Rev. bras. psicoter. 2016; 18(2):50-66
Santeiro TV, Barboza LFL, Souza LF. Casos clínicos retratados no cinema: estudo de processos defensivos. Rev. bras. psicoter. 2016;18(2):50-66
Artigos Originais
Casos clínicos retratados no cinema: estudo de processos defensivos
Clinical cases portrayed in the cinema: study of the defensive processes
Tales Vilela Santeiro1; Leylane Franco Leal Barboza2; Ludimila Faria Souza3
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Este trabalho visa analisar o uso de mecanismos de defesa do Ego (MDs) em personagens fílmicos atendidos por psicanalistas e psicoterapeutas (clínicos). É sabido que MDs sao utilizados por todos - de diferentes maneiras e em diferentes medidas - e que representam o dinamismo e o nível de amadurecimento psíquico das pessoas. Pretende-se, dessa forma, contribuir para a formaçao de clínicos e salientar a importância que o uso da linguagem dos filmes pode ter nesse processo, exemplificando aspectos teórico-técnicos de orientaçao psicanalítica.
A palavra defesa surgiu pela primeira vez na teoria psicanalítica em 1894, na obra As neuropsicoses de defesa, de Sigmund Freud, a fim de "descrever a luta do Ego contra ideias ou afetos dolorosos ou insuportáveis" (p. 36)1. Ela foi utilizada para se referir às manifestaçoes que visam proteger o Eu das agressoes internas (pulsoes) e também das externas2.
Ao longo do desenvolvimento da teoria psicanalítica houve períodos em que "o estudo teórico do ego individual foi nitidamente impopular" (p. 3)1. O valor do trabalho científico e terapêutico era visto, pelos analistas, como proporcional à profundidade das camadas psíquicas para as quais a atençao era voltada. Por essa via, o termo psicanálise deveria ser reservado às "novas descobertas relativas à vida psíquica inconsciente" (p. 3)1.
Apesar de reconhecer a existência de outros MDs, Freud dedicou maior atençao à repressao, chegando a utilizar esse termo em substituiçao ao conceito de defesa durante certo período, próprio dos desenvolvimentos iniciais de suas proposiçoes teóricas (teoria do trauma rumo à teoria topográfica). Porém, mais tarde, na medida em que os estudos o levaram a revisoes (teoria estrutural), reconheceu a existência da repressao e dos MDs, diferenciando-os. Por conseguinte, ampliou a noçao de MD3,4.
Todos os MDs visam à diminuiçao da tensao interior, causada por estímulos/excitaçoes excessivos e interpretados como culpa ou angústia. Por meio das defesas, o Ego evita o reconhecimento da tensao, mantendo-a fora da consciência. Assim, é possível constatar que os meios de defesa dos quais o Ego se utiliza sao inconscientes e têm funçao importante na vida de cada pessoa5. Entretanto, cabe observar que o uso inadequado desses recursos pode afetar negativamente o funcionamento egoico, favorecendo o desenvolvimento de transtornos psicológicos6.
A obra O ego e os mecanismos de defesa1 constituiu-se num marco da teoria psicanalítica. Nela, Anna Freud aprofundou os estudos anteriores de Sigmund Freud e descreveu detalhadamente alguns MDs3.
Para Anna Freud, o objetivo da análise era conhecer o quanto fosse possível as três instâncias psíquicas - Id, Ego e Superego - sem dar prioridade a uma ou outra, a fim de compreender suas relaçoes com o mundo externo. Essas instâncias variavam em seu grau de acessibilidade à informaçao. Destarte, o Id nao poderia ser diretamente acessado sob nenhuma condiçao. O conhecimento sobre essa instância psíquica seria viável apenas através de derivativos que abrissem caminho e se apresentassem nos sistemas pré-consciente e consciente1.
O conteúdo do Superego, por sua vez, era compreendido como, majoritariamente, consciente e poderia ser acessado de maneira direta. Entretanto, quando as relaçoes entre Ego e Superego fossem harmoniosas, seria possível afirmar que os dois coincidiriam, havendo a impossibilidade, tanto do sujeito quanto de um observador externo, de perceber o Superego como instância separada. O conteúdo superegoico se tornaria claro quando este enfrentasse o Ego. Por esse motivo, Anna Freud afirmou que o Ego se constituiria no campo adequado de observaçao da dinâmica psíquica1.
