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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2016; 18(2):124-133



Artigo de Revisao

A perversao na relaçao terapêutica

Perversion in the therapeutic relationship

Alcina Barros

Resumo

O presente artigo visa examinar os problemas transferenciais e contratransferenciais determinados pelo estado sexual mental perverso de pacientes em psicoterapia de orientaçao analítica, tomando como ponto de referência a obra de Donald Meltzer (1979).

Descritores: Psicoterapia; Contratransferência (Psicologia); Assistência ao paciente.

Abstract

This article aims to examine the transference and counter-transference problems determined by the perverse sexual mental state of patients in psychoanalytic psychotherapy, taking as reference the work of Donald Meltzer (1979).

Keywords: Psychotherapy; Counter-transference (Psychology); Patient care.

 

 

INTRODUÇAO

A perversao é habitualmente definida, como o fazem Laplanche e Pontalis, pelo conjunto do comportamento psicossexual que acompanha os desvios do ato sexual dito "normal". Este consistiria no coito visando à obtençao do orgasmo, através da penetraçao genital, com uma pessoa do sexo oposto. Haveria perversao quando o orgasmo fosse obtido por meio de outros objetos sexuais (homossexualidade, pedofilia etc.), por outras zonas corporais (como na felaçao), ou estivesse subordinado a certas condiçoes extrínsecas (fetichismo, sadomasoquismo etc.)1.

Típicos componentes da perversao sao as fantasias eróticas preocupantes (produtoras de apreensao e desconforto subjetivo), elaboradas, conscientes e centrais para a excitaçao sexual e orgasmo, comportamentos eróticos expressando o conteúdo de tais fantasias, sentimentos de que o erotismo perverso é superior a outras formas mais aceitas socialmente, aumento das preocupaçoes acerca das fantasias em períodos de estresse e ajustamento da vida e da carreira com a perversao2.

Nao examinarei, entretanto, as manifestaçoes comportamentais da perversao, mas os problemas transferenciais e contratransferenciais determinados por ela, durante o tratamento em psicoterapia de orientaçao analítica (POA). Sabe-se que a transferência na perversao é caracterizada por determinadas particularidades, como atitudes desafiadoras e polêmicas do paciente, tentativas de engajar o terapeuta em suas ideologias sobre a sexualidade, transferência erótica, projeçoes, além da agressao3.

Neste trabalho, a obra de Donald Meltzer sobre os estados sexuais da mente será utilizada como referencial teórico, por permitir uma linha de raciocínio interessante e clarificadora a respeito desse tema, sendo acrescida por contribuiçoes de outros autores. Desse modo, o presente artigo visa investigar o estado sexual mental perverso do paciente em POA e suas implicaçoes no setting terapêutico, mais especificamente na transferência e na contratransferência4.


DESENVOLVIMENTO

OS ESTADOS SEXUAIS MENTAIS


Para permitir uma melhor compreensao sobre os estados sexuais da mente, devemos retornar à cena primária - descrita por Freud e ampliada por Melanie Klein, a qual exerce influência organizadora no desenvolvimento sexual infantil, relacionando-se ao complexo de Édipo. Freud (1918), em seu texto "O homem dos lobos", descreveu a Urszene (cena originária ou primária) como a cena da relaçao sexual entre os genitores, observada ou imaginada pela criança, segundo suas fantasias, e interpretada por ela como uma agressao paterna, durante um coito anal sadomasoquista. Essa cena provocaria excitaçao sexual na criança e forneceria suporte para a angústia de castraçao5,6.

A concepçao kleiniana da cena primária comporta a "figura dos pais combinados", fantasia infantil agressiva e aterrorizante na qual o corpo materno contém o pênis paterno. Para essa autora, uma das fantasias infantis mais profundas consiste no desejo da criança de penetrar o corpo da mae, machucando tanto seu interior quanto os objetos encontrados dentro dele. Essa fantasia é motivada por sentimentos de raiva, frustraçao e inveja, além do desejo de roubar aqueles objetos para si. Na figura dos pais combinados, os órgaos sexuais dos genitores estao em permanente relaçao sexual, unindo-se e atacando-se mutuamente. Melanie Klein a considerava como a fantasia mais precoce e mais primitiva da situaçao edípica7.

Meltzer, por sua vez, descreveu um passo fundamental no desenvolvimento da sexualidade e da criatividade na personalidade: o trabalho psíquico de transformaçao de uma relaçao com objetos parciais em uma relaçao com objetos totais, comportando versoes mais realistas dos pais dentro de um processo inerente à posiçao depressiva. Esses seres, já individualizados, se uniriam em um coito prazeroso e criativo, formando, posteriormente, o objeto interno sentido como a fonte da criatividade pessoal, sexual, intelectual e estética: o "objeto combinado".

