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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2016; 18(2):50-66



Artigos Originais

Casos clínicos retratados no cinema: estudo de processos defensivos

Clinical cases portrayed in the cinema: study of the defensive processes

Tales Vilela Santeiro1; Leylane Franco Leal Barboza2; Ludimila Faria Souza3

Resumo

O termo "mecanismos de defesa" surge com Sigmund Freud em 1894, mas é Anna Freud quem dedica maior atençao a esse tema, sistematizando-o inicialmente. Ele designa recursos internos utilizados pela pessoa, através dos quais é possível averiguar o psicodinamismo e o nível de seu amadurecimento psíquico. Para além de eventuais aspectos patológicos associados, processos defensivos sao utilizados por todas as pessoas, visando proteger o Ego de ideias ou afetos dolorosos. O objetivo geral do trabalho foi analisar representaçoes de mecanismos defensivos utilizados por atendidos em processos clínicos, em filmes comerciais. A amostra foi composta por seleçao de duas produçoes estrangeiras, Mentes diabólicas (Austrália e Reino Unido) e Instinto selvagem 2 (EUA), e uma brasileira, Diva. Nas encenaçoes estrangeiras, dois filmes de suspense policial envolvendo situaçoes judiciais, cujos protagonistas eram suspeitos criminosos e submetidos a processos de avaliaçao psicológica, intelectualizaçao e atuaçao (acting out) foram mecanismos observados. Na produçao nacional, uma comédia dramática focada num processo psicanalítico com duraçao de três anos e realizada de modo voluntário, a visualizaçao do espectro de defesas imaturo-maduras foi facilitada, sendo elas negaçao, racionalizaçao, isolamento afetivo, sublimaçao e humor. Personagens sob suspeita criminal apresentaram processos defensivos menos desenvolvidos, quando comparados à diversidade de defesas constatada nas manifestaçoes da personagem do filme brasileiro. As produçoes analisadas favoreceram reflexoes e aprendizados sobre teorias fundamentais acerca de processos defensivos de atendidos em processos clínicos, resguardas as limitaçoes envolvidas nas aproximaçoes que podem ser feitas entre a linguagem fílmica e os processos formativos de orientaçao psicanalítica.

Descritores: Cinema como assunto. Mecanismos de defesa. Psicologia clínica. Teoria psicanalítica.

Abstract

The term "defense mechanisms" comes up with is brought up by Sigmund Freud in 1894, but it is Anna Freud who pays greater attention to this topic, systematizing it initially. It refers to internal resources used by the person, through which it is possible to ascertain the psycho-dynamism and the level of his mental maturity. In addition to any pathological aspects, defensive processes are used by all people, to protect the Ego from painful ideas or feelings. The overall objective of the study was to analyze defense mechanisms of representations used by people assisted in clinical processes in commercial movies. The sample consisted of a selection of two foreign productions, Diabolical minds/Like minds (Australia and UK) and Basic instinct 2 (USA), and a Brazilian movie, Diva. In the foreign performances, two police thrillers involving legal situations whose protagonists were suspected of having committed crimes and undergoing psychological evaluation processes, intellectualization and acting out were the observed mechanisms. In the domestic production, a dramatic comedy focused on a psychoanalytic process lasting three years and performed on a voluntary basis, the visualization of the immature-mature defenses spectrum was facilitated, and they negation, rationalization, emotional isolation, sublimation and mood. Characters under criminal suspects suspicion had less developed defensive processes compared to the defense of diversity found in the manifestations of the Brazilian movie character. The productions analyzed fostered reflections and learnings about basic theories of defensive processes, considering the limitations involved in approaches that can be made between the cinematic language and the formation processes in psychoanalytic settings.

Keywords: Defense mechanisms; Motion pictures as topic; Psychology, clinical; Psychoanalytic theory.

 

 

INTRODUÇAO

Este trabalho visa analisar o uso de mecanismos de defesa do Ego (MDs) em personagens fílmicos atendidos por psicanalistas e psicoterapeutas (clínicos). É sabido que MDs sao utilizados por todos - de diferentes maneiras e em diferentes medidas - e que representam o dinamismo e o nível de amadurecimento psíquico das pessoas. Pretende-se, dessa forma, contribuir para a formaçao de clínicos e salientar a importância que o uso da linguagem dos filmes pode ter nesse processo, exemplificando aspectos teórico-técnicos de orientaçao psicanalítica.

