Rev. bras. psicoter. 2016; 18(2):67-77
Gerchman FC. Enactments sob o Vértice da Teoria das Transformaçoes. Rev. bras. psicoter. 2016;18(2):67-77
Artigos Originais
Enactments sob o Vértice da Teoria das Transformaçoes
Enactments under the Vertex of the Theory of Transformations
Felipe Canterji Gerchman
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
O objetivo do presente estudo é propor uma ampliaçao da compreensao das dinâmicas intersubjetivas presentes na relaçao analítica, através da reflexao sobre as possíveis interaçoes entre os enactments e a teoria das transformaçoes, conforme proposta por Bion e trabalhada posteriormente por autores que desenvolveram suas concepçoes. Com forte embasamento nas ideias de Melanie Klein2,3,4,5,6, partindo da compreensao das fantasias inconscientes, defesas primitivas, bem como dos fenômenos referentes às oscilaçoes entre posiçao depressiva e esquizoparanoide, Bion7,8,9 constrói sua obra demonstrando o modo com que esses constructos se relacionam com os elementos de psicanálise e possibilitam um aprender com a experiência, tendo como cerne uma teoria sobre o pensar. Desenvolvendo suas ideias sobre a relaçao entre a psique, o modo com que se representa a realidade e as manifestaçoes do campo analítico, Bion escreve, no ano de 1965, sua obra intitulada Transformaçoes: do aprendizado ao crescimento, foco de atençao deste trabalho.
Os conluios inconscientes entre terapeuta e paciente, chamados de enactments, sao encontrados como foco de estudo de diversos autores10,11,12,13, demonstrando que uma melhor compreensao sobre esses fenômenos produz benefícios para a prática clínica. Dessa forma, este trabalho se debruça sobre o seguinte problema: a teoria das transformaçoes auxilia no entendimento dos enactments? Com isso, investigam-se possíveis especificaçoes de categorias entre enactments, a partir das diferentes modalidades de transformaçoes, ampliando os vértices dos fenômenos clínicos em psicanálise.
Enactment
O termo enactment começou a ser utilizado na década de 80, referindo-se aos atos inconscientes da dupla terapêutica14,15,16. Esse fenômeno passa a ser mais estudado na década de 90, em um contexto no qual já há uma valorizaçao dos aspectos interacionais entre paciente e terapeuta, todavia ainda hoje nao encontra um consenso quanto à utilidade para o processo analítico11,13. Cassorla12 ensina que o enactment é um fenômeno intersubjetivo que se dá a partir de uma induçao emocional mútua, que envolve terapeuta e paciente sem que ambos tenham consciência disso, e que tem sua funçao em manter o status quo e evitar a mudança psíquica. Conforme esse autor, descargas e/ou condutas e comportamentos tomariam o campo analítico, remetendo ao que seria um estado de nao-sonho-a-dois, em que a simbolizaçao verbal estaria prejudicada.
Sandler17 contribui para a compreensao desse fenômeno, definindo-o como o resultado de um interjogo de identificaçoes projetivas, no qual ocorre uma encenaçao de elementos afetivos inconscientes de origem arcaica, envolvendo ambos os membros da dupla. Cassorla18 comenta que, se nao compreendidas, essas encenaçoes poderiam levar a pontos cegos e transposiçao de fronteiras do tratamento. O painel On Actingout and/or Enactment19, apresentado no 42º Congresso da Associaçao Internacional de Psicanálise, traz contribuiçoes pertinentes sobre a diferenciaçao entre o enactment e o acting-out. Os debatedores esclarecem que o acting-out envolve a realizaçao motora de um impulso por uma pessoa, enquanto o enactment é considerado um episódio entre duas pessoas. Cassorla20 contribui, ensinando que no enactment o analista é levado pela relaçao, enquanto no acting-out ele é um observador das açoes do paciente.