Cinco membros da família participariam da cena primária normal: o pai, a mae, o menino, a menina e o bebê dentro da mae. As relaçoes de objeto e vínculos entre esses personagens, conforme a fantasia infantil, darao origem aos estados sexuais da mente. De acordo com o entendimento de Meltzer sobre a participaçao do eu na cena primária, podem ser reconhecidos três estados sexuais da mente: a sexualidade polimorfa infantil, marcada pelo desejo de exibir; a sexualidade polimorfa adulta, humilde e privada; e a sexualidade perversa, onipotente e arrogante. Como estados, sao fluidos, mutáveis e presentes em todos nós, havendo, contudo, nas diferentes fases da vida, o predomínio de um sobre os outros. Espera-se que, na normalidade, ocorra uma evoluçao em direçao ao predomínio da sexualidade polimorfa adulta.

O estado sexual polimorfo infantil da mente é caracterizado pelos ciúmes e pela competiçao com os pais, buscando uma soluçao para o seu conflito que nem envolva a renúncia aos objetos, nem o adiamento das gratificaçoes. Há ansiedade, excitaçao, imitaçao, experimentaçao contínua, brincadeira, em vez de trabalho. A gratificaçao sexual nao é o objetivo primário, surgindo como compensaçao quando os objetivos criadores (de fazer um novo bebê) fracassam, podendo ser abandonados a favor do prazer.

O estado sexual polimorfo adulto da mente, por outro lado, está baseado na necessidade, no desejo e na identificaçao introjetiva com o objeto combinado, ou seja, com a noçao de reparaçao e trabalho criativo. Esse trabalho poderá ser agradável e auxiliar no crescimento dos bebês da mae. Essa sexualidade é polimorfa em relaçao aos orifícios da mulher, em identificaçao introjetiva com a necessidade da mae interna de receber pênis e sêmen e de evacuar seus perseguidores.

No estado sexual mental perverso, ao contrário, a fantasia nuclear representa uma sexualidade malvada, centrada no assassinato dos bebês dentro da mae, promovido pelos ataques infantis ciumentos. A cena primária perversa tem a participaçao de uma sexta figura - o estranho à família, o inimigo da criatividade parental e do amor, o ente maldoso a que tudo estraga -, o pênis fecal. Há uma negaçao maníaca da realidade psíquica e uma competiçao invejosa com os objetos idealizados, provocando a simulaçao de suas qualidades, como beleza, bondade e força, para deslumbrar a imaginaçao das estruturas infantis boas.

Deve-se esclarecer que, segundo Meltzer, nem todas as fantasias incluídas na categoria da má sexualidade constituem perversoes, pois nao se originam da fantasia primordial de matar o bebê.

Chasseguet-Smirgel, mesmo sob outra perspectiva teórica, aproxima-se das ideias de Meltzer ao descrever a desmentida perversa como paródia da genitalidade, na qual a fase anal ofereceria à criança elementos para tentar igualar-se ao pai e seus atributos, encobrindo o desenvolvimento até a genitalidade: o bastao fecal substitui o pênis genital, a separaçao cotidiana das fezes anuncia a castraçao fálica, a defecaçao antecipa o ato de procriar, o excremento no reto imita o coito genital. A equaçao de Freud "fezes = pênis = filho" é tida como realidade, configurando um funcionamento mental segundo o princípio do prazer. A distância entre o universo genital e o universo anal é superada pelo perverso através da idealizaçao. Essa autora também chama a atençao para a tendência do perverso em desfazer as diferenças existentes na realidade, como as de gênero e geraçoes. O retorno ao indiferenciado, ao caos precedente à introduçao da distinçao, é própria da fase sádico-anal à qual o perverso regride8,9,10.

Durante a terapia, pacientes com inadequada cisao e idealizaçao primária dos aspectos bons e maus do objeto e do self podem funcionar de acordo com o estado sexual mental perverso, pois borra-se a distinçao entre aquilo que é bom e aquilo que é mau. Esses indivíduos nao conseguem ficar a sós com a parte idealizada e potencialmente boa da sua própria personalidade, logo nao sao capazes de experimentar a relaçao com um objeto bom5,11.

