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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2016; 18(3):45-54



Relato de Caso

"Um insuportável vazio" - falso self e a organizaçao borderline da personalidade, a partir de um caso clínico

Angela Ribeiro1; Joao Pedro Ribeiro2; Raquel Ribeiro da Silva3; Orlando von Doellinger4

Resumo

Partindo das noçoes de verdadeiro e falso self de Winnicott, os autores propoem-se a uma revisao desses conceitos na literatura psicanalítica contemporânea, relacionando-os com a perspectiva atual sobre o funcionamento psíquico dos pacientes com uma estrutura borderline da personalidade. Uma vinheta clínica é utilizada como ilustraçao e análise dessa relaçao.

Descritores: Psicoterapia; Transtorno da Personalidade Borderline; Psicanálise.

Abstract

Based on Winnicott's conceptualizations of true self and false self, the authors propose to review the notions in contemporary psychoanalytic literature, relating them to the current perspective on the psychological functioning of patients with a borderline personality structure. A clinical vignette is used as illustration and analysis of this relationship.

Keywords: Psychotherapy; Borderline Personality Disorder; Psychoanalysis.

 

 

INTRODUÇAO

Partindo das noçoes de verdadeiro e falso self de Winnicott, os autores propoem uma revisao desses conceitos na literatura psicanalítica contemporânea, relacionando-os com a perspectiva atual sobre o funcionamento psíquico dos pacientes com uma estrutura borderline da personalidade. Para uma adequada ilustraçao e análise dessa relaçao, é utilizada uma vinheta clínica.

Os conceitos de self verdadeiro e de falso self sao das mais importantes contribuiçoes de Winnicott para a teoria e prática psicanalíticas, ainda que, como o próprio autor admitiu, a mençao a esses conceitos tenha uma longa história prévia em áreas do conhecimento como a Psiquiatria, a Filosofia e, mesmo, a Literatura1. Mantendo-nos no campo estritamente psicanalítico, pelo menos dois importantes autores abordaram o tema antes de Winnicott, levantando hipóteses psicopatológicas e etiológicas ligadas à esquizofrenia.

Ferenczi, num texto de 1932, afirmou que "a esquizofrenia é uma reaçao de mimetismo [...] no lugar de uma afirmaçao de si mesmo"2, propondo uma explicaçao para a etiologia desse quadro psicopatológico. A esquizofrenia teria a sua origem numa reaçao traumática ao ambiente que desencadearia, no indivíduo, um funcionamento que mimetizaria esse mesmo ambiente, em vez de desenvolver uma afirmaçao do próprio, do "si mesmo", assemelhando-se, assim, à explicaçao proposta, posteriormente, por Winnicott. Também Helen Deutsch3 mencionou a existência de um falso self como um sintoma relacionado com a esquizofrenia. Na sua explicaçao psicopatológica de pacientes com empobrecimento da relaçao emocional com o mundo e com o próprio, identificou as personalidades "como se", assim enfatizando o "carácter imitativo do meio" como fator característico.

Relativamente à obra de Winnicott, a noçao de falso self foi introduzida no seu artigo de 1949 "Mind and its relation to the psyche-soma". Porém, apenas em 1960, com a publicaçao do artigo "Ego distortions in terms of true and false self", o conceito de falso self adquiriu uma consistência teórica definitiva.

Winnicott enfatizou a influência das ideias de Freud no seu trabalho, referindo-se especificamente à distinçao entre o self verdadeiro e o falso self a propósito da divisao do ego numa "parte que é central e controlada pelos instintos [ou pelo que chamou de sexualidade, pré-genital e genital], e uma parte que é orientada para o exterior e relacionada com o mundo"1, fundamentando a sua formulaçao do falso self em indivíduos normais, e nao necessariamente associada à esquizofrenia.


