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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2016; 18(3):55-68



Relato de Caso

Compreendendo a estrutura familiar e sua relaçao com a parentalidade: relato de caso de um casal em terapia de abordagem sistêmica

Tatiana Raquel Stürmer1; Angela Helena Marin2; Debora Silva de Oliveira3

Resumo

O presente estudo teve como objetivo compreender a relaçao entre a estrutura familiar e o exercício da parentalidade a partir do estudo de caso de um casal heterossexual com idade entre 35 e 40 anos, que tinha dois filhos pequenos e que realizou atendimento conjugal de abordagem sistêmica em uma Instituiçao de Formaçao em Terapia de Casal e Família na cidade de Porto Alegre/RS. Por meio da análise de conteúdo qualitativa dos registros dos atendimentos, observou-se que a estrutura familiar e a parentalidade estiveram associadas a dificuldades conjugais que perpassavam o exercício da maternidade e da paternidade, além da estrutura familiar constituída, reforçada pelo conflito com a família de origem, a rotina familiar, as finanças e as habilidades pessoais para resoluçao de conflitos. Nesse sentido, acredita-se que o trabalho com hierarquias, fronteiras e estabelecimento de papéis auxiliou o casal a refletir e promover mudanças familiares visando maior bem-estar de todos.

Descritores: Estrutura Familiar; Terapia de Casal; Parentalidade.

Abstract

This study aimed to understand the relationship between family structure and the exercise of parenting from the case study of a heterosexual couple aged 35 and 40, who had two small children and made systemic approach to conjugal care in an institution formation in Couple and Family Therapy in Porto Alegre / RS. Through qualitative content analysis of records of visits it was observed that the family structure and parenting were associated with marital difficulties that pass by the exercise of maternity and paternity, as well as made family structure, reinforced by the conflict with the family of origin the family routine, finances and personal skills for conflict resolution. In this sense, it is believed that working with hierarchies, boundaries and establishing roles, helped the couple to reflect and promote family changes aimed at greater well-being.

Keywords: Family structure; Couple therapy; Parenting.

 

 

INTRODUÇAO

A família contemporânea vem sofrendo inúmeras modificaçoes, as quais se relacionam com as mudanças que a sociedade tem passado28,30,31. Segundo Minuchin1, a família é um sistema aberto em constante transformaçao com os sistemas extrafamiliares. As açoes de cada um de seus membros sao conduzidas pelas características específicas do próprio sistema familiar, mas também pelas necessidades e preocupaçoes externas. Nesse sentido, no presente estudo teve-se como objetivo compreender a relaçao entre estrutura familiar e exercício da parentalidade por meio do estudo de caso de um casal em processo psicoterapêutico de abordagem sistêmica, que será chamado de Família Silva, composta por um casal heterossexual e dois filhos meninos pequenos (3 e 6 anos). Para tanto, teve-se como fundamentaçao os pressupostos da Escola Estrutural, especialmente os desenvolvidos por Minuchin1.

De acordo com Minuchin1, a estrutura familiar é constituída por um "conjunto invisível de exigências funcionais que organiza a maneira pela qual os membros da família interagem" (p. 57). Assim, a família é um sistema que funciona através de padroes transacionais, que sao determinados por comportamentos repetitivos e que regulam o comportamento de seus membros a partir das relaçoes estabelecidas entre eles1,33,31. A partir dessas interaçoes, os padroes se constituem e determinam-se os papéis familiares, mantendo, assim, a homeostase da família. Tais padroes transacionais sao mantidos por dois sistemas de repressao: o genérico e o idiossincrático. O primeiro envolve as regras universais que orientam a organizaçao familiar, como a hierarquia de poder entre pais e filhos e a complementaridade de funçoes entre marido e mulher. Esse sistema está relacionado às regras sociais, que nao sao exclusivas de uma única família, pois sao compartilhadas por diferentes núcleos familiares dentro de um mesmo contexto. Já o sistema idiossincrático é o que está ligado às expectativas mútuas entre os membros. A origem dessas expectativas centra-se em pequenos eventos cotidianos, que permeiam anos de negociaçoes explícitas e implícitas; ou em contratos originais esquecidos e nao explicitados, a partir dos quais os padroes permanecem2,1,33.