Necessário se faz salientar que, sendo um estado sexual da mente, todos nós contemos elementos perversos numa maior ou menor medida. Assim, tanto no tratamento de pacientes com uma perversao estruturada quanto nos demais, o estado sexual mental perverso pode invadir a relaçao terapêutica e, inclusive, se organizar como um desvio permanente da mesma. O terapeuta poderá participar de uma transferência sadomasoquista, devendo manter-se alerta quanto aos sentimentos contratransferenciais desencadeados pela perversao.

A teoria de Meltzer sobre os estados sexuais da mente, complementada pelas contribuiçoes de outros autores psicanalíticos, norteia a presente investigaçao da situaçao perversa na relaçao terapêutica, que, uma vez instalada, deve se tornar o foco do trabalho, pois: "caso contrário, o tratamento nao apenas se torna inútil, ineficaz como, ademais, é transformado em uma relaçao basicamente patológica" (p. 646)11.


O ESTADO SEXUAL MENTAL PERVERSO NA RELAÇAO TERAPEUTICA

Donald Meltzer enfatizou que os estados sexuais mentais perversos se originam de uma sexualidade infantil sadomasoquista, regredida à analidade e que conduz à passividade. A passividade refere-se ao desejo de ser objeto dos impulsos do outro, em vez de receber algo do outro, conduzindo, patologicamente, à ausência de pensamento. A destrutividade, outra característica da mente perversa, compete invejosamente com as qualidades dos bons objetos, faz o indivíduo identificar-se com objetos maus e cria o princípio organizador da perversao: o negativismo. Este nao deve ser confundido com o mecanismo de defesa da negaçao, pois o perverso nao se satisfaz em recusar, ele necessita fazer o oposto. O negativismo associa-se à arrogância, ao senso de superioridade e ao desprezo pela realidade.

Como dimensao da vida mental de todo indivíduo, consoante Chasseguet-Smirgel, a perversao pode ocupar uma pequena parte da personalidade ou sua totalidade. No par analítico, espera-se que o núcleo perverso do terapeuta seja pequeno e permaneça sob seu reconhecimento e controle; já o paciente poderá manifestar diferentes graus de comprometimento perverso da mente, o que terá reflexos na complexidade e nos desafios da psicoterapia. Um paciente sem perversao sexual clinicamente evidente poderá desenvolver, em alguma fase do tratamento, fenômenos transferenciais perversos e mobilizar respostas contratransferenciais correspondentes. Outro, cuja mente está dominada pelo estado perverso, essencialmente se relacionará com o terapeuta segundo esse tipo de fantasia.

A vida do paciente com predomínio do funcionamento mental perverso pode, surpreendentemente, aparentar normalidade no mundo externo. Meyer, no entanto, alertou que os pacientes capazes de renunciar aos comportamentos corrompidos, por longo tempo, nao sao menos perversos por isso, pois suas fantasias permanecem constantes. Quando buscam tratamento, em geral, nao desejam a cura de suas perversoes, mas a extinçao dos inconvenientes nas relaçoes externas e internas. Pacientes perversos funcionam de acordo com o princípio do prazer, nao almejando a ampliaçao do pensamento ou o contato com o princípio da realidade, pois isso conduziria à bancarrota de sua onipotência e arrogância2.


CONSIDERAÇOES TEORICAS SOBRE A PERVERSAO DA TRANSFERENCIA E CONTRATRANSFERENCIA

Falar sobre sexualidade nos tempos atuais tornou-se, aparentemente, mais fácil. Além disso, o século 21 tem demonstrado maior flexibilidade sobre a "normalidade" nas condutas sexuais. Consequentemente, os terapeutas de orientaçao analítica estao, cada vez mais, tratando de pacientes queixosos de comportamento sexual compulsivo ou de perversoes sexuais.

Um aspecto importante desse grupo de pacientes é sua heterogeneidade, tanto em termos de sintomatologia e apresentaçao quanto em termos de profundidade e implicaçoes comportamentais da patologia. Esses casos podem conduzir a uma contratransferência negativa, devendo o terapeuta manter-se atento para prevenir seu surgimento, ou para detectá-lo o mais breve possível13.

Ogden13 ressaltou que a modalidade transferência-contratransferência poderá ser ajustada de acordo com a estrutura perversa do mundo objetal interno inconsciente do paciente, havendo, simultaneamente, a participaçao inconsciente do terapeuta. A transferência sadomasoquista do paciente perverso é marcada por afetos negativos e pelo ataque às capacidades criativas do terapeuta. Tentativas de modificaçoes sutis no papel do terapeuta serao empreendidas pelo funcionamento mental perverso, que vigorosamente evitará a quebra da ilusao e a revelaçao da verdade, conduzindo para a estagnaçao da psicoterapia. Nesses pacientes, em geral, nao há expressao de culpa sincera, sendo os afetos depressivos manifestados por episódios de baixa autoestima14.