REVISITANDO WINNICOTT

De acordo com Winnicott, todo ser humano é dotado de uma tendência inata ao amadurecimento, decorrendo este através de estádios4. O adequado processo de amadurecimento do bebê depende da existência de um ambiente facilitador, de uma "mae suficientemente boa" (assim denominada, por Winnicott, a mae capaz de reconhecer e atender as necessidades do bebê, através de um processo específico de identificaçao). Para que a mae seja capaz de responder às necessidades do bebê, é necessário que ela própria também se identifique com a criança, aptidao que, para Winnicott5, tem origem na própria experiência da mae, pelo fato de ela mesma já ter sido um bebê e, também, já ter sido cuidada.

O processo de amadurecimento do ego, que visa ao estabelecimento de um self integrado, depende, entao, da qualidade da relaçao da criança com a mae - se a criança sentiu que o seu ego foi suficientemente e apropriadamente protegido. Quando esse ambiente nao é adequado às necessidades do bebê, ultrapassando o seu nível de tolerância, o bebê é forçado a reagir ao ambiente para se defender - abandonando a sua ignorância saudável -, desenvolvendo, assim, um falso self como barreira defensiva face ao ambiente ou face às suas próprias pulsoes instintivas.

Essa barreira tem como funçao fundamental a proteçao do verdadeiro self relativamente ao que Winnicott denominou de angústias impensáveis6, definidas como: retornar a um estado de nao integraçao; cair para sempre num vazio sem fundo; a estranheza em relaçao ao próprio corpo, sentido como nao próprio; a perda do sentido de realidade; a perda da capacidade de relacionar-se com objetos; o completo isolamento, sem qualquer forma de comunicaçao. Assim, inúmeras angústias impensáveis sao vivenciadas quando as falhas ambientais sao contínuas, originando, dessa forma, um padrao de descontinuidade e de fragmentaçao do ser7.

O próprio Winnicott lembrou a influência da sua prática clínica como pediatra (com maes e bebês) e como psicanalista (especificando o atendimento a pacientes borderline) nas suas conceptualizaçoes teóricas. Desse fato, enfatiza a importância da observaçao direta do bebê no contato com a mae, das experiências normais e anormais do relacionamento entre ambos, e a sua influência na teorizaçao analítica da transferência em pacientes adultos (em fase de franca regressao)4. O termo borderline, para Winnicott, é, muitas vezes, sobreponível ao esquizoide. Contudo, o "caso borderline" é posteriormente definido como aquele em que "o centro do distúrbio é psicótico, mas o paciente possui suficiente organizaçao psiconeurótica para sempre apresentar desordens psiconeuróticas ou psicossomáticas quando a ansiedade psicótica central ameaça irromper", diferenciando-o da dinâmica esquizoide, tendo por base um funcionamento adaptativo e contentor de um falso self8.

Para a distinçao entre o self verdadeiro e o falso self, Winnicott fala da importância do papel da mae nas fases iniciais do desenvolvimento do indivíduo. Segundo esse autor9, para que o indivíduo possa olhar o mundo de forma criativa é preciso que ele tenha internalizado a experiência de ter sido olhado, nao de forma invasiva, mas sim de forma especular, viva (um espelho onde o bebê se possa ver). Ou seja, o bebê depende do rosto da mae, das suas expressoes faciais, do seu olhar. Só assim conseguirá formar o seu próprio self.