Além da estrutura familiar, a organizaçao da família também é conduzida pelos acordos que transpassam a convivência em diferentes níveis. Essa organizaçao se estrutura a partir de subsistemas, que sao "agrupamentos familiares baseados em geraçoes, gêneros e interesses comuns" (p. 184)3. Dessa forma, os indivíduos se organizam em subsistemas menores e desenvolvem papéis diferentes em cada um deles, como, por exemplo, no subsistema conjugal, parental e fraterno3. Nessa perspectiva, a família é entendida como um sistema que apoia uma estrutura hierárquica, constituída em subsistemas, ou seja, ela própria contendo outros sistemas com regras que regulam os relacionamentos entre si.

Todo subsistema familiar possui demandas e funçoes específicas e a estrutura familiar deve ser capaz de se adaptar quando as circunstâncias mudam. Nesse sentido, a continuidade e a flexibilidade dos sistemas e subsistemas sao importantes para a acomodaçao e a adaptaçao das mudanças contextuais e evolutivas ao longo da vida3. Por exemplo, a forma como os subsistemas conjugal e parental, enfatizados neste estudo, se relacionam pode ser influenciada pela etapa do ciclo vital em que a família se encontra4.

O subsistema conjugal é formado quando dois adultos se unem com o propósito expresso de formar uma família, considerando que ambos trazem consigo valores e experiências de cada um. Esse subsistema tem tarefas e funçoes específicas, que sao vitais para o funcionamento familiar1,31. Nesse sentido, as principais habilidades para a implementaçao de suas tarefas sao a complementaridade e a acomodaçao mútua, garantindo a qualidade e a satisfaçao conjugal26,24,25. Isto é, o casal deve desenvolver padroes de complementaridade que permitam a cada um envolver-se com o outro, sem a sensaçao de que renunciou a si mesmo. Ambos devem conceder parte de sua separaçao para ganhar em pertencimento. Contudo, a aceitaçao da interdependência mútua, numa relaçao simétrica, pode ser prejudicada pela insistência dos cônjuges em seus direitos independentes1.

Após o nascimento do primeiro filho, o subsistema conjugal é modificado, inaugurando-se o subsistema parental. Esses novos pais precisarao separar os desafios da conjugalidade dos da parentalidade, passando a fazer parte simultaneamente dos subsistemas conjugal e parental1,2. O subsistema parental deverá se diferenciar, para poder desempenhar as tarefas de socializaçao de uma criança, sem perder o apoio mútuo, que deve caracterizar o conjugal31,27.

Da Silva5 define a parentalidade como conjunto de processos psicoafetivos que se desenvolvem e se integram aos pais, ou seja, se refere ao aspecto dinâmico e processual da experiência de se tornar pai e mae. A medida que a criança cresce, suas exigências de desenvolvimento, tanto de autonomia como de orientaçao, impoem demandas ao subsistema parental, que deve ser modificado para atendê-las. Esse subsistema deverá se adaptar aos novos fatores, que incidem sobre as tarefas de socializaçao e estar em sintonia com as regras e disciplina em relaçao à educaçao dos filhos31. Espera-se, portanto, que os pais compreendam as necessidades de desenvolvimento dos filhos e expliquem as regras que acordam com eles.

Para Minuchin1, as fronteiras desempenham um papel importante no exercício da parentalidade. De forma semelhante, Nichols e Schwartz3 referem que os indivíduos, os subsistemas e as famílias sao demarcados por fronteiras, que sao barreiras invisíveis que os delimitam. Os subsistemas se organizam através de fronteiras, que definem quem participa, bem como quando e de que forma existe a participaçao dos membros nas relaçoes familiares1. Assim, o uso da autoridade e o acordo em relaçao às fronteiras sao fundamentais no subsistema parental e estao relacionados à identidade pessoal, social e psicossocial de cada indivíduo27.

