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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2016; 18(2):96-108



Artigos Originais

O ressentimento na psicoterapia de orientaçao analítica

Fernanda Lucia Capitanio Baeza1; Jussara Schestatsky Dal Zot2

Resumo

INTRODUÇAO: Apesar de ser um aspecto frequente e marcante, o tema do ressentimento foi pouco abordado pela teoria psicanalítica. Este trabalho tem o objetivo de (1) buscar na teoria psicanalítica uma compreensao do ressentimento, tendo como foco as situaçoes onde há uma separaçao conjugal envolvida, e (2) buscar caminhos possíveis para sua resoluçao.
MÉTODOS: O ressentimento foi considerado a partir das questoes que emergiram no atendimento de uma paciente com dificuldades de elaborar um divórcio. Para tanto, realizou-se uma revisao na literatura psicanalítica específica sobre o ressentimento, além de temas relacionados, como luto, inveja e masoquismo.
RESULTADOS: O paciente ressentido é caracterizado como aquele que nao pode deixar de recordar. Nessas situaçoes, a libido está tenazmente ligada a um objeto devedor, prevalecendo uma inércia psíquica através da qual o paciente pode ficar retido na temática torturante. Na psicoterapia, o ressentimento se apresenta como uma face intransigente da resistência.
CONSIDERAÇOES FINAIS: A elaboraçao do ressentimento é um longo e complexo processo. Um foco possível no tratamento desses casos pode ser resumido em fazer do ressentimento interminável - baseado na memória do rancor - terminável, relacionado com a memória da dor. O ressentimento interminável pode passar a ser terminável quando o sujeito puder abrir mao do desejo de triunfar sobre o outro por meio da vingança. Essa renúncia se dá através de um trabalho de elaboraçao, no qual o cindido e projetado no ressentimento deve ser reintegrado e introjetado no próprio sujeito.

Descritores: Terapia psicanalítica; Interpretaçao psicanalítica.

Abstract

INTRODUCTION: Despite resentment is a frequent issue in psychoanalytic psychoterapy, this topic was not broadly discussed by the psychoanalytic theory. This work aims to (1) review psychoanalytic theory an understanding of resentment, focusing on situations where there is a marital separation involved, and (2) to seek possible ways of its resolution.
METHODS: Resentment was considered from the issues that emerged in the care of a patient with difficulties to conduct a divorce. Therefore, there was a review of the specific psychoanalytic literature about resentment and related topics such as grief, envy and masochism.
RESULTS: The resentful patient is characterized as one that can not stop to remember. In these situations, the libido is tenaciously linked to a debtor object, prevailing psychic inertia through which the patient can be held in torturous theme. In psychotherapy, resentment appears as an uncompromising face of resistance.
FINAL CONSIDERATIONS: Treatment of resentment is a long and complex process. A focus in treatment of these cases can be summarized in making endless resentment - based on the rancor memory - in terminable resentment, related to the memory of pain. The resentment may become terminable when the subject can give up the desire to triumph by revenge. This waiver is through when that splited and designed in resentment should be reinstated and introjected in the subject itself.

Keywords: Psychoanalytic therapy; Psychoanalytic interpretation.

 

 

INTRODUÇAO

"Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que ainda sou tua
Até provar que ainda sou tua"

Chico Buarque, "Atrás da porta" (1976)

O ressentimento é um conhecido estado de espírito. Termo amplamente reconhecido no senso comum e de caráter passional, é um constante objeto de atençao das artes. Ligado a uma ampla gama de emoçoes negativas, como o ciúme, a inveja e os desejos de vingança, é tido como uma expressao pouco nobre do nosso psiquismo. Medeia, personagem de Eurípides na mitologia grega, ao nao suportar o desprezo do amante, mata os filhos que teve com ele para depois suicidar-se1. Essa tragédia foi recriada por Chico Buarque e Paulo Pontes na obra de teatro Gota d'água, em 1975. Na cançao "Atrás da porta" (trecho citado acima), Chico Buarque também retrata o estado ressentido e rancoroso de uma mulher abandonada.