Uma "mae suficientemente boa" alimenta a onipotência do bebê, repetidamente. Um self verdadeiro começa a ter vida através da força dada ao frágil ego do bebê pela complementaçao, por parte da mae, das expressoes de onipotência deste. Para Winnicott1, o self verdadeiro surge logo que exista alguma organizaçao psíquica, antes mesmo de existir uma separaçao entre o interior e o exterior - do que posteriormente constitui a realidade interna da criança1. Desse modo, o self verdadeiro refere-se à expressao do gesto espontâneo do bebê e das pulsoes instintivas mais primitivas, isto é, às suas expressoes criativas desde o início da sua vida, que permitirao a criaçao de um mundo subjetivo. Na formulaçao winnicottiana, um mundo subjetivo é criado a partir de um objeto subjetivo, consequente às repetidas experiências do bebê na obtençao do objeto quando dele necessita, reforçando-se, assim, a ilusao da onipotência do bebê7. No entanto, o bebê só cria o seu objeto subjetivo se teve a possibilidade de experienciar a sua ilusao de onipotência, e isso só acontece quando existe uma mae e um ambiente suficientemente bons. Um ambiente excessivamente presente é intrusivo e impede a criaçao do objeto subjetivo através de uma presença imposta; no ambiente deficitário, o bebê experiencia os impulsos vitais como ameaça iminente de colapso e a criaçao do objeto subjetivo é impedida pela ausência do adulto10. Toda essa dinâmica constitui o mundo subjetivo do bebê. Se a mae nao é capaz de satisfazer as necessidades do bebê e as submete às suas necessidades, dá-se início à constituiçao de um falso self, defensivo e patológico, uma vez que o ambiente é tao ameaçador e instável que exige que o bebê assim defenda e proteja o seu self verdadeiro. Eis porque um falso self se refere a uma organizaçao decorrente das ameaças ao self verdadeiro. Quando a mae nao é suficientemente boa, o gesto espontâneo do bebê nao é continuado e este é submetido à necessidade de se adaptar ao ambiente - "no caso da mae nao se adaptar suficientemente bem ao bebê, o bebê é seduzido à submissao, e um falso self submisso reage às exigências do meio e o bebê parece aceitá-las"1.

Winnicott utiliza o conceito de falso self em dois sentidos diversos. Primeiramente, no sentido saudável, comum a todos os indivíduos, tratando-se da faceta social do self, cabendo ao falso self a tarefa de contato com o mundo, funcionando como uma ponte entre o self verdadeiro e a realidade externa. Winnicott descreveu, ainda, a possibilidade de algumas lacunas (zonas de dissociaçao) entre o funcionamento desses dois selves, admitindo, até, a possibilidade de um núcleo central do self verdadeiro, isolado e incomunicável8.

Para a definiçao do falso self no sentido patológico, é necessário relembrar a distinçao winnicottiana entre clivagem e dissociaçao. Enquanto a dissociaçao pode ocorrer antes mesmo da existência de um ego (ou de um self), a clivagem é definida como a característica essencial do falso self patológico, constituindo, este, uma proteçao contra as "angústias impensáveis", como defesa face a um ambiente inicial que nao é suficientemente bom (e que, por isso, nao responde às necessidades do bebê), mantendo o self verdadeiro inacessível6.


PERSONALIDADE BORDERLINE

O termo "borderline", proposto por Stern11 em 1938, veio colmatar a necessidade de qualificar o funcionamento psíquico de determinados pacientes que pareciam nao se enquadrar nas classificaçoes mais tradicionais de estrutura de personalidade. Esses pacientes pareciam ocupar um lugar entre a psicose, a neurose e a perversao; daí os conceitos de "margem", "borda" ou "limite"12. Mas outros autores descreveram patologias que nao se reduziam à clássica tríade anteriormente enunciada.

Meissner (1986) referiu-se à importância e à ausência de coesao e de estabilidade do self na "condiçao borderline", apontando a emergência dos mecanismos de personalidade "como se" (Deutsch3), falso self (Winnicott1) ou de "self vazio" ("blank self"; termo proposto por Peter Giovachini13, em 1972). Estes referir-se-iam à adesao submissa ao outro, a um mimetismo incontrolável, a uma sugestionabilidade compulsiva e/ou a um autoesvaziamento afetivo e ideativo de caráter defensivo, que poderiam evitar a separaçao do objeto. Separaçao que deixaria o self nao coeso e entregue à sua fragilidade radical. Figueiredo14 refere-se, também, às chamadas personalidades "como se", "falso self" e "blank self", entendidas como tentativas de assegurar uma certa estabilidade à estruturaçao da personalidade. Mas essa será uma estabilidade artificial para o que é, fundamentalmente, uma estrutura de desequilíbrio. No entanto, apesar de postiças, sao estratégias defensivas quase inexpugnáveis.