As duas principais funçoes das fronteiras sao proteçao e diferenciaçao dos indivíduos1,6. A funçao da proteçao consiste na capacidade de construir uma fronteira permeável ou semipermeável diante das trocas entre os diferentes subsistemas, possibilitando a diferenciaçao entre os mesmos. Dessa maneira, as fronteiras promovem a seleçao de quem participa e como participa de um determinado subsistema1. Assim, entre o subsistema conjugal e parental deve-se estabelecer uma fronteira do casal, que define os assuntos das conversas que devem ocorrer sem a presença dos filhos.

As fronteiras podem ser classificadas como nítidas, difusas e rígidas. As fronteiras nítidas sao aquelas em que a família mantém um funcionamento apropriado, conseguindo determinar claramente as funçoes e o espaço que cada integrante de um subsistema desempenha e ocupa, existindo a comunicaçao e ajuda mútua entre os subsistemas1,31. Fala-se em fronteiras difusas quando nao existem limites entre os subsistemas, pois sao frágeis e de fácil atravessamento. Fronteiras enfraquecidas fazem com que os membros da família frequentemente reajam de maneira exagerada e intrusiva uns com os outros3,31. As famílias que possuem fronteiras difusas podem ser chamadas de famílias emaranhadas1,33 ou famílias aglutinadas7. Essas famílias possuem uma indiferenciaçao entre os subsistemas, e a distância entre seus membros é quase inexistente. Sendo assim, o problema de um de seus membros ou em um dos subsistemas acaba se expandindo aos demais, tornando-se de toda família. Essa falta de diferenciaçao entre os subsistemas acaba por desencorajar a autonomia e a procura de recursos para resolver e lidar com os problemas. Por fim, encontram-se as famílias desligadas1,33 ou desengajadas7, que possuem fronteiras excessivamente rígidas entre os subsistemas. As famílias com esse funcionamento apresentam comunicaçao dificultada e funçao protetiva comprometida. A relaçao caracteriza-se por distanciamento emocional e vínculos frágeis entre os membros, prejudicando a formaçao de sentimentos de lealdade e de pertencimento31.

Para refletir sobre a uniao familiar e promoçao de autonomia é necessário o reconhecimento dos papéis e funçoes de cada indivíduo e das fronteiras que estabelecem entre si. Entende-se que a investigaçao da relaçao entre estrutura familiar e parentalidade é necessária, pois possibilita a criaçao de estratégias que auxiliem na promoçao de uma educaçao mais efetiva aos filhos, beneficiando a saúde e bem-estar de todos os envolvidos. Assim, um subsistema conjugal e uma estrutura familiar saudável estao relacionados ao exercício da parentalidade.


MÉTODO

Delineamento


Foi realizado um estudo qualitativo, exploratório e longitudinal, com delineamento de estudo de caso único8, com a finalidade de compreender a relaçao da estrutura familiar e o exercício da parentalidade em um casal em processo psicoterapêutico de abordagem sistêmica.

Participantes

Participou um casal heterossexual, com dez anos de relacionamento e sete de coabitaçao, de nível socioeconômico médio, ambos com ensino superior completo, os quais tinham dois filhos, Benício, com 6 anos, e Gustavo, com 3 anos. A mae, Maria, 36 anos, era funcionária em uma empresa de grande porte, e Joao, o pai, 35 anos, havia recentemente ingressado em uma empresa pública via concurso. A família nao tinha histórico de atendimento psicoterápico anterior, apenas Joao já tinha tido acompanhamento psiquiátrico. A família foi denominada como Família Silva, e, no intuito de preservar a sua identidade e a confidencialidade dos dados, foram utilizados nomes fictícios.