No Id predominariam os processos primários, nao havendo organizaçao rígida de ideias e afetos; nele imperaria a obtençao de prazer como princípio. No Ego ocorreriam os processos secundários, isto é, as ideias eram submetidas a condiçoes rigorosas. Nao obstante, as pulsoes se confrontariam com os imperativos da realidade, devendo se adequar às leis éticas e morais por meio das quais o Superego buscaria controlar o comportamento. Assim, uma espécie de luta entre essas diversas instâncias psíquicas seria travada, na qual as pulsoes instintivas do Id insistiriam em entrar no Ego, enquanto este utilizaria medidas defensivas para colocar os instintos fora de açao1.
Resguardadas essas fundamentaçoes teóricas que tentam explicar fundamentos da psicodinâmica defensiva, cabe observar que o conjunto dos diversos tipos de defesa apresentados pelas pessoas tem sido designado como MD1,7 e/ou como processos defensivos8. O uso deste último tem sido adotado como forma de evitar a propagaçao de vertentes teóricas que considerariam defesas alinhadas a concepçoes "psicopatológicas" e que as entendem de modo integrado ao estilo pessoal de lidar com situaçoes conflituosas que geram angústia. Neste texto, ambas as expressoes serao utilizadas, embora o sentido da última seja considerado mais produtivo do ponto de vista da compreensao psicodinâmica do ser humano de modo geral, e nao necessariamente de um ser humano adoecido.
CLASSIFICAÇAO DOS MECANISMOS DE DEFESA
Em sua obra, Anna Freud citou dez MDs1. Relacionados ao estudo das neuroses, eles eram nove: regressao, repressao, formaçao de reaçao, isolamento, anulaçao, projeçao, introjeçao, reversao e, por fim, inversao contra o eu (em McWilliams [2014] este último processo foi traduzido como "virando-se contra o self"). Ela acrescentou a estes, ainda, um décimo mecanismo: a sublimaçao, que estaria mais alinhado ao estudo da mente normal.
Mais recentemente, as defesas podem ser classificadas de acordo com diferentes critérios, tais como a fase libidinal em que surgem, como simples ou complexos, segundo determinada psicopatologia etc.9 A classificaçao hierárquica, que vai da defesa mais imatura ou patológica até a mais madura ou saudável, tem sido utilizada com frequência3. Nao obstante, um perfil dos mecanismos utilizados pelo sujeito é um bom indicador de sua saúde psicológica3,8.
Tendo em vista os objetivos deste trabalho, teorizaçoes sobre modos de compreender o psicodinamismo psíquico sao consideradas úteis, na medida em que elas podem contribuir para a análise da retrataçao de pessoas atendidas por clínicos em filmes comerciais, e também porque elas mantêm sua vitalidade e atualidade clínicas, por exemplo, para auxiliar o clínico psicodinamicamente orientado a realizar diagnósticos de caráter8.
Dada a complexidade teórica subjacente ao exercício de identificar processos defensivos em personagens fílmicos proposto neste estudo, releituras feitas por autores de obras didáticas10,11,12 serao consideradas em conjunto com autores antes mencionados. Nesse sentido, a ordenaçao teórica pode ser feita a partir de três grandes agrupamentos dos processos defensivos: os imaturos, os neuróticos e os maduros9, ou, ainda, primitivos, neuróticos e maduros3.
As defesas imaturas ou primitivas envolvem distorçao da imagem de si mesmo e de outrem e podem ser utilizadas para regular a autoestima. Nelas, pulsoes, afetos e ideias dolorosos ou inaceitáveis sao mantidos fora da consciência e atribuídos incorretamente a causas externas. Geralmente sao utilizadas por pessoas que apresentam comportamentos socialmente indesejáveis ou que se sentem ameaçadas pela intimidade interpessoal. Nesse tipo de defesa a projeçao, a atuaçao, a negaçao, a cisao e a somatizaçao seriam exemplares9.