A palavra defesa surgiu pela primeira vez na teoria psicanalítica em 1894, na obra As neuropsicoses de defesa, de Sigmund Freud, a fim de "descrever a luta do Ego contra ideias ou afetos dolorosos ou insuportáveis" (p. 36)1. Ela foi utilizada para se referir às manifestaçoes que visam proteger o Eu das agressoes internas (pulsoes) e também das externas2.

Ao longo do desenvolvimento da teoria psicanalítica houve períodos em que "o estudo teórico do ego individual foi nitidamente impopular" (p. 3)1. O valor do trabalho científico e terapêutico era visto, pelos analistas, como proporcional à profundidade das camadas psíquicas para as quais a atençao era voltada. Por essa via, o termo psicanálise deveria ser reservado às "novas descobertas relativas à vida psíquica inconsciente" (p. 3)1.

Apesar de reconhecer a existência de outros MDs, Freud dedicou maior atençao à repressao, chegando a utilizar esse termo em substituiçao ao conceito de defesa durante certo período, próprio dos desenvolvimentos iniciais de suas proposiçoes teóricas (teoria do trauma rumo à teoria topográfica). Porém, mais tarde, na medida em que os estudos o levaram a revisoes (teoria estrutural), reconheceu a existência da repressao e dos MDs, diferenciando-os. Por conseguinte, ampliou a noçao de MD3,4.

Todos os MDs visam à diminuiçao da tensao interior, causada por estímulos/excitaçoes excessivos e interpretados como culpa ou angústia. Por meio das defesas, o Ego evita o reconhecimento da tensao, mantendo-a fora da consciência. Assim, é possível constatar que os meios de defesa dos quais o Ego se utiliza sao inconscientes e têm funçao importante na vida de cada pessoa5. Entretanto, cabe observar que o uso inadequado desses recursos pode afetar negativamente o funcionamento egoico, favorecendo o desenvolvimento de transtornos psicológicos6.

A obra O ego e os mecanismos de defesa1 constituiu-se num marco da teoria psicanalítica. Nela, Anna Freud aprofundou os estudos anteriores de Sigmund Freud e descreveu detalhadamente alguns MDs3.

Para Anna Freud, o objetivo da análise era conhecer o quanto fosse possível as três instâncias psíquicas - Id, Ego e Superego - sem dar prioridade a uma ou outra, a fim de compreender suas relaçoes com o mundo externo. Essas instâncias variavam em seu grau de acessibilidade à informaçao. Destarte, o Id nao poderia ser diretamente acessado sob nenhuma condiçao. O conhecimento sobre essa instância psíquica seria viável apenas através de derivativos que abrissem caminho e se apresentassem nos sistemas pré-consciente e consciente1.

O conteúdo do Superego, por sua vez, era compreendido como, majoritariamente, consciente e poderia ser acessado de maneira direta. Entretanto, quando as relaçoes entre Ego e Superego fossem harmoniosas, seria possível afirmar que os dois coincidiriam, havendo a impossibilidade, tanto do sujeito quanto de um observador externo, de perceber o Superego como instância separada. O conteúdo superegoico se tornaria claro quando este enfrentasse o Ego. Por esse motivo, Anna Freud afirmou que o Ego se constituiria no campo adequado de observaçao da dinâmica psíquica1.

No Id predominariam os processos primários, nao havendo organizaçao rígida de ideias e afetos; nele imperaria a obtençao de prazer como princípio. No Ego ocorreriam os processos secundários, isto é, as ideias eram submetidas a condiçoes rigorosas. Nao obstante, as pulsoes se confrontariam com os imperativos da realidade, devendo se adequar às leis éticas e morais por meio das quais o Superego buscaria controlar o comportamento. Assim, uma espécie de luta entre essas diversas instâncias psíquicas seria travada, na qual as pulsoes instintivas do Id insistiriam em entrar no Ego, enquanto este utilizaria medidas defensivas para colocar os instintos fora de açao1.