Etchegoyen14 cunhou o termo "perversao da transferência", referindo-se à tendência do paciente perverso em erotizar a transferência. Purcell15 adverte que o paciente pode utilizar as palavras e silêncios para excitar o terapeuta ou empregar sua passividade para deixá-lo impaciente e levá-lo ao acting-out15,16.

O terapeuta dispoe de uma importante ferramenta para detectar interferências perversas na relaçao com o paciente: a contratransferência. Ele tenderá a sentir-se constantemente testado, ameaçado e desqualificado pelo paciente; poderá se considerar fracassado em seu trabalho psicoterápico; ou se perceberá aborrecido pelas variaçoes da fantasia central do perverso, que consiste no assassinato dos bebês existentes dentro do corpo materno pelo pênis fecal e por seus equivalentes simbólicos na relaçao terapêutica: a destruiçao dos frutos do trabalho do par psicoterápico.

Meltzer4 indicou que, na vigência do estado sexual mental perverso, o paciente tem por objetivo criar uma psicoterapia interminável e fundamentalmente estéril. A susceptibilidade do terapeuta à intençao de perverter a transferência é um problema contratransferencial complexo. Os terapeutas homens sao mais vulneráveis ao início da dissoluçao do objeto combinado, através da excitaçao sexual infantil, particularmente a de natureza masoquista. Já as terapeutas mulheres sao susceptíveis à seduçao para uma idealizaçao mútua, na contratransferência materna, promovendo um otimismo a respeito de qualquer pequeno avanço.

Eiguer indicou que, se os complexos do paciente forem perturbadores, o terapeuta, sem perceber, poderá evitá-los, havendo uma paralisia do "segundo olhar", o qual lhe permite integrar sua autoanálise ao material do paciente. O terapeuta, segundo Joseph e Losso, passa entao a ser capturado pelo "campo perverso"16,17,18,19.

Quando a perversao da situaçao analítica ocorre, a situaçao total tende a se tornar estagnada. Pode haver alguma melhora no comportamento do paciente, o qual, externamente, pareceria curado. Na relaçao terapêutica, entretanto, a crueldade dele persiste nas faltas às sessoes, nos atrasos, nas queixas sobre o pagamento, na desvalorizaçao dos demais terapeutas e na reaçao terapêutica negativa. O material analítico permanece abundante, tanto em relaçao a relatos de atividades pervertidas quanto a sonhos. As interpretaçoes podem passar a ter um uso fetichista, sendo transformadas em instrumentos de flagelaçao, dirigidos a si e aos outros.

A relaçao passa entao de terapêutica, com duas mentes trabalhando em conjunto e buscando a verdade, para sadomasoquista e idealizada, vivenciada como superior aos tratamentos anteriores. Interrompe-se a possibilidade de troca receptiva e fecunda entre as duas mentes e agora apenas um dos participantes da dupla impoe suas vontades, enquanto o segundo, passivamente, apenas se submete.


IMPLICAÇOES DA PERVERSAO NA PRATICA PSICOTERAPICA

A teoria e a prática clínica sofreram importantes modificaçoes, com relaçao ao diagnóstico e tratamento das perversoes, desde a contribuiçao de Freud (1905) nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade". As definiçoes de perversao foram libertadas de antigas premissas ligadas a uma "normalidade heterossexual" e a interpretaçoes meramente moralísticas. A atual compreensao da perversao enfatiza o papel da agressao e de problemas narcísicos precoces, incluindo a noçao de cisao e de cenários sexualizados20.

O reconhecimento da transferência e contratransferência perversa, já sinalizado por Klein, é fundamental para o progresso da psicoterapia analítica desses pacientes. Apenas a partir da apreciaçao dos próprios pensamentos, sonhos e sentimentos o terapeuta pode compreender sua contratransferência e sobreviver aos ataques perversos do paciente21.

Purcell admite que o perverso adota a desumanizaçao como defesa contra ansiedades relacionadas à benevolência do terapeuta. Outrossim, considera que o terapeuta, no tratamento das perversoes, necessita manejar dois grupos de aspectos bastante espinhosos do paciente, a saber: as fantasias onipotentes, desvalorizadoras e falsamente autossuficientes; e a identificaçao projetiva de sua excitaçao sexual. O primeiro grupo pode desencadear sentimentos contratransferenciais de rechaço e antipatia, enquanto o segundo, de preocupaçao, desassossego, temor ou até mesmo curiosidade sem finalidades terapêuticas15.