Nos processos defensivos neuróticos as ideias, sentimentos e desejos considerados ameaçadores também sao mantidos fora da consciência. No entanto, eles "alteram afetos, sentimentos internos ou expressao dos instintos, fazendo que a pessoa pareça estar sempre às voltas com suas preocupaçoes pessoais e seus problemas insolúveis" (p. 27)9. A intelectualizaçao, a racionalizaçao e a introjeçao seriam modelos a serem considerados.
As defesas maduras, por sua vez, sao aquelas consideradas adaptativas, pois conseguem, ao mesmo tempo, satisfazer a pulsao e manter na consciência os sentimentos, ideias e afetos. A sublimaçao e o humor (este último nao contemplado na obra de Anna Freud1) seriam possibilidades desses tipos de processos defensivos. Os MDs observados nos personagens fílmicos serao retomados ao longo das discussoes, a título de aprofundamento teórico dessas consideraçoes iniciais.
Considerando esses norteadores teóricos fundamentais, portanto, neste trabalho será investigado como e quais MDs sao utilizados por pessoas atendidas por clínicos, em filmes comerciais. Esse exercício é possível em especial se o leitor entender que a linguagem dos filmes representa, entre inúmeras possibilidades de relaçoes profissionais, as de clínicos com seus atendidos, e que isso ocorre de modo mais ou menos verossímil.
Nessa medida, encenaçoes fílmicas podem ser úteis para elucidar práticas e dinâmicas psíquicas e permitem ampliá-las no processo de formaçao de clínicos, por meio de linguagem própria13. Além do mais, a análise e o uso de filmes têm sido um recurso didático usual entre psicanalistas, psiquiatras e clínicos de orientaçao psicanalítica14,15,16,17,18.
MÉTODO
Material: três filmes comerciais que retratavam processos clínicos. Neles a relaçao atendido-clínico era central no argumento geral do filme, em encenaçoes e expressoes verbais de personagens.
Filme 1: Instinto selvagem 219 é um suspense policial de produçao estadunidense protagonizado por Catherine Tramell, famosa escritora de suspenses. Ele se inicia com a misteriosa morte de um astro do esporte em um acidente automobilístico, situaçao em que Catherine esteve envolvida. A protagonista passa a ser considerada suspeita e, por designaçao da Justiça, se submete a avaliaçao psiquiátrica com o psicanalista Dr. Glass.
Filme 2: Mentes diabólicas20, coproduçao britânico-australiana, é um suspense policial que conta a história de Alex Bennett, um jovem acusado da morte do colega de escola, Nigel Colby. Sally Rowe, uma psicóloga forense, deve avaliá-lo a fim de concluir se ele é ou nao culpado pelo crime.
Filme 3: Diva21 é produçao brasileira classificada como comédia dramática. Mercedes, a protagonista, é uma mulher de meia idade, professora de matemática, artista plástica, casada e mae de dois filhos. Ela procura Dr. Lopes, psicanalista, em meio à crise no casamento e a um processo de reavaliaçao da vida.
Equipe: para análise e discussao clínica do material, o grupo de pesquisa contou com três integrantes: duas estudantes de 5º ano de curso de Psicologia, matriculadas em disciplinas e estágios clínicos com ênfase teórica psicanalítica; e um professor-supervisor, pesquisador atuante em processos clínicos de orientaçao psicanalítica há 17 anos.
Procedimentos: primeiramente, filmes comerciais que retratassem a relaçao clínico-atendido, em processos individuais, lançados de 2000 até 2014, foram buscados. O parâmetro temporal correspondeu, por conseguinte, a 15 anos de produçoes fílmicas, considerado suficiente para as finalidades da pesquisa, o que também evitaria a retomada de obras fílmicas, lançadas em momentos anteriores ao período estipulado, tratadas em outros estudos22,23,24,25.
Palavras-chave como psiquiatria, psicologia, psicólogo, psiquiatra, psicoterapeuta, clínica e psicoterapia foram cruzadas com filme e cinema, em buscas realizadas em bases de dados especializadas em vendas e em divulgaçao de filmes (Netflix, Adorocinema, Cinepop). Nao houve restriçoes quanto à nacionalidade ou o padrao das produçoes (blockbusters foram considerados tanto quanto produçoes independentes)13.