Resguardadas essas fundamentaçoes teóricas que tentam explicar fundamentos da psicodinâmica defensiva, cabe observar que o conjunto dos diversos tipos de defesa apresentados pelas pessoas tem sido designado como MD1,7 e/ou como processos defensivos8. O uso deste último tem sido adotado como forma de evitar a propagaçao de vertentes teóricas que considerariam defesas alinhadas a concepçoes "psicopatológicas" e que as entendem de modo integrado ao estilo pessoal de lidar com situaçoes conflituosas que geram angústia. Neste texto, ambas as expressoes serao utilizadas, embora o sentido da última seja considerado mais produtivo do ponto de vista da compreensao psicodinâmica do ser humano de modo geral, e nao necessariamente de um ser humano adoecido.


CLASSIFICAÇAO DOS MECANISMOS DE DEFESA

Em sua obra, Anna Freud citou dez MDs1. Relacionados ao estudo das neuroses, eles eram nove: regressao, repressao, formaçao de reaçao, isolamento, anulaçao, projeçao, introjeçao, reversao e, por fim, inversao contra o eu (em McWilliams [2014] este último processo foi traduzido como "virando-se contra o self"). Ela acrescentou a estes, ainda, um décimo mecanismo: a sublimaçao, que estaria mais alinhado ao estudo da mente normal.

Mais recentemente, as defesas podem ser classificadas de acordo com diferentes critérios, tais como a fase libidinal em que surgem, como simples ou complexos, segundo determinada psicopatologia etc.9 A classificaçao hierárquica, que vai da defesa mais imatura ou patológica até a mais madura ou saudável, tem sido utilizada com frequência3. Nao obstante, um perfil dos mecanismos utilizados pelo sujeito é um bom indicador de sua saúde psicológica3,8.

Tendo em vista os objetivos deste trabalho, teorizaçoes sobre modos de compreender o psicodinamismo psíquico sao consideradas úteis, na medida em que elas podem contribuir para a análise da retrataçao de pessoas atendidas por clínicos em filmes comerciais, e também porque elas mantêm sua vitalidade e atualidade clínicas, por exemplo, para auxiliar o clínico psicodinamicamente orientado a realizar diagnósticos de caráter8.

Dada a complexidade teórica subjacente ao exercício de identificar processos defensivos em personagens fílmicos proposto neste estudo, releituras feitas por autores de obras didáticas10,11,12 serao consideradas em conjunto com autores antes mencionados. Nesse sentido, a ordenaçao teórica pode ser feita a partir de três grandes agrupamentos dos processos defensivos: os imaturos, os neuróticos e os maduros9, ou, ainda, primitivos, neuróticos e maduros3.

As defesas imaturas ou primitivas envolvem distorçao da imagem de si mesmo e de outrem e podem ser utilizadas para regular a autoestima. Nelas, pulsoes, afetos e ideias dolorosos ou inaceitáveis sao mantidos fora da consciência e atribuídos incorretamente a causas externas. Geralmente sao utilizadas por pessoas que apresentam comportamentos socialmente indesejáveis ou que se sentem ameaçadas pela intimidade interpessoal. Nesse tipo de defesa a projeçao, a atuaçao, a negaçao, a cisao e a somatizaçao seriam exemplares9.

Nos processos defensivos neuróticos as ideias, sentimentos e desejos considerados ameaçadores também sao mantidos fora da consciência. No entanto, eles "alteram afetos, sentimentos internos ou expressao dos instintos, fazendo que a pessoa pareça estar sempre às voltas com suas preocupaçoes pessoais e seus problemas insolúveis" (p. 27)9. A intelectualizaçao, a racionalizaçao e a introjeçao seriam modelos a serem considerados.

As defesas maduras, por sua vez, sao aquelas consideradas adaptativas, pois conseguem, ao mesmo tempo, satisfazer a pulsao e manter na consciência os sentimentos, ideias e afetos. A sublimaçao e o humor (este último nao contemplado na obra de Anna Freud1) seriam possibilidades desses tipos de processos defensivos. Os MDs observados nos personagens fílmicos serao retomados ao longo das discussoes, a título de aprofundamento teórico dessas consideraçoes iniciais.

Considerando esses norteadores teóricos fundamentais, portanto, neste trabalho será investigado como e quais MDs sao utilizados por pessoas atendidas por clínicos, em filmes comerciais. Esse exercício é possível em especial se o leitor entender que a linguagem dos filmes representa, entre inúmeras possibilidades de relaçoes profissionais, as de clínicos com seus atendidos, e que isso ocorre de modo mais ou menos verossímil.