Na cultura, o ressentimento parece estar bastante associado à figura da mulher após um desenlace amoroso. Apesar de ser um aspecto frequente e marcante, o tema do ressentimento foi pouco abordado pela teoria psicanalítica. Entretanto, nas duas últimas décadas, o psicanalista argentino Luis Kancyper dedicou dois livros à exploraçao do tema.

Marta*, uma mulher de meia-idade, procurou psicoterapia porque, apesar de estar separada há mais de uma década, nao foi capaz de realizar essa separaçao oficialmente. Relatava sua relaçao como um martírio prolongado, com uma sequência de maus-tratos por parte do entao marido. A figura do ex era a mais presente nas sessoes de psicoterapia. Referia-se à separaçao como se fosse um fato muito recente, e estava rotineiramente em conflito com o ex-marido, em geral com queixas de ordem financeira. Apesar do afastamento físico, Marta mantinha uma relaçao viva e tenaz com o ex-marido, através de queixas, cobranças e impasses.

A partir das dificuldades em trabalhar com essa paciente em psicoterapia de orientaçao analítica, surgiu o interesse em explorar a psicodinâmica do ressentimento. Assim, este trabalho tem o objetivo de buscar na teoria psicanalítica uma compreensao do ressentimento, tendo como foco principal as situaçoes em que há uma separaçao conjugal envolvida. Este trabalho procura descrever como o ressentimento pode se apresentar na psicoterapia de orientaçao analítica e apontar caminhos possíveis para sua resoluçao.


MÉTODOS

Para tanto, realiza-se uma revisao na literatura psicanalítica produzida especificamente sobre o ressentimento, além de alguns temas relacionados, como luto, inveja e masoquismo. Cabe ressaltar que o caso acima, que motivou o interesse pelo tema, será mencionado apenas com intuito ilustrativo, fugindo dos objetivos deste trabalho o estudo do caso em si.


RESULTADOS

O RESSENTIMENTO


O dicionário Aurélio define o ressentimento como "mágoa que se guarda de uma ofensa; rancor"2. O prefixo "re-" dá a ideia de que o sujeito sente o mal sofrido outra vez, como no momento em que foi cometido. Trata-se de um estado de eterno retorno3.

Kancyper, no livro Ressentimento e remorso: estudo psicanalítico4, definiu o paciente ressentido como aquele que está doente de reminiscências, que nao pode deixar de recordar, nao pode esquecer. Nessas situaçoes, a libido está tenazmente ligada a um objeto devedor. O ressentido nutre-se dos maus-tratos provenientes da realidade material e do passado, reforçando o aspecto externo dos conflitos e assim alimentando o status de inocente, castigador, vingativo e arrogante4.

Segundo Maria Rita Khel5, psicanalista brasileira que também abordou o tema, o ressentido é alguém que busca alcançar um efeito retroativo sobre a passagem do tempo e anular a constataçao da evidência da falta do outro. O ressentido nao reconhece sua responsabilidade no fato do qual se queixa, nao admite ser deslocado do lugar de vítima. Ele mantém uma atitude amarga diante da vida, e, preso ao passado, permanece impossibilitado de superá-lo. Essa autora diz que o ressentido nao perdeu um objeto, mas sim um lugar, que julga ser seu de direito. O que o ressentido reivindica é o reconhecimento de um suposto valor ou o exercício de um direito do qual acredita ter sido privado5.

O movimento que anima o ressentido é regressivo: ele ambiciona retornar a um estado anterior impossível, recusando a realidade objetiva de uma perda. No clássico Luto e melancolia, Freud descreve o estado melancólico, resultado da impossibilidade de realizar um luto. A melancolia indica que um trabalho de luto nao pôde ser feito, e que entao a libido nao foi retirada do objeto amado, o que impede qualquer outro investimento. Freud já destacava o teste de realidade como parte essencial da elaboraçao do luto6.

