Rev. bras. psicoter. 2016; 18(3):17-31
Ghisio MS, Lüdtke L, Seixas CE. Análise comparativa entre a Terapia Cognitivo-Comportamental e a Terapia do Esquema. Rev. bras. psicoter. 2016;18(3):17-31
Artigo de Revisao
Análise comparativa entre a Terapia Cognitivo-Comportamental e a Terapia do Esquema
Márcia Studer Ghisio1; Lucas Lüdtke2; Carlos Eduardo Seixas3
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A Terapia Cognitivo-Comportamental e todas as linhas cognitivas de abordagem, as quais somam mais de três dezenas de abordagens, compartilham três premissas fundamentais: (1) a cogniçao afeta o comportamento, que afirma que há sempre um processamento cognitivo e avaliaçao de eventos internos e externos que podem afetar a resposta a esses eventos; (2) a cogniçao pode ser monitorada, avaliada e alterada; (3) a cogniçao é definida como a "funçao que envolve deduçoes sobre nossas experiências e sobre a ocorrência e o controle de eventos futuros" ou ainda "[...] o processo de identificar e prever relaçoes complexas entre eventos, de modo a facilitar a adaptaçao a ambientes passíveis de mudança"1,2.
As abordagens terapêuticas atuais, que estao dentro do âmbito da Terapia Cognitivo-Comportamental, compartilham uma perspectiva teórica, que pressupoe a ocorrência de "pensamentos" ou "cogniçoes", e que os eventos cognitivos possam mediar a mudança comportamental. Por causa dessa hipótese mediacional, em que os sintomas e comportamentos disfuncionais sao mediados cognitivamente, a cogniçao nao apenas pode como deve alterar o comportamento, de maneira que uma mudança comportamental pode ser usada como um índice direto de uma mudança cognitiva. Somente em casos em que se possa demonstrar a mediaçao cognitiva e nos quais a mediaçao cognitiva seja um componente importante do plano de tratamento pode-se aplicar o rótulo "cognitivo-comportamental"3.
O fenômeno de incorporaçao da perspectiva mediacional, que é a forma como o paciente interpreta os eventos, mediando o comportamento, ocorreu em diferentes momentos, mas principalmente durante o final da década de 1960 e na década de 1970. Estava ficando claro que uma abordagem nao mediacional, baseada no modelo estímulo-resposta, nao seria suficientemente ampla para explicar todo o comportamento humano, e continuava a haver uma rejeiçao ao modelo psicodinâmico de longa duraçao baseado no desenvolvimento de insight. A natureza de alguns problemas tornava as intervençoes nao cognitivas irrelevantes por serem aplicadas a transtornos marcados principalmente por correlatos comportamentais verbais. Surgiu a necessidade de que os modelos comportamentais redefinissem seus limites e incorporassem fenômenos cognitivos nos modelos de mecanismos comportamentais, compartilhando a ideia de que o indivíduo tem capacidade de monitorar o seu comportamento, de definir objetivos internos para o comportamento, de orquestrar as variáveis ambientais e pessoais, para alcançar alguma forma de regulaçao do comportamento de interesse3.
A TCC foi desenvolvida na década de 60, na Universidade da Pensilvânia, por Aaron Beck. De formaçao psicanalítica, na época, ele trabalhava com pacientes deprimidos e portadores de transtornos de ansiedade. Diante das observaçoes dos pensamentos e sonhos desses indivíduos e insatisfeito com as explicaçoes psicodinâmicas sobre a depressao, buscou novos entendimentos que embasassem um tratamento mais eficaz para esse distúrbio. Baseado em pesquisa sistemática e observaçoes clínicas, Beck propôs que os sintomas da depressao poderiam ser explicados em termos cognitivos, como interpretaçoes tendenciosas das situaçoes, atribuídas à ativaçao de representaçoes negativas de si mesmo, do mundo pessoal e do futuro (tríade cognitiva). Beck passou a diferenciar a abordagem cognitiva da psicanalítica, focando o tratamento em problemas presentes, em oposiçao a desvelar traumas escondidos do passado, e na análise de experiências psicológicas acessíveis ao invés de inconscientes1,4.