Quanto à utilidade dos enactments para o processo terapêutico, Gus10 comenta que isso irá depender do encaminhamento técnico que se dará a esse fenômeno, e afirma que sua ocorrência é inevitável no processo analítico. Goellner11 ensina que há autores que chegam a considerar esse fenômeno um pré-requisito para a mudança22,23, enquanto outros o veem de modo potencialmente negativo14,24, podendo gerar conluios que prejudiquem a capacidade do analista de pensar o paciente.
Friedman e Natterson25 colocam uma divisao para categorizar os tipos de enactment, afirmando que estes podem ser breves, quando de curta duraçao, ou expandidos, quando contínuos no decorrer do tratamento. Jacobs21 separa os enactments em abertos e encobertos. Seriam abertos quando logo percebidos pelo terapeuta, que pode utilizá-los de modo proveitoso para o processo terapêutico; e encobertos quando se manteriam por longos períodos despercebidos.
Também Cassorla12 distingue duas modalidades de enactments: agudos e crônicos. Conforme o autor, os enactments crônicos se dao em uma área de nao simbolizaçao, paralelamente a uma área simbólica onde aparentemente a terapia segue seu fluxo de modo construtivo, gerando um conluio dual que pode oscilar entre uma conotaçao sadomasoquista e de idealizaçao mútua. Em certo momento, haveria uma "explosao", um conglomerado abrupto de descargas em que se faria possível observar a encenaçao, sendo este o enactment agudo. Sua ocorrência colocaria em evidência o conluio, possibilitando uma ampliaçao do pensamento sobre os fenômenos vivenciados pela dupla e permitindo sua ressignificaçao.
Cavalheiro e Silva13 sugerem uma divisao diferente, propondo a existência de enactments de vida e enactments de morte. A primeira modalidade seria quando, após a dissoluçao de um enactment crônico, "o terapeuta já consegue tecer hipóteses sobre sua açao que podem ser utilizadas no trabalho posterior" (p. 7), enquanto a segunda modalidade refere-se às situaçoes em que o conluio nao consegue ser dissolvido, promovendo um desligamento do processo analítico ao torná-lo estéril.
TEORIA DAS TRANSFORMAÇOES
O estudo das transformaçoes objetiva esclarecer os fenômenos observados entre os enunciados do analista e do paciente, de modo a promover entendimento sobre a evoluçao da experiência emocional da dupla26. Bion1 propoe alguns símbolos para indicar as etapas do processo de transformaçao, sendo eles: "O" (zero) para indicar o estado original do fenômeno observado, "T" para a transformaçao, "T-Alfa" para o processo e "T-Beta" para o resultado. Também há a invariância, ou seja, aquilo que permanece inalterado após o processo de transformaçao (T-Alfa), o que permite identificar no resultado (T-Beta) o objeto original (O). Bion1 exemplifica o processo de transformaçao através da pintura de um quadro, em que o objeto a ser pintado é o "O", o processo de pintar é "T-Alfa", a pintura feita no quadro é "T-Beta", e a invariância sao os aspectos na pintura que permitem reconhecer nela o objeto pintado, sendo dessa forma possível pensar o modo com que um fenômeno é transformado em representaçao.
Bion1 categoriza as modalidades de transformaçoes, dividindo-as em transformaçoes em movimento rígido, transformaçoes projetivas, transformaçoes em alucinose, transformaçoes em K e transformaçoes em O. Posteriormente, Korbvicher26,27,28 acrescenta a categoria das transformaçoes autísticas.
Zimerman29 explica a transformaçao em movimento rígido como aquela em que é possível distinguir o elemento invariante com alguma facilidade, sendo esta mais comum em pacientes neuróticos. Grinberg30 comenta que essa modalidade ocorre na área das emoçoes, dos pensamentos e das palavras, e implicam pouca deformaçao do elemento original (O). Ainda pode-se acrescentar que nas transformaçoes em movimento rígido é possível agregar a compreensao sobre a relaçao entre histórias passadas e aquilo que se passa no presente31. Nas palavras de Bion: "O aspecto da transferência que importa na transformaçao é aquilo que Freud descreveu como uma tendência de "repetir aquilo que é reprimido, como uma experiência atual", ao invés de lembrá-la como um fragmento do passado" (p. 33)9.