Dessa forma, o ressentimento poderia ser compreendido como uma incapacidade de elaborar o luto de um objeto perdido. Melanie Klein inseriu o luto como um fenômeno da posiçao depressiva. Para Klein, a perda de uma pessoa amada reativa a posiçao depressiva infantil, e a habilidade de entrar em luto e de se recuperar depende da soluçao da posiçao depressiva arcaica7. Para Grimberg, o luto é um longo processo que se inicia no momento da perda, que inclui o pesar pelo próprio objeto e o pesar pelas partes do ego nele depositadas. Esse processo pode tornar-se patológico quando os lutos infantis nao puderam ser elaborados, pois o ego deficitário nao poderá utilizar todos os seus recursos frente a esse novo quadro patológico, e o processo de luto continuará indefinidamente8. Mário Martins também ressalta que a elaboraçao inacabada de alguns lutos indica uma deficiente elaboraçao da posiçao depressiva. Segundo esse autor, tais situaçoes geram resíduos patológicos nos quais se pode verificar a presença de um objeto interno morto, mas ainda dotado de vida9.

Assim, um luto normal conduziria à resignaçao pela perda e à passagem do investimento da libido para outros objetos. Porém, quando a ferida narcísica nao cicatriza, prevalece a inércia psíquica e o paciente pode ficar retido na temática torturante. O sujeito ressentido vive como se estivesse congelado num status de sofrimento, encistado pelo rancor4.

Para Kancyper, tanto o ressentimento quanto a inveja sao manifestaçoes da pulsao de morte. A inveja, segundo a teoria de Melanie Klein10, está presente desde o início da vida, sendo de base constitucional. Klein define a inveja como o sentimento raivoso de que outra pessoa possui e desfruta algo desejável. O impulso invejoso procura depositar maldade no objeto, a fim de estragá-lo ou destruí-lo, e assim elimina o mal-estar provocado pela inveja10. Inveja e ressentimento diferem num aspecto fundamental. Enquanto a inveja tem por finalidade última a destruiçao do objeto, o ressentimento utiliza uma forma menos destrutiva de identificaçao projetiva, que visa castigar, dominar e controlar o objeto. A permanência do ressentimento garante o reencontro com o objeto primário frustrador. Nessas situaçoes, a relaçao objetal se singulariza por: imobilizar o objeto, perpetuando sua presença; maltratar o objeto através de uma relaçao sádica, pelos agravos e danos que o sujeito "imerecidamente" sofreu; preservar o objeto paradoxalmente maltratado com crueldade4.

Kancyper estabelece uma diferenciaçao entre o ódio e as aspiraçoes vingativas (relacionadas ao ressentimento). O ódio, no sentido em que se opoe precisamente ao amor, promove a diferenciaçao e a necessária separaçao objetal. Estando relacionado às pulsoes de autoconservaçao, o ódio induz o sujeito a enfrentar-se com o objeto e entao desligar-se dele. Esse desligamento promove a gênese e a manutençao da discriminaçao das relaçoes de objeto. O ódio vira ressentimento quando reforça a regressao do amor à etapa sádica prévia; entao o ressentimento adquire um caráter erótico e se perpetua um vínculo sadomasoquista11.

Um aspecto importante do ressentimento é a distorçao do tempo. Para Kancyper, o sujeito ressentido nao vive numa realidade atemporal, mas sim no passado. O ressentido tende a implantar um tempo circular, no qual a noçao de tempo abriga uma esperança vingativa, como um último recurso de luta no qual o sujeito tenta restaurar a própria dignidade11.

O ressentimento permeia tantos aspectos da vida do indivíduo e tem tal constância que pode ser considerado um traço de caráter. O sujeito ressentido está amarrado a um passado cujas contas ainda nao saldou4, e, considerando-se inocente, coloca-se numa posiçao de vítima privilegiada. Assim, frequentemente o paciente ressentido apresenta-se como um credor soberbo e arrogante, com direitos outorgados de revanche pelo agravo sofrido. Para descrever esse estado de superioridade, Kancyper usa a expressao "Sua majestade, o ressentido"11. A agressividade dirigida ao objeto suscita sentimentos conscientes e inconscientes de culpa com necessidade de castigo, que se manifestam em provocaçoes sadomasoquistas4.