Essa busca inicial resultou em 22 obras. Todas elas foram assistidas e posteriormente discutidas em supervisao. Filmes cujo tempo de duraçao das cenas de atendimento clínico eram de poucos minutos e/ou que apresentavam processos clínicos de modo periférico no roteiro foram excluídos da amostra, uma vez que isso dificultaria ou inviabilizaria a identificaçao e a análise pretendida das manifestaçoes verbais dos atendidos.
A partir desses critérios, 18 filmes que retratavam processos clínicos (psicoterapêuticos e outros procedimentos clínicos) foram excluídos da amostra26,27,28,29,30,31,32,33,34,35,36,37,38,39,40,41,42,43,44. No limite do silêncio26, por exemplo, acompanha o drama de Michael Hunter, um psicólogo arrasado após o suicídio de seu primogênito. A tragédia o faz abandonar a atuaçao clínica e ele se torna escritor. Alguns anos depois, Hunter reluta ao ser convidado a tratar do caso de um adolescente prestes a sair de um orfanato. Ele decide apenas conhecer o garoto, sem a garantia de que irá assumir o caso. A semelhança com o filho falecido faz com que ele se envolva e passe a visitar o garoto frequentemente. Contudo, a relaçao entre os dois se aproxima mais de uma relaçao de amizade e proteçao, em oposiçao a uma profissional propriamente dita.
De modo semelhante, Sem reservas39 apresenta a protagonista Kate como atendida, uma competente e dedicada chef. Porém, o processo dela, no caso em tela psicoterapêutico, é pouco explorado no decorrer do filme, consistindo em raras e rápidas cenas de Kate no consultório. Por fim, Correndo com tesouras44, embora tenha a psicoterapia como um tema central, foi retirado da amostra porque ele focava tratamento medicamentoso aliado à intervençao psicoterapêutica, característica essa que o distinguia do restante dos títulos. Essa medida implicou a exclusao desse 19º título.
Assim, a amostra final utilizada neste trabalho consistiu de três filmes. Eles foram assistidos plano a plano13 e repetidas vezes, e as sessoes clínicas encenadas passaram por processo de transcriçao literal, momento no qual, no caso das produçoes estrangeiras, o texto da legendagem em português foi considerado. Esse material fundamentou as análises e as discussoes sobre possíveis processos defensivos utilizados pelos personagens, as quais ocorriam entre os autores em sessoes de supervisao clínica, cenário no qual os conteúdos fílmicos eram tidos como "aproximaçoes" de casos clínicos reais.
RESULTADOS E DISCUSSAO
Considerando o gênero suspense policial e a semelhança do conteúdo dos filmes Instinto selvagem 219 e Mentes diabólicas20, eles foram unidos em uma só categoria para realizar a discussao, denominada de filmes judiciais. Diva21, por ser único título de gênero comédia dramática na amostra, será analisado à parte.
Filmes judiciais
Esta categoria surgiu após ter havido constataçao de que Instinto selvagem18 e Mentes diabólicas19 retratavam situaçoes similares: contexto de avaliaçao psicológica com fins judiciais e psicodinâmica dos sujeitos envolvidos no processo de avaliaçao psicológica. Em ambos, as sessoes com o clínico funcionam como um recurso para explicar os fatos, esclarecendo-os tanto para o profissional quanto para o espectador comum. No segundo desses filmes isso é ainda mais evidente, pois, com frequência, enquanto Alex narra os fatos a Sally, as cenas/imagens correspondentes ao discurso verbal sao exibidas.
Associadas ao esclarecimento da trama, outras duas características foram verificadas: os atendidos buscavam, por meio do processo psicodiagnóstico, convencer o clínico - e também o público - acerca de sua inocência. Esse movimento faz crer que tudo o que é falado nesse contexto é intencional, o que dificulta a identificaçao de MDs, que, como assinalado, sao recursos inconscientes.
A segunda característica diz respeito à conduta dos profissionais. Em ambos os filmes, os clínicos, envolvidos pelos atendidos, eram impelidos a investigar os crimes dos quais estes eram acusados. Em Mentes diabólicas, Sally, instigada e provocada pelo que Alex lhe diz e acreditando em sua versao, passa a buscar elementos que a confirmem. Glass, de Instinto selvagem 2, por sua vez, é atraído sexualmente por Catherine e envolvido em seu jogo de seduçao, mentiras e crimes.