A TCC é uma abordagem estruturada, diretiva, ativa, de prazo limitado, usada para tratar uma variedade de transtornos psiquiátricos (por exemplo, depressao, ansiedade, fobias, queixas somáticas etc.). Ela fundamenta-se na racionalidade teórica subjacente de que o afeto e o comportamento de um indivíduo sao em grande parte determinados pelo modo como ele estrutura o mundo. Suas cogniçoes baseiam-se em atitudes ou pressuposiçoes desenvolvidas a partir de experiências anteriores5.
O efeito das intervençoes psicoterápicas, no cenário contemporâneo, envolve a articulaçao de conhecimentos teóricos, técnicos, metodológicos e éticos com implicaçoes sociais, políticas, econômicas, que exigem a demonstraçao concreta de que os tratamentos em saúde mental sao efetivos e necessários. Tal efeito pode ser observado através da interaçao de variáveis relacionadas ao paciente, como aspectos associados ao quadro psicopatológico e comorbidades, relacionadas ao terapeuta, competência, experiência clínica e estilo pessoal, bem como a relaçao de trabalho estabelecida entre eles, a aliança terapêutica6.
Mendes7 aponta que, inicialmente restrita aos casos de depressao, fobias e pânico, a TCC vem expandindo sua área de atuaçao, abrangendo terapia de casais, de família e a esquizofrenia. A TCC aborda transtornos de personalidade e problemas caracterológicos, em que os pacientes apresentam traços de personalidade, mas nao transtorno de personalidade, porém algumas vezes tais pacientes nao respondem totalmente a tratamentos cognitivo-comportamentais tradicionais. Um dos desafios enfrentados pela TCC, desde os anos de 1990, é o desenvolvimento de terapias para esses pacientes crônicos e difíceis de tratar.
A TCC padrao pressupoe que os pacientes estejam motivados a reduzir os sintomas, a formar habilidades e a resolver seus problemas atuais e, portanto, com um pouco de estímulo e reforço positivo, que cumpram os procedimentos necessários ao tratamento. Todavia, para vários pacientes caracterológicos, as motivaçoes à terapia sao complicadas. Há inúmeros casos em que eles nao estao dispostos ou nao conseguem cumprir os procedimentos da Terapia Cognitivo-Comportamental. Esses pacientes podem nao realizar tarefas que lhes sao prescritas, demonstrar grande relutância a aprender estratégias para autocontrole ou parecer mais motivados a receber consolo do terapeuta do que aprender estratégias que ajudem a si próprios8.
Com o objetivo de aperfeiçoar o modelo cognitivo e criar novas estratégias de tratamento para os transtornos de personalidade e também para pacientes que nao respondem bem ao tratamento cognitivo padrao de curto prazo, surge a proposta da Terapia do Esquema (TE), de Jeffrey Young, que utiliza elementos provenientes de abordagens distintas, como a Gestalt-terapia, a psicodinâmica, conceitos da teoria do apego, além, é claro, da própria terapia cognitiva tradicional, proposta por Aaron Beck e seguidores7.
Numa entrevista dada a Falcone e Ventura9, Jeffrey Young diz o seguinte ao ser questionado sobre o que o levou a desenvolver a Terapia do Esquema:
Quando decidi iniciar minha prática clínica privada, comecei usando a Terapia Cognitiva para um grupo de pacientes mais geral e mais uma vez enfrentei problemas. Nao tao sérios quanto os que eu tive com a Terapia Comportamental, mas problemas sérios na medida em que pelo menos metade dos pacientes nao respondia tao bem. Metade deles me dizia: 'isso faz sentido racionalmente, mas nao me afeta emocionalmente'. Eram pacientes muito inteligentes, que entendiam todos os conceitos, faziam os registos de pensamentos mês após mês, todas as técnicas cognitivas que eu conhecia e, ainda assim, nao melhoravam. Eles entendiam o problema, entendiam quando estavam distorcendo, mas nao conseguiam mudar. Eu sabia que devia fazer mais do que a Terapia Cognitiva. Nao algo ao invés dela, mas além dela. Além disso, tinham também partes da Terapia Comportamental de que eu gostava, porque eu sabia o quanto era importante nao somente pensar sobre os pensamentos, mas também conseguir que as pessoas mudem seus comportamentos. Eu estava usando, na verdade, ambas as terapias, comportamental e cognitiva. Mas eu sabia que precisava de algo mais (p. 02)9.