O ressentimento parte de uma afronta narcísica que origina um movimento reivindicatório. Muitas vezes, o ressentimento direcionado a objetos da vida atual encobre situaçoes traumáticas precoces11. Assim, vivências precoces sao ressignificadas e exteriorizadas com os objetos atuais. Portanto, a reparaçao do mal sofrido que o paciente requer muitas vezes está dirigida inconscientemente a figuras arcaicas. Nesse sentido, o ressentimento está a serviço de garantir a continuidade do vínculo, nao só com o objeto atual devedor, mas com os arcaicos. Entretanto, o ressentimento preserva no indivíduo um objeto morto-vivo4.

Mário Martins ressalta que sao as partes do ego incluídas no objeto perdido que o mantêm com vida no ego. Portanto, manter o objeto vivo se faz necessário exatamente para a preservaçao daquelas partes ou aspectos do ego. Isso significa que, enquanto restarem aspectos do ego retidos no objeto, o luto nao poderá ser ultimado9.

O sujeito permanece atrelado à memória de um passado traumático do qual nao pode se separar e manter a distância do inconsciente. No ressentimento, os acontecimentos traumáticos sao intoleráveis para o ego. Por nao poderem entrar na cadeia de significaçao simbólica, nao ascendem ao patamar de poderem ser reprimidos, mas persistem cindidos. Os sentimentos e representaçoes do rancor se repetem como automatismos, sem configurar um recordar acompanhado de uma revivência afetiva integrada em uma estrutura diferente11.


O RESSENTIMENTO NO FIM DOS RELACIONAMENTOS AMOROSOS

O prolongamento infinito das relaçoes amorosas, através do ressentimento, é um dos desfechos possíveis nas separaçoes. Num casal, fantasias inconscientes de cada membro e defesas compartilhadas possibilitam a construçao de um laço através do qual pretendem responder às necessidades do outro, assim como ter as suas atendidas. O amor é responsável pela ilusao de encontrar, na realidade, o objeto do desejo supostamente capaz de reeditar o encontro mítico com o objeto primordial12. Nos relacionamentos amorosos, os conflitos narcísicos se manifestam nao só na inveja inconsciente, desvalorizaçao, exploraçao e separaçao, mas também no desejo inconsciente de completar a si mesmo através do parceiro, que é tratado como um gêmeo imaginário13.

As relaçoes amorosas e sua psicopatologia particular foram estudadas por Kernberg13. Segundo esse autor, o desejo inconsciente de reparar relacionamentos patogênicos do passado e a tentaçao de repeti-los em termos de necessidades agressivas e vingativas insatisfeitas resulta na reencenaçao desses conflitos com o parceiro. Através da identificaçao projetiva, cada um tende a induzir no outro as características de um antigo objeto com quem teve conflitos. Antigos cenários encenados inconscientemente podem incluir fantasias realizadoras de desejo, culpa inconsciente e a busca de um final diferente para a situaçao traumática temida e interminavelmente repetida13.

Sendo assim, o doloroso momento da separaçao é propício para eclosao de conflitos anteriores, muitas vezes adormecidos. Sujeitos que mantém processos de separaçao litigiosos durante anos nao conseguem desinvestir o ex-parceiro e a ele dirigem seu ódio, degradando-o, fazendo sofrer e tirando satisfaçao sádica de seu sofrimento12. Quanto mais identificaçao projetiva carrega um relacionamento, maior é a dificuldade de levar a cabo uma separaçao14. Constatar que o outro é independente e está conseguindo gerenciar sua vida após a separaçao é experimentado como ofensivo por aqueles que têm intensas necessidades narcísicas e depositam no casamento seus anseios fusionais12.

Marta percebia a mae como uma figura muito severa, que a obrigava a trabalhar exaustivamente e cuidar dos afazeres domésticos. Antes mesmo de casar-se, soube da infidelidade do companheiro. Retrata o marido como mau-caráter, adúltero, grosseiro e manipulador. Marta jamais se sentia "compensada" pelo seu sofrimento e parecia nao haver possibilidade de abrir mao de sofrer.


MASOQUISMO E RESSENTIMENTO

Hoje, Marta sente-se escravizada pelos filhos adultos, a quem diz servir de "empregada". Realiza tarefas domésticas extenuantes e frequentemente tem dores e lesoes provocadas por essas tarefas. Frequentemente faz "surpresas" para os filhos, que incluem algum desgaste físico e decepciona-se com a falta de gratidao deles.