Instrumentos, procedimentos éticos e de coleta de dados

O acompanhamento terapêutico aconteceu em um Instituto de formaçao em terapia de casais e famílias na cidade de Porto Alegre/RS de março até dezembro de 2015, totalizando 30 sessoes. O casal era atendido a cada 20 dias devido aos horários do trabalho de Maria, que viajava mensalmente. Em funçao disso, algumas vezes eram atendidos duas vezes na mesma semana. Como instrumentos de trabalho foram usados dados oriundos da entrevista de triagem, da ficha de dados sociodemográficos com base no prontuário da família e do registro dos atendimentos, abertos e nao estruturados, escritos pela primeira autora após o término dos atendimentos e escolhidos aleatoriamente para análise dos dados. Todo o processo terapêutico foi amplamente discutido e supervisionado por psicólogas especialistas em Terapia de Casal e Família. Destaca-se que o casal aceitou participar do estudo e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, atendendo à Resoluçao n. 446/2012 do Conselho Nacional de Saúde. No que tange aos procedimentos de análise de dados, foi realizada análise de conteúdo (AC) qualitativa9,10 dos registros das sessoes e elencadas categorias a posteriori, as quais foram discutidas com as supervisoras clínicas.


RESULTADOS E DISCUSSAO

Para realizaçao da análise de conteúdo, as categorias elencadas para discussao, após leituras exaustivas dos dados, foram: subsistema conjugal versus subsistema parental e estrutura familiar. Contudo, para fins de apresentaçao e melhor compreensao do caso, inicialmente será apresentada a história da Família Silva e os motivos de busca por atendimento. Destaca-se que nao foram trazidas vinhetas ilustrativas das categorias de análise, pois o material analisado foi o relato da sessao feito pela terapeuta de forma nao dialogada.


A FAMILIA SILVA: A HISTORIA DE JOAO E MARIA

Maria, natural de Porto Alegre, teve a oportunidade de trabalhar em Sao Paulo, onde conheceu Joao, que trabalhava em informática e morava com sua mae e irmas. Iniciaram o namoro morando em cidades diferentes, portanto viam-se somente aos finais de semana. O casal se dava bem e o relacionamento era prazeroso e agradável. Maria já havia percebido algumas explosoes de raiva que Joao tinha com a família de origem, entretanto isso nao repercutia em sua relaçao.

Após três anos de namoro, tiveram o primeiro filho, Benício (atualmente com 7 anos), que nasceu em Sao Paulo. Maria teve ajuda de sua mae, que se deslocou de Porto Alegre. A convivência diária de Joao com o filho deu-se, aproximadamente, após o primeiro ano de vida, quando foi demitido e passou a morar junto à família.

Maria engravidou do segundo filho quando Benício estava com 3 anos. Na gestaçao de Gustavo (atualmente com 3 anos), optaram por morar em Porto Alegre, pois consideravam a cidade mais tranquila. Durante muitos anos, moraram com a família de origem de Maria em funçao de complicaçoes após o nascimento do bebê, o que impediu que se mudassem para outro local e se independizassem da família de Maria. Nessa época, surgiram atritos entre o casal e os filhos, bem como discussoes com seus sogros. Joao mencionou diversas vezes que era maltratado e que se sentia mal no ambiente da família de Maria, pois sentia que "nao era bem-vindo".

Costumam ser comuns conflitos quando do enfrentamento de situaçoes estressantes, como influência da família de origem no exercício da parentalidade e educaçao dos filhos14. No caso da Família Silva, o fato de terem tido a necessidade de dividir a casa com a família de origem de Maria exacerbou as dificuldades entre o casal e entre eles e os filhos. Um dos aspectos que contribuiu para tais dificuldades se referia à interferência que os avós maternos exerciam na educaçao dos netos, priorizando a vontade dos mesmos e contrariando o pai quando os punia. Após essa questao ter sido tema de algumas sessoes, Joao e Maria alugaram um apartamento no qual estavam morando com os filhos.

Outro aspecto familiar relevante diz respeito a Joao, que estava há seis meses desempregado e no aguardo da convocaçao de um concurso público que fora aprovado. Naquele período, Maria foi a principal provedora. Apesar de receber seguro-desemprego, usava-o para manter seu vício de cigarro e maconha, dos quais fazia uso desde os 13 anos.

Joao e Maria procuram acompanhamento psicológico por nao estarem de acordo com a educaçao dos filhos. Foi a primeira experiência do casal com terapia conjugal. Maria relatou que Joao era "muito agressivo, explosivo e impaciente" com ela e com os filhos e que nao iria mais tolerar nenhum tipo de "agressao física e verbal". Já Joao verbalizava que Maria tirava sua autoridade como pai e que era "muito protetora".