Knight15 e Deutsch3 referiram-se à sensaçao de vazio interno presente nesses pacientes. Esses indivíduos valer-se-iam, por isso, da realidade externa, através de comportamentos excessivos (agressivos), para tentar colmatar esse vazio. Recorreriam a um objeto externo, na tentativa de organizar as funçoes psíquicas em falta (de acordo com Bergeret16 e com Kernberg17), ou a um "objeto anaclítico" (como afirma Coimbra de Matos18), do qual ficariam profundamente dependentes.

Kernberg, autor contemporâneo de importância maior sobre o tema, descreveu os pacientes com uma subjacente organizaçao da personalidade borderline como aqueles em que os sintomas superficial e tipicamente neuróticos apontam para uma patologia egoica característica. Definiu, ainda, as suas principais categorias sintomáticas: ansiedade flutuante, neurose polissintomática, tendências sexuais perverso-polimorfas, clássicas estruturas da personalidade pré-psicótica, neurose impulsiva e dependências a substâncias e perturbaçoes caracteriológicas de "nível superior"19.

Coimbra de Matos refere, ainda, e como definidor desses pacientes, o conflito de ambitendência: entre o afastamento e o distanciamento do objeto anaclítico16 - Bergeret afirma-o como característica específica da organizaçao-limite, apoiando-se quer numa espera passiva e em busca de satisfaçoes positivas, quer em manipulaçoes agressivas desse objeto indispensável20. Segundo Bergeret e Reid, o ego imaturo confronta-se ora com a idealizaçao primitiva e acrítica do objeto protetor, que serve de apoio ao narcisismo falhado21, ora com a experiência da frustraçao pela rejeiçao ou intrusao de um objeto ameaçador da sua integridade e diferenciaçao22. Winnicott falara já do paradoxo da capacidade de uma criança estar só enquanto na presença materna23. Sobre esse paradoxo, e partindo também da perspectiva da solidao de Klein, Malpique24 referiu-se à solidao como uma vivência que exigiria uma certa maturidade do self, ainda que resultado de uma relaçao primária desarmônica que levaria à organizaçao de um "falso self" - a solidao seria, assim, o confronto com o vazio e o desamparo total.

Mais recentemente, partindo dos conceitos de Winnicott, Naffah8 pretendeu especificar subtipos ou formas de apresentaçao de falso self nos pacientes borderline ao distinguir a patologia esquizoide da patologia da organizaçao borderline. Esse autor inferiu que o esquizoide é definido como introvertido, enquanto o paciente borderline, como extrovertido. Essa extroversao apontaria para a falta de recursos internos e para o alheamento do mundo subjetivo.


VINHETA CLINICA

A vinheta apresentada resume as entrevistas iniciais de uma paciente encaminhada para um tratamento intensivo de hospitalizaçao parcial (que inclui a integraçao num grupo terapêutico diário, com entrevistas individuais semanais) durante três meses:

M. é uma mulher de 31 anos de idade. Solteira, sem filhos, reside com a sua mae. Possui o 10.º ano de escolaridade e encontra-se de baixa médica há 5 anos.

É acompanhada em consultas de Psiquiatria e Psicologia desde os 19 anos de idade, por comportamentos hetero e autoagressivos ("comecei a gritar com toda a gente... tudo me irritava... partia coisas... cortava-me").

Filha única, desconhece, contudo, se fruto de uma gravidez planejada ou desejada.