A maneira pela qual uma situaçao é avaliada depende, pelo menos em parte, das crenças relevantes subjacentes. Essas crenças estao inseridas em estruturas, mais ou menos estáveis, chamadas 'esquemas', que selecionam e sintetizam os dados fornecidos. [...] Consideramos as estruturas básicas (esquemas) das quais dependem esses processos cognitivos, afetivos e motivacionais como as unidades fundamentais da personalidade (p. 05)15.
O esquema, semelhante à maneira como eu conceituo, já estava presente no trabalho de Beck. Beck propôs que o esquema era o nível mais profundo do pensamento. Ele nao chamava isto de crença, mas de estrutura. Nao é o mesmo que eu faço, mas é bastante semelhante. Ambos acreditamos que o esquema é a estrutura mais profunda, do ponto de vista psicológico. Assim como Beck, eu acredito que os esquemas direcionam os outros níveis de cogniçao. Relacionando os esquemas às crenças centrais, eu acho que o esquema é uma estrutura mais abrangente e que crença central é a parte cognitiva do esquema. O esquema direciona o seu pensamento. Quando os pacientes têm pensamentos automáticos negativos, estes foram gerados pelo esquema, o esquema os propulsionou. Este é o modelo de Beck, do qual eu compartilho. Eu diria que o esquema é o nível mais profundo do pensamento e que todo o resto surge do esquema (p. 04)9.
Domínio I - Desconexao Rejeiçao: pacientes com esquemas nesse domínio caracterizam-se por incapacidade na formaçao de vínculos seguros e de maneira satisfatória com outras pessoas. Em geral, esses pacientes sofreram com experiências infantis traumáticas, pois as famílias costumam apresentar características de instabilidade, abuso, frieza, rejeiçao ou isolamento do mundo exterior. Esse domínio é formado pelos seguintes EIDs: abandono/instabilidade, desconfiança/abuso, privaçao/emocional, defectividade/vergonha e isolamento social/alienaçao.
Domínio II - Autonomia e Desempenho Prejudicados: pacientes com esquemas nesse domínio nao conseguem se desenvolver com confiança, porque geralmente sao oriundos de famílias superprotetoras, que, na tentativa de proteger a criança, acabam nao reforçando a sua autonomia. Os esquemas pertencentes a esse domínio sao: dependência/incompetência, vulnerabilidade ao dano ou à doença, emaranhamento/self subdesenvolvido e fracasso.
Domínio III - Limites Prejudicados: indivíduos com esquemas nesse domínio geralmente sao oriundos de famílias demasiado permissivas, nas quais a imposiçao de limites foi falha. Isso colabora para a falta de limites no cumprimento de regras, autodisciplina e respeito aos direitos alheios. Como principais características, esses indivíduos têm o egoísmo, a irresponsabilidade e o narcisismo. Dentro desse domínio estao os EIDs: merecimento/grandiosidade e autocontrole/autodisciplina insuficientes.
Domínio IV - Orientaçao para o Outro: já nesse domínio, os indivíduos tendem a manter uma postura de atender a todas as necessidades dos outros em detrimento das suas, o que fazem no intuito de receber aprovaçao e evitar retaliaçoes. Em geral, suas famílias estabeleceram relaçoes condicionais, ou seja, só recebia aprovaçao e atençao caso a criança se comportasse da maneira desejada. Os pais valorizavam muito mais as suas necessidades emocionais ou a "aparência" do que as necessidades da criança. Nesse domínio, estao inclusos os esquemas: subjugaçao, autossacrifício e busca de aprovaçao/busca de reconhecimento.
Domínio V - Supervigilância e Inibiçao: pessoas com esquemas nesse domínio reprimem seus sentimentos e impulsos com a finalidade de cumprir regras rígidas internalizadas, em prejuízo de sua própria felicidade, autoexpressao, relacionamentos íntimos e boa saúde. Normalmente, as famílias têm características rígidas e repressoras, sendo que os sentimentos nao podem ser expressos de maneira livre e o autocontrole e a negaçao de si próprios predominam sobre outros aspectos. Nesse domínio, podemos citar os seguintes esquemas: negativismo/pessimismo, inibiçao emocional, padroes inflexíveis/postura crítica exagerada e postura punitiva.
artigo anterior | voltar ao topo | próximo artigo |
Rua Ramiro Barcelos, 2350 - Sala 2218 - Porto Alegre / RS | Telefones (51) 3330.5655 | (51) 3359.8416 | (51) 3388.8165-fone/fax