Para Kernberg, o padrao masoquista inicia-se na idealizaçao primitiva de um objeto poderoso e cruel que carece de uma dimensao moral. O sentimento de culpa inconsciente conduz o paciente masoquista a sofrer conforme a vontade de um introjeto punitivo. Essa seria a única maneira de recuperar o amor do objeto original e a uniao com ele. As relaçoes cronicamente abusivas e caóticas com um objeto parental podem se refletir em grave destrutividade e autodestrutividade, produzindo o que ele chama de "síndrome do narcisismo maligno". Essa síndrome se caracteriza por um self grandioso patológico, infiltrado com agressao, que reflete a fusao do self com o objeto sádico. Esse modo de relacionar-se pode congelar-se e repetir-se de modo circular na vida do paciente13.

Marta manteve um relacionamento sadomasoquista duradouro, em que possivelmente repetiu o papel de vítima que ocupava no relacionamento com os pais13. Após a separaçao, mantinha esse estado de coisas de duas formas: primeiro, vivendo de modo masoquista seus dias como subordinada dos filhos, impondo-se desgastes físicos e psicológicos nao justificados pela realidade externa; segundo, nao realizando o divórcio, mantendo-se sempre ligada ao perpetrador através do ressentimento.

Em suas fantasias, a nova companheira recebe do ex-marido tudo de bom que ele poderia oferecer. Esta outra está regozijada entre benefícios materiais e afetivos, gozando de todo o bem-estar e conforto que ela nunca desfrutou. Marta supoe que conceder o divórcio seria oferecer mais um benefício à outra mulher. O sofrimento que Marta se impoe diariamente parece gratificar suas tendências sádicas. Ao castigar-se, possivelmente está de algum modo castigando o seu algoz e aos pais.
Esse equilíbrio perverso parece nao mais envolver a expressao da agressao sancionada pelo superego, mas a encenaçao de cenários sadomasoquistas mais primitivos13.

Kernberg ressalta que em patologias masoquistas, nas quais os pacientes colecionam injustiças, o sofrimento pode proporcionar um sentimento de superioridade moral. Kernberg afirma que mulheres com personalidade depressivo-masoquista comumente apaixonam-se por homens idealizados, desde que estes sejam inacessíveis e frustrantes. Esses encontros, desapontadores desde o princípio, podem gerar fantasias românticas mantidas durante muitos anos, relativas ao que poderia ter sido. No relacionamento masoquista, o amor se intensifica precisamente após ter ficado claro que nao é correspondido. Uma fixaçao no trauma leva a intermináveis repetiçoes das mesmas experiências13.


IMPLICAÇOES DO RESSENTIMENTO NO PROCESSO TERAPEUTICO

Na sua 28ª conferência (1917), Freud diz que "o sucesso da terapia encontra limites na falta de mobilidade da libido, que pode recusar-se a abandonar seus objetos, e na rigidez do narcisismo, que nao permite que a transferência ultrapasse determinados limites"15. Em Análise terminável e interminável, Freud refere-se a certos pacientes que nao podem decidir-se a desligar catexias de um determinado objeto e deslocá-las para outro16.

O paciente ressentido pode tornar-se inacessível ao tratamento. Grimberg ressalta que certos indivíduos tendem a evitar quaisquer mudanças, pois estas trariam uma forte ameaça a sua identidade8. Para Kancyper, o paciente utiliza uma grande quantidade de energia para manter sua libido tenazmente ligada ao passado e manter a inércia psíquica. O paciente ressentido contabiliza unicamente as frustraçoes pelos maus-tratos padecidos nas situaçoes traumáticas do mundo externo, tanto as presentes como as passadas. Porém, recusase a incluir os efeitos dos seus próprios impulsos destrutivos, os quais, através da inveja, atacam seus próprios objetos4. As feridas nao cicatrizadas do passado sao constantemente reinfectadas, e muitas vezes estao a serviço de encobrir a própria destrutividade do paciente11.