Afirma ter vivido uma infância "feliz", recordando vários momentos da sua infância em que "era uma miúda muito alegre, com facilidade em fazer amigos". Contraditoriamente, relata que os seus pais se separaram quando tinha 11 anos, depois de um longo período de uma relaçao conjugal disfuncional ("o meu pai tinha uma relaçao com outra mulher há muitos anos. Os meus pais discutiam muito, mas nunca presenciei agressoes físicas"). Nao fornece recordaçoes mais detalhadas acerca da sua infância.

Depois do divórcio dos pais, a doente ficou a viver com a mae e com a avó materna, com quem afirma ter estabelecido uma relaçao muito próxima ("os meus pais ficaram a viver em casa da minha avó depois de casarem... eu era muito ligada à minha avó... era uma segunda mae, para mim... quis dormir com a minha avó até aos 15 anos ainda que tivesse um quarto só para mim...").

Caracteriza o pai como "muito conservador, tem a mania que sabe tudo. É ansioso, mas nunca procurou ajuda". Relata, ainda, uma relaçao próxima com a mae, nao conseguindo, no entanto, descrevê-la.

Dos pais, afirma que sempre a "protegeram muito", mas, contraditoriamente, diz de imediato: "o meu pai foi mais ausente, mas sempre me deu muito na cabeça por causa da escola e sempre lhe mostrei uma menina bem-comportada. A minha mae sempre me deixou fazer o que me apetecia, sem regras, sempre andei livre, sem grande controle por parte dela".

Apresentou vários relacionamentos amorosos pautados por episódios de agressividade mútua: "Eu acabava por me cansar deles. Era ciumenta e muito possessiva, mas eles também eram assim comigo". Aprofundando o tema das suas relaçoes disfuncionais e a sua solidao, diz: "Eu afasto-me das pessoas e nao as consigo procurar, mas depois sinto-me muito sozinha. Reajo mal a qualquer elemento novo que entre no grupo; penso logo que vou perder o meu lugar ou entao fico muito desconfiada, mas depois as pessoas nao adivinham que preciso delas..."

Trabalhou como comercial durante 2 anos (de 2008 a 2010) e, desde entao, encontra-se em licença médica por nao ter condiçoes laborativas. Relata vários conflitos no trabalho que terao motivado o seu afastamento do mesmo. Apesar de nao pretender voltar ao trabalho, nao procurou alternativas.

Descreve vários episódios de comportamentos disruptivos, marcados por agressividade e impulsividade, relacionados, sobretudo, com a sua intolerância à frustraçao: "Dou pontapés nas portas, ameaço a minha mae. Quando nao estou bem e me sinto frustrada é assim".

Quando instada a falar sobre si mesma acaba por dizer: "Eu nao sei quem sou, nao sei do que gosto, nao sei para onde vou, para onde quero ir. Desde miúda que é assim. Como nao sei quem sou, sou sempre aquilo que os outros querem; sao muitas máscaras e nao sei o que é meu. Parece que só mostro a minha parte má às pessoas. Com os namorados sou controladora, possessiva, agressiva; estico as coisas para ver até onde vai, mas depois eles nao aguentam e mandam-me dar uma volta... Sinto um vazio, um vazio imenso. Um insuportável vazio... Parece que as pessoas nao me dizem nada; parece que nada é suficiente. Quando estou com algumas colegas até posso gostar delas, mas depois, quando já nao estou com elas, penso que essas pessoas nao me dizem nada. Quero fazer algo diferente na minha vida, mas nao sei o quê. Nao sei como aguentei tantos anos em casa, sem fazer nada..."



CONCLUSOES

Winnicott refere que a autenticidade do self surge pela identificaçao com o objeto, através de um campo relacional onde o bebê acredita que o objeto foi criado magicamente por si quando dele necessita1. Uma mae suficientemente boa é capaz de responder a essa onipotência do bebê, significando a mesma9. Por sua vez, o falso self surge quando o gesto espontâneo nao pôde ser aceito. Assim, a constituiçao do falso self resulta de um movimento defensivo, como forma de preservar a continuidade do ser, no self verdadeiro ameaçado.