Clivagens e identificaçoes projetivas predominam nas transformaçoes projetivas27. Bion1 explica que nesse caso a mente é utilizada como um órgao expelidor, que projeta elementos-beta - protopensamentos que nao conseguem ser digeridos pelo aparelho mental imaturo - em um campo multidimensional, o qual pode incluir o analista, a personalidade do próprio paciente, a relaçao entre ambos, e ainda outros campos possíveis. O precoce emprego de defesas primitivas distorce a invariância, todavia sendo possível ainda distinguir e produzir interpretaçoes26.
Nas transformaçoes em alucinose, segundo Korbivcher27, a figura do analista é substituída por uma criaçao do próprio paciente, levando a relaçao a uma independência quanto aos fatos em curso. Conforme cita Bion, "o moto do paciente cujas transformaçoes sao efetuadas no ambiente de alucinose quase poderia ser: 'açoes falam mais alto do que palavras'" (p. 150)1. Esse autor ensina que a transformaçao em alucinose distorce a realidade, porém nao é sinônimo de alucinaçao e pode ser operada por pacientes neuróticos. Grinberg30 contribui explicando que alucinaçoes, manifestadas clinicamente ou nao, podem estar entre o produto final dessa categoria, porém que frequentemente o analista nao tem acesso ao seu produto final (T-Beta). Conforme Zimerman26, essas transformaçoes estariam relacionadas a uma ansiedade de aniquilamento no lactente, que nao encontrou um objeto continente, levando à reintrojeçao e posterior evacuaçao por vias sensoriais. O retorno via sensorial levaria à alucinose.
Nas transformaçoes em K, o psicanalista auxilia a transformar em consciente parte da experiência emocional que se encontra inconsciente para o paciente, devendo ser este o sentido das transformaçoes do analista1. Aqui, há uma compreensao da relaçao entre a história passada e o que ocorre no presente, acompanhada da vivência de um tempo referencial31.
Bion1 apresenta ainda as transformaçoes em O, referindo-se ao processo de ir além do conhecer sobre para alcançar o tornar-se, ou seja, uma maturaçao no ser do paciente, nao sendo suficiente somente a compreensao sobre o próprio funcionamento (transformaçoes em K), mas gerando mudanças ainda mais profundas. Conforme o autor, essa categoria de transformaçao pode ser temida, levando à resistência quanto às transformaçoes em K, já que as últimas poderiam evoluir para transformaçoes em O. "Por quê? Por medo da turbulência e do medo e do tornar-se a ela associado" (p. 172).
Com base nas ideias de Bion e com forte influência dos desenvolvimentos teóricos da psicanalista Francis Tustin no que diz respeito aos fenômenos autísticos, Korbivcher27,28 propoe a existência de outra modalidade de transformaçao, a transformaçao autística. Conforme a autora, essa modalidade diz respeito a uma incapacidade do sujeito de tolerar a separaçao entre self e objeto, gerando tentativas de forjar "pontes" que preencham esse espaço. Nas transformaçoes autísticas, predomina no analista uma experiência de "vazio", e este deverá manter sua capacidade para pensar, de modo a encontrar meios de estabelecer uma comunicaçao com o paciente. Korbivcher32 ainda descreve as transformaçoes nao integradas, nas quais a ameaça de perda na noçao da própria existência provoca intensas manifestaçoes corporais nao mentalizadas com permanente estado de terror.
Cavalheiro33 recorda que para Bion as diferentes modalidades de transformaçoes podem ser operadas por pacientes com diferentes estruturas, sem estarem determinadas por um tipo específico de patologia. Cavalheiro (p. 498)33, fundamentado em Bion, explica:
Nesse sentido, dentro do seu referencial, um paciente que opera com a parte nao psicótica da personalidade pode, tranquilamente, deformar a experiência emocional a ponto de criar uma realidade autogerada que desconsidera a realidade externa (alucinose), bem como um paciente que está no espectro da parte psicótica é capaz de compartilhar uma experiência muito próxima ao que foi vivenciado (movimento rígido).
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