Na transferência, frequentemente o terapeuta ocupa o lugar de um objeto persecutório, sendo colocado numa situaçao em que ou simpatiza com o paciente ou é acusado de estar do lado do inimigo13. Os processos circulares de encarceramento do ressentimento, sem possibilidade de saída, podem dar uma ideia do mundo interno do sujeito, que vive uma existência enclausurada e determinada pela desesperança. A esse grave obstáculo no processo, Kancyper denominou baluarte "kafkiano"17.

O campo "kafkiano" provavelmente estaria constituído por identificaçoes primárias insuficientemente estruturantes, provenientes de traumas narcisistas precoces. O baluarte** "kafkiano" traduz-se por um estado de repetitivo desafio e provocaçoes que ataca o processo terapêutico. Esse baluarte gera um campo que oscila entre a desesperança e a esperança, culpa e condenaçao. O paciente permanece regressivamente colado a uma persistente e repetitiva atitude de desalento, tentando derrotar e até sepultar a capacidade terapêutica do terapeuta, com o objetivo inconsciente de conduzi-lo a sua privada "necrópole"11.

Kancyper descreve a fantasia inconsciente básica desse campo com a imagem de dois gladiadores, em que um deles deve morrer. É difícil desmantelar o prazer relacionado com o ataque ao processo terapêutico, já que essa satisfaçao está relacionada a uma fantasia onipotente mortífera que provém da megalomania negativa do narcisismo a serviço de Tánatos***. No campo "Kafkiano", paciente e terapeuta permanecem imobilizados em uma regressiva desesperança17.

A repetiçao na situaçao kafkiana é a forma básica da impossibilidade da existência de um futuro. Na transferência, o terapeuta pode representar um ofensor do passado. As manifestaçoes regressivas e repetitivas do ressentimento sao direcionadas também ao terapeuta, podendo abrigar uma esperança vingativa de castigar, em sua figura, os objetos arcaicos humilhantes e supostamente responsáveis pelos seus agravos17.


DO RESSENTIMENTO INTERMINAVEL AO RESSENTIMENTO TERMINAVEL

O ressentimento é patológico e interminável quando o sujeito nao cicatriza certas feridas narcísicas, que se reinfectam indefinidamente através dos tempos11. Enquanto a dor de uma separaçao só puder ser vivida mediante a responsabilizaçao do outro, o paciente fica preso a uma lógica binária na qual só existem o bom e o mau, o inocente e o culpado, a vítima e o algoz12. O ressentimento pode chegar a ser interminável quando opera como uma defesa, ante a impossibilidade de admitir a perda do irrecuperável. Nesse sentido, opera como o que Steiner18 denominou refúgio psíquico: "uma organizaçao patológica da personalidade que proporciona uma estabilidade que é resistente à mudança psíquica. Os ressentimentos focalizados em experiências traumáticas sao experimentados como lugares regressivos de segurança onde o sujeito pode buscar refúgio da realidade, da angústia e da culpa"18.

Quando se instala o ressentimento patológico, legitima-se uma regressiva vontade de domínio onipotente, que aspira a impor um poder retaliativo sobre outro, o agressor. O paciente ressentido parece preferir vingarse a curar-se11. Para Kancyper11, a principal funçao da psicoterapia nessas situaçoes pode se traduzir em fazer do ressentimento interminável um ressentimento terminável. O ressentimento interminável está baseado na memória do rancor, enquanto o terminável está relacionado com a memória da dor. Kancyper descreve o ressentido como um "mnemonista implacable", um sujeito com capacidade extraordinária para manter vivas memórias de um intolerável passado. A memória do rancor se entrincheira na esperança da revanche, e sua repetiçao reinstala, através da pulsao de morte, a compulsao repetitiva e até insaciável da vingança. Nessa situaçao, nao há possibilidade de futuro, pois presente e futuro sao hipotecados para lavar a honra ofendida do passado11.

Uma das saídas possíveis para o indivíduo ressentido pode ser descrita como a passagem da memória do rancor para a memória da dor. A memória da dor nao nega o passado e nao exige a renúncia à dor do ocorrido. Opera, através da pulsao de vida, como um nao esquecer estruturante e organizador, como um sinal de alarme que protege e previne a repetiçao do mal e dá espaço para uma transformaçao e uma renovada construçao do possível11.