SUBSISTEMA CONJUGAL x SUBSISTEMA PARENTAL

Essa categoria diz respeito ao quanto o subsistema conjugal e o parental estao relacionados. De acordo com Erel e Burman17, pode haver uma espécie de spillover (transbordamento) dos conflitos e de reverberaçoes tanto positivas quanto negativas entre a qualidade da relaçao conjugal e o relacionamento dos pais para com os filhos no enfrentamento dos desafios.

O relacionamento conjugal de Joao e Maria mostrava-se instável, intercalando bons e maus momentos. O descontrole de Joao aparecia, principalmente, quando abstinente da maconha, o que o deixava mais irritadiço e intolerante. Maria, por vezes, também se alterava, no entanto nao usava de insultos. O comportamento de ambos fazia com que um se afastasse do outro, ficando a comunicaçao e a proximidade prejudicadas. Segundo Walsh11, a diferença entre os casais saudáveis e os disfuncionais nao está na presença ou ausência de problemas, mas na maneira como os resolvem. De acordo com Patterson12, pais com inabilidade interpessoal terao dificuldades em lidar tanto com questoes conjugais quanto parentais. Inclui-se, tenderao a ter pouca tolerância e paciência no contato com o outro. Nessa perspectiva, constatava-se que as dificuldades no relacionamento conjugal tinham origem na falta de habilidade interpessoal e pouca flexibilidade que Joao e Maria tinham para lidar com as necessidades dos filhos.

A divisao das tarefas também acabou sendo um motivo de conflito. Ao longo do processo terapêutico, Joao saiu de sua zona de conforto. Reiniciou sua trajetória profissional e social, assumiu a responsabilidade pelos filhos e pela casa nos dias em que Maria fica ausente por causa do trabalho. Contudo, quando Maria estava de folga do trabalho, Joao transferia todos os cuidados dos filhos e da casa para ela. A única atividade para a qual Joao se dedicava quando a esposa estava em casa era a alimentaçao, pois, segundo ele, era o "único trabalho doméstico que gostava de fazer". Tal fato incomodava Maria, que via seu marido como "estando de férias".

A questao da divisao de tarefas foi um ponto bastante trabalhado no processo terapêutico. Ambos concordaram que as divergências da parentalidade dificultavam a relaçao conjugal. A maternidade e a paternidade sao funçoes complementares que se desenvolvem em uma estrutura cultural e familiar16. Contudo, por muito tempo o homem ocupou o lugar de provedor e mantenedor de limites e leis familiares, afastando-se da realidade doméstica e de seus filhos. Essa concepçao vem sofrendo transformaçoes na última década, desencadeadas desde a inserçao da mulher no mercado de trabalho, mas ainda era um ponto de embate entre o casal.

Tais dados corroboram o que afirmam Erel e Burman17ao pontuarem que os conflitos conjugais tendem a afetar negativamente todo o funcionamento familiar e demais subsistemas, incluindo as relaçoes parentais. Nesse mesmo sentido, Minuchin2 menciona que os conflitos nao resolvidos entre os cônjuges podem ser carregados para dentro da área da educaçao infantil, porque o casal pode nao conseguir separar as funçoes parentais das conjugais.


ESTRUTURA FAMILIAR

Essa categoria diz respeito aos aspectos relacionados à estrutura familiar. Estrutura familiar é formada por padroes transacionais que determinam os relacionamentos entre seus membros. Esses padroes sao influenciados por comportamentos repetitivos que, de acordo com Minuchin1, constituem a identidade do indivíduo e, ao mesmo tempo, conservam a estrutura familiar, assim como sustentam o modo como todos se relacionam. Ademais, os dois sistemas de repressao propostos pelo autor podem ser observados nitidamente na Família Silva. O sistema de repressao genérico, que consiste na hierarquia de poder entre pais e filhos, podia ser observado quando Joao se exaltava com algum dos filhos e Maria o interrompia, colocando-se à frente dos mesmos, ordenando que Joao se retirasse do ambiente. Ainda que a mae nao estivesse presente em todas as situaçoes, os filhos se dirigiam a ela ao menor indício de represália do pai. Essa situaçao, que já havia se tornado um padrao familiar, evidenciava que nao existia uma hierarquia entre Joao e os filhos, mas um domínio por parte da mae, que reforçava sua autoridade ao mesmo tempo em que o desautorizava. Portanto, ficava clara a aliança entre a mae e os filhos, resultando em um distanciamento do pai.