Considerando o exposto até o momento sobre os filmes desta categoria, foi possível realizar uma análise global dos casos clínicos retratados. Assim, os mecanismos de intelectualizaçao e de atuaçao (acting out) foram identificados.
A intelectualizaçao, considerada defesa neurótica, ocorre quando a pessoa utiliza pensamentos abstratos de forma excessiva, a fim de evitar sentimentos difíceis e perturbadores3. Nessa defesa, os elementos cognitivos que representam a pulsao ou o afeto se mantêm conscientes, ainda que em termos generalizados ou impessoais, enquanto a qualidade das emoçoes é perdida. Trata-se de uma "estratégia cognitiva para minimizar a importância de problemas na vida afetiva" (p. 47)12.
A intelectualizaçao nao distorce os fatos ou motivos de experiências, mas os coloca em termos abstratos e retira suas qualidades afetivas. Deste modo, essa defesa "diminui a habilidade do ouvinte de se tornar empático com a experiência do sujeito" (p. 25)12.
É difícil lidar profissionalmente com pessoas que utilizam desse recurso defensivo. Na maioria das vezes, o sujeito responde às questoes com afirmaçoes gerais, utiliza a segunda e a terceira pessoa para discursar sobre seus sentimentos e para se referir a experiências pessoais, dirige a atençao para minúcias, faz questionamentos "científicos" e demonstra maior interesse em debatê-los. Todos esses comportamentos sao utilizados para evitar responder às questoes sobre seus sentimentos e reaçoes12.
Em Mentes diabólicas20, todas as tentativas de Sally de direcionar a entrevista com Alex - em busca de compreender o ponto de vista dele e seus sentimentos - sao prontamente rebatidas por outras perguntas, respostas gerais ou atribuiçao de fatos a terceiros. Como respostas gerais, pode-se identificar, entre outros exemplos, o momento em que Sally pergunta em que ele acredita e Alex diz: "Gestalt". Outra verbalizaçao que representa uma generalizaçao é quando esse personagem diz que o amigo conseguiu o que queria, "a eternidade", sem ter fornecido maiores explicaçoes.
Questionamentos "científicos" foram identificados diversas vezes no decorrer do filme. Além da Gestalt, Alex narra fatos históricos sobre a Igreja e o Vaticano e discorre sobre leituras de artigos científicos, sempre perguntando a opiniao de Sally. Esse personagem também questiona a profissional sobre assuntos relacionados ao seu próprio caso e sobre temas pessoais. A atribuiçao dos fatos a terceiros ocorre com frequência, evitando o desvelamento de si, diante de Sally. Na maioria das vezes, Alex atribui os acontecimentos ao colega falecido, Nigel. Quando Sally procura entender mais sobre sua história, Alex responde ter dito tudo aos policiais e pede que ela recorra a eles para obtençao de informaçoes dessa natureza. Em outro momento, o acusado faz referência a "eles", "os que nao querem ter seus segredos revelados". Como o atendido nao é muito esclarecedor em sua fala, Sally questiona:
Sally: Seu quarto foi desmontado.
Alex: Eles devem ter levado.
Sally: E quem sao eles?
Alex: Sao os que nao querem ter seus segredos revelados.
Sally: Segredos. Eles... nós... Eu escuto você e o que eu ganho? Você nao quer mesmo me dizer o que aconteceu. Eu só estou perdendo meu tempo. Só isso.20
Catherine, de Instinto selvagem 219, apresenta postura semelhante à de Alex. A diferença é que Catherine nao recorre a assuntos "científicos", porém respostas gerais e questionamentos ao profissional sao características identificadas na relaçao deles. Exemplos de respostas pouco esclarecedoras podem ser observados no seguinte trecho:
Glass: Diga algo de que tem medo.
Catherine: Tédio.
Glass: É por isso que gosta de se arriscar?
Catherine: Eu gosto de me arriscar.19
As perguntas direcionadas ao clínico também podem ser entendidas como maneiras de evitar falar sobre si mesma. Por vezes, Catherine responde a uma pergunta de Glass com outra, ou até mesmo faz observaçoes sobre ele, como se o estivesse analisando. Esse movimento dela é ilustrado em relatos verbais como os seguintes: "eu aposto que gosta de se arriscar, nao é, Dr. Glass?", "sabe do que gosto em você? Gosta de ter controle. Como eu"19.