Quando as lembranças do passado forem estruturadas a partir da memória da dor, possibilita-se usar o passado com vistas ao presente. O ressentimento interminável pode passar a ser terminável quando o sujeito rancoroso abre mao do desejo de triunfar sobre o outro através da vingança. Essa renúncia pode se dar através de um trabalho complexo de elaboraçao, em que o cindido e o projetado no ressentimento devem ser reintegrados e introjetados no próprio sujeito11.

Para passar a ser terminável, é necessário que o ressentimento transforme-se em ódio11. Construçoes microdelirantes que sustentam o ressentimento devem ser desfeitas, a fim de que apareça a inveja consciente. Isso implica a renúncia de uma ilusao e a tolerância de uma afronta narcísica. Esse processo de reordenamento das identificaçoes narcísicas requer uma forte dose de agressividade a serviço de Eros17.

Nessa situaçao, é útil tentar ajudar o paciente a tomar certa distância das suas memórias, a fim de fazer o reordenamento dessas identificaçoes, para que possa ser possível transformar o rancor em história. Para isso, é necessário superar a lógica beligerante que serve como matriz do ressentimento, que na fantasia inconsciente básica do campo se manifesta com a oposiçao entre o débil e fracassado e o forte e vitorioso. Uma vez que se possa romper essa dicotomia no campo, torna-se possível construir outra lógica11.

No lento processo de elaboraçao psíquica, trava-se uma série de batalhas de ambivalência. Quando o paciente ressentido assume o abandono de sua autoidealizaçao onipotente ante a revelaçao de que na realidade material o outro, tomado como sujeito, é exterior e independente, assiste entao a derrota de suas próprias instâncias ideais17.

Essa renúncia ao ideal narcísico, através da desidealizaçao, rompe a circularidade da compulsao à repetiçao e abre espaço para uma esperança do possível. Essa elaboraçao se dá mediante pequenas e sucessivas retificaçoes que valorizam o objeto, o ego e o vínculo entre ambos. Assim, possibilita-se a passagem para objetos mais discriminados17. Levy destaca que a elaboraçao do luto de relaçoes amorosas se faz concomitantemente com a recuperaçao das partes de si que foram projetadas no outro; e isso só pode vir acompanhado de uma possibilidade de integraçao do ego de cada um dos envolvidos, o que significa quebrar com a idealizaçao do modelo fusional de relacionamento. Com isso, a energia libidinal pode ser direcionada para novos objetos12.

Mário Martins ressalta que as partes do ego retidas no objeto devem ser recuperadas para que seja possível elaborar o luto. Trata-se de um lento processo, que depende das possibilidades de liberaçao da libido que permanece no objeto. Essa liberaçao se faz de um modo progressivo, através de cada um dos seus pontos de fixaçao9.

Nessas situaçoes, o terapeuta deveria se posicionar como um "aliado transitório", e nao como um "cúmplice", para que o paciente se anime a questionar e confrontar o sofrimento, que é visto como imposto pelos outros. Nesse contexto, o paciente deveria posicionar-se no lugar da responsabilidade, e nao da culpa, remorso ou vergonha11.

Em síntese, o tratamento psicoterápico nesses casos deve almejar que o indivíduo possa chegar a ser um agente ativo de seu próprio destino, e nao uma mera vítima. Visa que o sujeito nao permaneça imantado como um refém a um destino prefixado e possa ascender a uma realidade dinâmica de incertas e infinitas possibilidades, da qual deve ser o protagonista11.


CONSIDERAÇOES FINAIS

Para Nietzsche, o excesso de memória mumifica a vida. Em Genealogia da moral: uma polêmica, o filósofo sugere que seria necessário suspender a memória, em determinados momentos, para que seja possível a afirmaçao do tempo presente19. Assim como relatado na teoria, Marta fazia uso pervertido da memória na psicoterapia. Aqui, o "recordar" nao tem a funçao de compreensao do passado, que torne possível uma elaboraçao dos conflitos anteriores. As memórias vívidas de um passado torturante (reproduzidas no presente) estao a serviço de manter o status quo, justificando o intransponível muro do sofrimento atual.

