra fica com pouca qualidade, e, se nao escolhe o que fazer com o que vê, ele nao é capaz de formar nada original. A composiçao final é uma mistura muito particular de cada indivíduo. A colocaçao de Lucien Freud sobre o assunto é bastante pertinente:

Toda a obra é um retrato e eu digo que toda a obra é um autorretrato [...] o assunto do tema é autobiográfico, tudo tem sempre a ver com esperança, memória, sensualidade e envolvimento, mesmo [...].

Eu pinto as pessoas, nao precisamente pelo que elas parecem, nao exatamente pelo que elas sao, mas pelo que deveriam ser.

É estranho pensar que, embora eu esteja me remetendo a artistas, todas as crianças fazem esse processo de forma automática e rápida. Praticamente todas as crianças desenham, todas criam, entretanto apenas alguns poucos continuam desenhando posteriormente. Durante a Jornada, perguntei na sala quantos deles desenhavam quando pequenos. Praticamente 100% das pessoas ali presentes levantaram a mao, mas, quando perguntei quantos ainda desenhavam, obtive menos de 10% da sala.

Quando digo que a arte nao advém de "dom" e "dádiva" é porque os artistas de hoje sao as crianças de antes que nao pararam de desenhar, pintar, escrever. Nao importa que seus primeiros trabalhos nao sejam bons. Particularmente, eu já voltei chorando da escola porque as outras crianças falaram que eu nao sabia desenhar. Um amigo meu, Vitor, passou por uma história semelhante:

Durante a infância, em um dia na escola, a professora pediu para que os alunos pintassem pinheiros de natal. Quando a professora recolheu os pinheiros e estava olhando cada um dos desenhos, ela disse a respeito de um deles que "era o pinheiro mais feio", devido ao fato de que a copa era marrom e o tronco, branco. Vitor nao falou que era dele o pinheiro, felizmente também nao parou de desenhar.






Nao há princípio de artes plásticas que seja magicamente bom, mas sim um processo que se constrói lentamente. O mais importante é que nao se deve parar. Vicent van Gogh conseguiu traduzir com maestria a continuidade de se fazer obras através da seguinte fala: "Desenhar é a raiz de tudo, e o tempo investido nisso é justamente toda a recompensa" (3 de junho de 1883, carta de Vicent van Gogh para Theo van Gogh).


CONCLUSAO

Assim, podemos concluir que o processo criativo dentro das artes plásticas passa por duas partes importantes. A primeira delas diz respeito à observaçao do meio, de forma a compreender os objetos ao redor, desde forma, coloraçao, estilo, entre outros. A segunda parte é a decisao do artista sobre aquilo que foi visto, espaço no qual ele pode se expressar e criar obras únicas. Ambos os processos sao necessários para a criaçao de arte, uma vez que, quando nao se sabe ver, nao há uma base na qual o artista possa trabalhar, tornando o trabalho demasiadamente simples ou falho, enquanto, quando ocorre a relaçao contrária, o artista nao é capaz de fazer uma criaçao própria.


AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que permitiram a utilizaçao de suas histórias neste texto, bem como àqueles que me ajudaram a relembrar de pedaços e informaçoes a respeito. Além disso, agradeço a todos que pararam para conversar comigo e desdobrar um pouco do que é esse vasto assunto, o processo criativo.










Cursou artes plásticas na Unicamp no ano de 2010. Cursou bacharelado em ciência e tecnologia e neurociência na UFABC no ano de 2013. Iniciou o curso de medicina na UFCSPA no ano de 2015. É participante da Liga de Psiquiatria e Saúde Mental (LIPSAM) desde o ano de 2015. Faz parte do projeto One Life A Day Agenda e trabalha principalmente nas modalidades desenho e pintura dentro das artes plásticas

Correspondência
Júlia Niero Páfaro
Rua Garibaldi n° 1128, ap. 401, bairro Bom Fim
90035-052 Porto Alegre, RS, Brasil
udi.julianp@gmail.com

Submetido em: 24/10/2016
Aceito em: 26/10/2016

 

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