Através de uma dinâmica relacional disfuncional surge, entao, um falso self, que oculta o self verdadeiro, que nao conseguiu desenvolver-se nem pôde ser experimentado como espontâneo. O falso self submete-se e mimetiza o ambiente, une-se ao objeto com medo de o perder, como se nao tivesse nada para além do ambiente, eclipsando as necessidades mais pessoais. Tal como Naffah refere sobre esses pacientes, "[...] a característica maior é a aparência pura, destituída de sentido existencial: tudo parece ser, sem sê-lo verdadeiramente, daí o nome 'como se'"7.

Por meio da análise da vinheta clínica apresentada, verificamos que M. idealiza o seu ambiente da infância, apesar dos mais que prováveis conflitos do casal parental, desde muito cedo. Ademais da idealizaçao, recorre à clivagem e à projeçao descrevendo as suas relaçoes com as figuras parentais como "muito próximas" ao mesmo tempo que coloca nelas algumas das suas características consideradas "negativas" (o autoritarismo, a agressividade, as exigências).

Esses mecanismos de defesa sao utilizados, aparentemente, para proteçao de uma intensa angústia de abandono (o pai, que teria "saído" de casa muito antes do divórcio; a mae, que estaria ocupada com esse problema; a necessidade de ter ficado a dormir na cama da avó até aos 15 anos, mesmo quando tinha um quarto para ela), que se vai refletir nas inúmeras relaçoes amorosas que tem ao longo da sua vida. Idênticas dificuldades sao visíveis no seu percurso profissional (a instabilidade e os conflitos, seguidos de um desinvestimento marcado pelo receio de nao ser aceita...).

Mais do que solidao, M. sente um vazio. Um "insuportável vazio", que traduz, mais do que um afeto depressivo, uma fragilidade do ego e dos seus limites, numa formulaçao que se aproxima do conceito de falso self de Winnicott. Simultaneamente, sao evidentes fenômenos característicos das personalidades do espectro borderline: a intolerância à frustraçao, o deficitário controle dos impulsos e o insuficiente desenvolvimento dos canais de sublimaçao, bem como um intenso medo do abandono, de ser preterida (associado às marcadas dificuldades no estabelecimento de relaçoes nao diádicas).17

Em suma, trata-se de uma paciente que no início do seu processo de amadurecimento desenvolveu um falso self patológico, para proteger o self verdadeiro, e estruturou uma personalidade borderline do tipo "como se". Pensamos que a mae de M. nao terá sido suficientemente capaz de satisfazer as necessidades do seu bebê (a paciente), originando o desenvolvimento de um falso self em resposta a um ambiente sentido como ameaçador e instável. Ainda que o falso self tenha surgido na tentativa de assegurar alguma estabilidade a nível da personalidade da paciente, essas estratégias defensivas sao extremamente artificiais e em situaçao de ameaça tornaram-se frágeis. Como forma de colmatar a sensaçao de vazio interno, referida pela paciente, esta recorria aos comportamentos agressivos e estabelecia relaçoes instáveis (embora possuidoras de um caráter dependente, provável traduçao das suas angústias de abandono e de separaçao, das quais tenta fugir negando a relaçao).


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1. MD. Residente em Psiquiatria, Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE. Penafiel, Portugal
2. MD. Psiquiatra, Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE. Penafiel, Portugal
3. MD. Psiquiatra, Serviço de Psiquiatria, Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia / Espinho. Vila Nova de Gaia, Portugal
4. MD, PhD. Psiquiatra, Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE. Penafiel, Portugal

Correspondência
Joao Pedro Ribeiro
Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa
Avenida do Hospital Padre Américo, n.º 210
4564-007 Guilhufe, Penafiel, Portugal
joaoribeiro@live.com

Submetido em: 17/11/2015
Aceito em: 26/05/2016

Instituiçao: Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE

 

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