A parte destrutiva da personalidade perversa do paciente, segundo Meltzer6, utiliza-se de técnicas de dividir e conquistar sobre as partes boas de organizaçao infantil, visando atacar a integraçao da família idealizada. As múltiplas cisoes do paciente perverso formam uma gangue narcisista, que desempenharia a funçao de protestar contra os bons objetos. No tratamento, essa situaçao manifesta-se na dificuldade de se estabelecer a aliança terapêutica.

Considerando que no estado mental sexual perverso o potencial amoroso e criativo do paciente é substituído pelo sadomasoquismo, em vez de a relaçao terapêutica possibilitar trocas construtivas entre as partes, ela vai adquirindo uma compleiçao árida. Meltzer6 também pontuava que um dos principais riscos no tratamento do estado sexual mental perverso é que, ao serem integradas as estruturas infantis multiplamente cindidas, aumenta-se nao apenas a capacidade de amar do paciente, mas concomitantemente sua capacidade de odiar e, por conseguinte, os ataques destrutivos à produçao do par analítico sao intensificados.

Podemos fazer um paralelo entre as situaçoes vivenciadas dentro do consultório e outras externas: em recente estudo publicado por Rosenthal, padroes masoquistas (conceitualmente definidos, neste artigo, como a busca deliberada por dor, perda, sofrimento ou humilhaçao, havendo uma combinaçao obrigatória de prazer e dor) encontrados em jogadores compulsivos sao discutidos, como a reversao de atitudes normais acerca do "ganhar" ou "perder". Os jogadores patológicos tendem a sabotar oportunidades de sucesso ou criar obstáculos desnecessários para si mesmos. Para eles, perder pode ser mais confortável do que ganhar ou pode ser excessivamente sexualizado22.

Meltzer afirmou que, ao se alcançar a análise da estrutura narcisista, atinge-se o limiar da posiçao depressiva. As tendências perversas, contudo, tendem a se congelar em perversoes clinicamente manifestas. Esse é o período de maior perigo tanto para o tratamento quanto para a vida do paciente. Nos pacientes com perversoes organizadas e reconhecidas desde o início do tratamento, nessa fase surge o verdadeiro desejo de cura. Quando se reconhece o inimigo, manifesto em sonhos e na situaçao analítica, pode-se indagar sistematicamente suas qualidades e métodos de funcionamento, buscando-se a evoluçao para um estado sexual da mente mais saudável e adaptativo.

O impulso para o trabalho, em conformidade com Meltzer4, deriva do estado sexual adulto da mente. A identificaçao introjetiva com bons pais possibilita o correto desempenho das atribuiçoes dos pais internos: admirar o ideal do superego. Localizado fora da experiência do eu, assim como o objeto combinado primário, o ideal do superego gera um estado de humildade e possibilita o desenvolvimento do potencial criativo. Desse modo, a compreensao, interpretaçao e transposiçao do estado sexual perverso da mente para o estado sexual adulto deve ser a meta do tratamento.


CONSIDERAÇOES FINAIS

O terapeuta familiarizado com os conceitos dos estados sexuais da mente de Donald Meltzer, bem como com as contribuiçoes dos demais autores referidos neste trabalho, terá ao seu dispor instrumentos para o reconhecimento de elementos perversos na relaçao terapêutica. Poderá, assim, identificar os fenômenos transferenciais e contratransferenciais implicados e, mais prontamente, estará apto a enfrentar e superar a esterilidade e o sadomasoquismo dessa situaçao, utilizando-se da supervisao do caso, da investigaçao de seus próprios aspectos perversos no tratamento pessoal e da conduçao da psicoterapia em direçao ao reestabelecimento de um par criativo, fecundo e produtivo.

Por fim, convém destacar que a literatura disponível sobre o tema perversao, na perspectiva analítica, encontra-se predominantemente sob a forma de relatos de caso e revisao nao sistemática da literatura.


REFERENCIAS

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Psiquiatra ad hoc. Aluna do doutorado em Psiquiatria e Ciências do Comportamento da UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil

Correspondência
Alcina Barros
Av. Diário de Notícias, 200, sala 909, Cristal
90810.080 Porto Alegre, RS, Brasil
alcina.forense@gmail.com

Submetido em: 22/11/2015
Aceito em: 14/04/2016

Instituiçao: Centro de Estudos Luís Guedes

 

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