Quanto ao sistema de repressao dos padroes transacionais idiossincrásico, que se refere aos pequenos eventos do cotidiano, percebeu-se que a família nao tinha regras explícitas e estáveis, principalmente em relaçao aos filhos. Para isso, foi utilizado o espaço dos atendimentos para que tais regras fossem definidas. Cinco regras foram eleitas em consenso pelo casal, a saber: nao bater, nao gritar, nao ofender, tomar refrigerante somente aos finais de semana e nao comer doces antes das refeiçoes. Essas regras, voltadas para a convivência e rotina familiar, serviram para nortear o comportamento de todos, além de deixarem claro o que nao seria aceitável. Nesse sentido, observou-se que o processo terapêutico com vistas à mudança de comportamento auxiliou a família a se reorganizar enquanto estrutura familiar, com regras explícitas e combinadas antecipadamente.

Os conflitos sobre as funçoes e práticas parentais foram tema de muitas sessoes. A partir da pergunta "como era o papel de pai e de mae?", Maria respondeu que "ser mae é proteger e cuidar além de ensinar os limites que os filhos devem ter". Para Joao, além de proteger e cuidar dos filhos, a funçao paterna também estava relacionada a "contê-los quando nao agem de acordo com o que os pais esperam de seus comportamentos". Quando questionados se suas crenças estavam de acordo com a prática, Maria referiu que tentava fazer o que acreditava ser certo, mas que algumas vezes, em funçao do cansaço, acabava nao sendo tao compreensiva. Já Joao verbalizou que tinha "cuidado com os filhos, mas exigia respeito acima de tudo e que nao tolerava ser contrariado por eles".

Outro aspecto que se observou foi o choque dos modelos educativos de Joao e de Maria. Na tentativa de reforçar seus valores e crenças, atacavam-se e agrediam-se verbalmente. Joao desejava que seus filhos fossem obedientes e se tornassem submissos às regras impostas e, quando isso nao acontecia, se portava de forma agressiva e impulsiva, especialmente com o filho mais velho, colocando-o de castigo. Dizia ser autoritário para que o obedecessem, por vezes até os punindo fisicamente. Frente à carência de recursos adequados, padroes violentos e de comunicaçao inadequada eram mantidos e determinavam as interaçoes na família.

De acordo com Sei e Gomes18, a violência familiar pode ser entendida como um fenômeno que perpassa várias geraçoes, repetindo-se e configurando um cenário de transmissao psíquica transgeracional, podendo desencadear traumas para quem sofre violência, através de sua introjeçao sem elaboraçao e, por conseguinte, levando a sua reproduçao. Percebeu-se que tanto Joao quanto Maria estavam agindo com os filhos de maneira semelhante aos modelos familiares de origem. Joao teve um pai impaciente, agressivo e controlador, especialmente em situaçoes de obediência. Quando dizia nao ter boas lembranças e se dar conta de que seus filhos poderiam estar sentindo o que sentia em sua infância, emocionava-se. Já Maria teve pais tolerantes e compreensivos, e questionava-se se nao eram "bonzinhos ou permissivos demais".

Fazer a compreensao do aspecto transgeracional do modelo de educaçao dos filhos ajudou na compreensao da estrutura familiar e na sua relaçao com a parentalidade. Pode-se pensar que Joao nao desenvolveu estratégias adequadas para a soluçao de seus problemas por estar, possivelmente, reproduzindo padroes violentos de interaçao experienciados com sua família de origem e que agora refletiam em sua relaçao familiar. Maria, por sua vez, também se deu conta de que estava ocupando o papel de "boazinha e permissiva". Contudo, referia que tal atitude também podia estar associada à culpa que sentia por estar ausente de casa por muitos dias.