A memória encistada pelo rancor constitui um certo culto à desgraça4. Esse lugar dá ao paciente o direito nao só de ser sádico e cruel com o outro como consigo17. Na contratransferência, a sensaçao de imobilizaçao era predominante, o que remetia à ideia de que havia um objeto aprisionado dentro de Marta. Ela era, ao mesmo tempo, carcereira e prisioneira.

O doloroso momento da separaçao é propício para eclosao de conflitos anteriores, muitas vezes adormecidos. Quanto mais identificaçao projetiva carrega um relacionamento, maior é a dificuldade de levar a cabo uma separaçao14. O ressentimento pode ser visto como um luto mal resolvido, no qual o objeto interno perdido fica enquistado no sujeito, como um objeto morto-vivo que deve ser mantido, pois seu abandono resultaria na aniquilaçao de partes do próprio ego9. A manutençao do status de sofrimento nessas situaçoes pode ter um caráter masoquista13. Na transferência, o terapeuta pode representar um opressor do passado, e o campo pode ser dominado por uma sensaçao de batalha de gladiadores, na qual um dos participantes deve morrer17. Um dos caminhos possíveis para a resoluçao das situaçoes de ressentimento é descrita por Kancyper como a passagem da memória do rancor para a memória da dor11. A elaboraçao do ressentimento é um longo processo, no qual o paciente pode ser ajudado a abrir mao dos desejos de vingança e descobrir um novo uso11,17.

Apesar de poucos autores terem abordado o tema diretamente, a compreensao psicodinâmica do ressentimento é bastante rica. Explorar suas origens e técnicas de abordagem parece ser útil na prática psicoterápica. O ressentimento se apresenta nas psicoterapias como uma face intransigente da resistência. Paciente e terapeuta podem sentir-se como se estivessem num complexo labirinto: achar a saída parece possível, mas buscá-la exige uma grande quantidade de energia e é necessário poder tolerar as frustraçoes de um longo percurso.


REFERENCIAS

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19. Nietzsche FW. Genealogia da moral: uma polêmica. Sao Paulo: Companhia das Letras; 1998.

20. La situación analítica como campo dinámico. In W. Baranger & M. Baranger, Problemas del campo psicoanalítico. Buenos Aires: Kargieman (1969).










1. MD. Psiquiatra do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Especialista em Psicoterapia pelo Centro de Estudos Luís Guedes. Doutoranda do Programa de Pós-Graduaçao em Psiquiatria da UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil
2. Psiquiatra e psicanalista. Professora e supervisora do Curso de Especializaçao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica do Centro de Estudos Luís Guedes. Membro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Correspondência
Fernanda Lucia Capitanio Baeza
Rua Ramiro Barcellos, 2350
90460-210 Porto Alegre, RS, Brasil

Submetido em: 18/09/2016
Aceito em: 06/10/2016

Instituiçao: Centro de Estudos Luís Guedes - Universidade Federal do Rio Grande do Sul


* Nome fictício.
** O conceito de baluarte foi concebido por Madeleine e Willi Baranger, definido como um refúgio inconsciente de fantasias poderosas de onipotência, que tendem a cristalizar uma configuraçao determinada. Trata-se de uma formaçao defensiva do campo, que imobiliza e dificulta o processo analítico, derivada de uma cumplicidade entre terapeuta e paciente, uma neoformaçao em que estao incluídos aspectos da história de ambos os participantes (Baranger et al, 1969).
*** Ao desenvolver os conceitos de pulsao de vida e de morte, Freud construiu uma analogia com as figuras mitológicas de Eros e Tánatos. Enquanto a pulsao de vida, representada pela libido dos instintos sexuais, e mais genericamente por todos os impulsos de autoconservaçao, coincide com a figura de Eros, a pulsao de morte, mutuamente oposta, é representada por Tánatos, o deus da morte. Esses conceitos foram desenvolvidos em Além do princípio do prazer (1920) e Mal-estar na civilizaçao (1930).

 

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