Muitos comportamentos de Catherine se aproximam do mecanismo de acting out, também conhecido como agir e classificado como defesa imatura. Na atuaçao a pessoa age sem refletir ou considerar as consequências negativas de seus atos12. Essa é a maneira que ela encontra para lidar com conflitos emocionais e/ou divergências interpessoais. Por meio da açao a pessoa descarrega sentimentos e pulsoes, evitando assim a tensao causada pelo adiamento de sua satisfaçao ou pela reflexao "sobre os eventos dolorosos que os estimularam" (p. 5)12.
Apesar de a atuaçao envolver comportamentos socialmente inadequados ou autodestrutivos, ela nao é sinônima de mau comportamento12. Seu uso fica evidente por meio da relaçao dos chamados comportamentos de acting out, como brigas físicas, ou uso compulsivo de drogas, com afetos ou pulsoes que a pessoa nao é capaz de tolerar. A tensao e a ansiedade causadas pela pulsao original sao tao exacerbadas que quaisquer estratégias para lidar com ela sao suspensas pela pessoa. Assim, a açao nao é antecedida pelo pensar e geralmente "resulta na expressao de agressao crua, sexo, vinculaçao ou outras pulsoes sem consideraçao por quaisquer consequências" (p. 5)12.
O que torna necessário o processo de avaliaçao psicológica de Catherine é um acidente de carro no qual ela, durante uma relaçao sexual, dirigia em alta velocidade e sob o efeito de drogas. Durante as sessoes com o clínico, ela relata outros dois episódios de experiências sexuais diversificadas e que para ela denotaram experiências pouco ou nada significativas, e outro episódio em que dirigia perigosamente. O gosto por esse tipo de comportamento é expresso claramente por Catherine em determinado momento, quando diz a Glass que "gosta de se arriscar". Ou quando diz: "Nick dizia: 'a morte está sempre por perto'. É a única coisa real, com exceçao do sexo, às vezes". E ainda: "Eu transei com um cara ontem. Transamos durante horas. Nós fizemos de tudo [...]. Sabe, daqui a uma semana, acho que nem me lembrarei disso"19.
Outro indício do uso de acting out é a perda de controle durante a sessao e até mesmo a saída impulsiva da terapia, comportamentos que ocorrem devido a um desapontamento interpessoal e que trazem consequências negativas para as relaçoes da pessoa11. Catherine, ao sentir-se pressionada por Glass a responder determinadas perguntas, abandona imediatamente a sessao. Mais adiante, novamente sentindo-se pressionada, ela afronta o profissional, questionando-o, detalhadamente e em tom de afirmaçao, sobre a atraçao sexual dele para com ela. Em seguida, ela mesma encerra a sessao.
Em contraste ao que é apontado por Perry12, nao se verificou em Catherine o retorno da capacidade de reflexao e da culpa, após os comportamentos de acting out. Esse autor ressalta que, quando isso nao ocorre, pode ser que outra defesa, como a negaçao ou a racionalizaçao, possa estar em uso. No caso da personagem em questao, pelo que foi assinalado anteriormente, acredita-se que a intelectualizaçao assuma esse papel.
Diva
Diva, ao contrário dos filmes judiciais relatados, permite o acompanhamento de um processo clínico de longa duraçao (aproximadamente três anos de análise). Essa característica favoreceu a identificaçao da dinâmica defensiva da protagonista.
Mercedes inicia seu processo analítico sem conhecimentos sobre como agir nessa situaçao, nova para ela. Titubeia e até começa a se levantar do diva, em direçao à saída do consultório:
É o seguinte, Lopes, eu acho que eu me precipitei. Talvez eu nao seja um caso tao sério, um caso de análise, porque eu nao sou depressiva, eu nao tenho síndrome do pânico, eu nao sou viciada em droga, nem cleptomaníaca. Posso falar a verdade? Eu nem sequer tô triste.21
A gente sempre ouve aquela história, nao é? Que cada um de nós é a metade de uma laranja e que a vida só tem sentido quando a gente encontra a outra metade. Eu nao conheço ninguém que sonha em ser uma laranja. O senhor já perguntou pra alguém qual o seu maior sonho? E ele respondeu: ser uma laranja inteira?21
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