Pode-se dizer que a Família Silva apresentava fronteiras difusas, o que promovia um padrao de funcionamento emaranhado com destaque para o subsistema mae/filhos, fazendo com que Joao assumisse uma posiçao desligada/ausente enquanto pai. As fronteiras difusas se caracterizam por serem frágeis e de fácil atravessamento1. Tal aspecto era observado nos desentendimentos entre pai e filhos, que aconteciam quando o filho mais velho nao o obedecia. Um exemplo dessa questao foi relatado pelo casal: Joao pede ao filho algumas vezes que coloque o papel de bala no lixo e nao deixe o papel no chao, mas o filho nao o obedece. Joao se descontrola, grita e leva o filho, pelo braço, até a lixeira mais próxima. Presenciando tal atitude, Maria se une ao filho e se coloca contra o marido, exigindo que ele pare e se retire. Dessa forma, fica mais uma vez evidente a coalizao entre mae e filho. Sabe-se que a coalizao consiste na aliança de duas pessoas contra uma terceira, e as alianças baseiam-se no estabelecimento de um acordo entre dois membros da tríade, enquanto o terceiro encontra-se em uma situaçao de desacordo e distanciado da relaçao6.

A díade parental é responsável por estabelecer as fronteiras familiares, das quais dependerá a qualidade do funcionamento estrutural da família. Assim, as discordâncias entre o casal geravam inúmeras brigas, já que, de um lado, Joao se sentia inferiorizado na funçao paterna e, de outro, Maria nao estabelecia limites claros em relaçao à educaçao dos filhos. Nessas situaçoes, ficava evidente que a hierarquia e as fronteiras nao eram claras, visto a desigualdade na relaçao de poder dos pais e a coalizao na relaçao entre a mae e os filhos. Essa questao é fundamentada pelo que afirma McHale20, pontuando que o exercício da parentalidade está associado à extensao na qual o pai e a mae se dividem na liderança e se apoiam nos seus papéis parentais.

Uma questao que parecia enfatizar a hierarquia de Maria se referia ao fato de ser a mantenedora da casa. Ainda que Maria tenha aceitado que Joao se mantivesse desempregado, assumindo todas as despesas até que fosse chamado no concurso público, mostrava-se desconfortável, e isso influenciava negativamente na vida do casal15. O dinheiro, quando se torna um motivo de conflito, pode conduzir a expressoes de intenso sentimento de raiva e de agressividade, ameaçando a qualidade das relaçoes conjugais15,34.

Quanto mais Maria estava nesse papel de provedora da família, mais reforçava o seu próprio poder e hierarquia diante dos filhos no funcionamento familiar, sentindo-se, possivelmente, no direito de desautorizar Joao. Pesquisas confirmam que o poder, a falta de igualdade na relaçao, pode estar relacionado aos principais motivos de conflito entre os cônjuges29. Portanto, para Walsh11, a família Silva poderia ser caracterizada como disfuncional, definida por um desequilíbrio de poder no casal. Quanto maior a dominância e autoridade de um sobre o outro, maior tende a ser a disfuncionalidade do casal e, por consequência, da família e da parentalidade.

Diante de todos os conflitos apresentados pela família (influência da família de origem, questoes financeiras, falta de habilidades pessoal para resoluçao de conflitos, divergências na parentalidade), observavase um impacto negativo no desenvolvimento dos filhos. Benício e Gustavo mostravam sintomas de agressividade física e verbal quando contrariados e frente à imposiçao de limites, tarefas e regras, demonstrando baixa tolerância à frustraçao. Nesse sentido, compreende-se que o desenvolvimento infantil está pautado em modelos de relaçao que se estabelecem na família21. Grych, Seid e Fincham22 comprovaram que crianças com problemas de internalizaçao e externalizaçao também possuíam pais com poucos recursos na resoluçao dos conflitos conjugais. Para McHale21, é no modelo de parentalidade e nas interaçoes pais-filhos que a criança aprende a noçao de autoridade, o modo como deve negociar e lidar perante um conflito em uma relaçao vertical e desenvolver o sentido de filiaçao e de pertença familiar20.

Por fim, destaca-se que houve mudanças positivas importantes. Joao estava em busca de estratégias adequadas, tornou-se mais paciente e tolerante e cessou com os episódios de agressoes físicas. Já Maria deuse conta de que ser muito "boazinha" também significava ser permissiva e que tanta permissividade nao era saudável para os filhos. Estava conseguindo ser exigente quando percebia ser necessário, sem deixar de ser compreensiva. Dessa forma, ambos estavam tentando buscar equilíbrio no exercício da parentalidade. De acordo com Sousa18, ainda que o subsistema parental comece por construir um modelo de parentalidade resultante daquele das famílias de origem, é a evoluçao familiar, os contextos e as vivências da própria família que vao desenvolver o modelo de parentalidade adotado. Tais mudanças refletem como a família maneja as regras e os papéis exercidos nesse contexto, e foram essas questoes, como já apresentado, um dos focos do tratamento.


CONSIDERAÇOES FINAIS

Este estudo teve como objetivo compreender a estrutura familiar e sua relaçao com a parentalidade. Pode-se constatar que a estrutura familiar está implicada no exercício da parentalidade. Existia um desequilíbrio de poder entre Joao e Maria, uma vez que nao havia acordos, e sim imposiçoes sobre as suas funçoes. A falta de fronteiras e o excesso de hierarquia implicavam relaçoes negativas em todos os subsistemas.

Terapeuticamente, o desafio seguiu na tentativa de sensibilizá-los do quanto era importante ter equilíbrio entre o exercício da parentalidade e as habilidades pessoais na resoluçao de conflitos. Observava-se que ambos estavam aprendendo a lidar com as consequências dos seus comportamentos quando nao estavam de acordo com o que consideravam ideal.

É importante salientar que Joao, além da terapia de casal, também começou um tratamento individual e psiquiátrico, devido ao seu comportamento aditivo. Embora os encontros terapêuticos nao seguissem um padrao semanal, percebeu-se que Joao conseguiu fazer avanços e vinha usando estratégias para conter sua impulsividade. Maria também tinha percebido que devia permitir que Joao exercesse sua autoridade como pai, abrindo espaço para uma maior aproximaçao e respeito entre ele e os filhos. Portanto, mesmo que o casal ainda precisasse desenvolver maior capacidade de negociaçao e complementaridade, evitando situaçoes de violência física e emocional tanto entre eles quanto com os filhos, já tinham conseguido importantes mudanças, o que leva a crer que os objetivos terapêuticos foram alcançados.

Como desafios, pontua-se a descontinuidade do processo terapêutico, que, devido às demandas de trabalho de Maria, tinha uma periodicidade particular. Esse aspecto foi bastante discutido em supervisao no sentido de buscar amenizar seu efeito no processo. Demandas dessa natureza fazem parte do contexto contemporâneo e acredita-se que terapeutas e supervisores precisam discuti-las para melhor manejá-las. Por fim, destaca-se que o entendimento da complexidade da relaçao entre parentalidade e estrutura familiar e os poucos achados sobre esse tema indicam a necessidade de ampliaçao de pesquisas que contemplem essa inter-relaçao.


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1. Especializaçao. Psicóloga
2. Doutora em Psicologia, professora do curso de graduaçao e pós graduaçao em Psicologia na Unisinos, membro do Instituto da Família de Porto Alegre (INFAPA )
3. Doutora em Psicologia, professora do curso de Graduaçao em Psicologia na PUCRS, membro do Instituto da Família de Porto Alegre (INFAPA )

Correspondência
Débora Silva de Oliveira
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - Escola de Humanidades Curso de Psicologia
Prédio 11 Av. Ipiranga, 6681, Partenon
90619-900 Porto Alegre, RS, Brasil
debora_deoli@yahoo.com.br

Submetido em: 24/04/2016
Aceito em: 15/08/2016

Instituiçao: Instituto da Família de Porto Alegre

 

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