Nessa medida, encenaçoes fílmicas podem ser úteis para elucidar práticas e dinâmicas psíquicas e permitem ampliá-las no processo de formaçao de clínicos, por meio de linguagem própria13. Além do mais, a análise e o uso de filmes têm sido um recurso didático usual entre psicanalistas, psiquiatras e clínicos de orientaçao psicanalítica14,15,16,17,18.


MÉTODO

Material: três filmes comerciais que retratavam processos clínicos. Neles a relaçao atendido-clínico era central no argumento geral do filme, em encenaçoes e expressoes verbais de personagens.

Filme 1: Instinto selvagem 219 é um suspense policial de produçao estadunidense protagonizado por Catherine Tramell, famosa escritora de suspenses. Ele se inicia com a misteriosa morte de um astro do esporte em um acidente automobilístico, situaçao em que Catherine esteve envolvida. A protagonista passa a ser considerada suspeita e, por designaçao da Justiça, se submete a avaliaçao psiquiátrica com o psicanalista Dr. Glass.

Filme 2: Mentes diabólicas20, coproduçao britânico-australiana, é um suspense policial que conta a história de Alex Bennett, um jovem acusado da morte do colega de escola, Nigel Colby. Sally Rowe, uma psicóloga forense, deve avaliá-lo a fim de concluir se ele é ou nao culpado pelo crime.

Filme 3: Diva21 é produçao brasileira classificada como comédia dramática. Mercedes, a protagonista, é uma mulher de meia idade, professora de matemática, artista plástica, casada e mae de dois filhos. Ela procura Dr. Lopes, psicanalista, em meio à crise no casamento e a um processo de reavaliaçao da vida.

Equipe: para análise e discussao clínica do material, o grupo de pesquisa contou com três integrantes: duas estudantes de 5º ano de curso de Psicologia, matriculadas em disciplinas e estágios clínicos com ênfase teórica psicanalítica; e um professor-supervisor, pesquisador atuante em processos clínicos de orientaçao psicanalítica há 17 anos.

Procedimentos: primeiramente, filmes comerciais que retratassem a relaçao clínico-atendido, em processos individuais, lançados de 2000 até 2014, foram buscados. O parâmetro temporal correspondeu, por conseguinte, a 15 anos de produçoes fílmicas, considerado suficiente para as finalidades da pesquisa, o que também evitaria a retomada de obras fílmicas, lançadas em momentos anteriores ao período estipulado, tratadas em outros estudos22,23,24,25.

Palavras-chave como psiquiatria, psicologia, psicólogo, psiquiatra, psicoterapeuta, clínica e psicoterapia foram cruzadas com filme e cinema, em buscas realizadas em bases de dados especializadas em vendas e em divulgaçao de filmes (Netflix, Adorocinema, Cinepop). Nao houve restriçoes quanto à nacionalidade ou o padrao das produçoes (blockbusters foram considerados tanto quanto produçoes independentes)13.

Essa busca inicial resultou em 22 obras. Todas elas foram assistidas e posteriormente discutidas em supervisao. Filmes cujo tempo de duraçao das cenas de atendimento clínico eram de poucos minutos e/ou que apresentavam processos clínicos de modo periférico no roteiro foram excluídos da amostra, uma vez que isso dificultaria ou inviabilizaria a identificaçao e a análise pretendida das manifestaçoes verbais dos atendidos.

A partir desses critérios, 18 filmes que retratavam processos clínicos (psicoterapêuticos e outros procedimentos clínicos) foram excluídos da amostra26,27,28,29,30,31,32,33,34,35,36,37,38,39,40,41,42,43,44. No limite do silêncio26, por exemplo, acompanha o drama de Michael Hunter, um psicólogo arrasado após o suicídio de seu primogênito. A tragédia o faz abandonar a atuaçao clínica e ele se torna escritor. Alguns anos depois, Hunter reluta ao ser convidado a tratar do caso de um adolescente prestes a sair de um orfanato. Ele decide apenas conhecer o garoto, sem a garantia de que irá assumir o caso. A semelhança com o filho falecido faz com que ele se envolva e passe a visitar o garoto frequentemente. Contudo, a relaçao entre os dois se aproxima mais de uma relaçao de amizade e proteçao, em oposiçao a uma profissional propriamente dita.

De modo semelhante, Sem reservas39 apresenta a protagonista Kate como atendida, uma competente e dedicada chef. Porém, o processo dela, no caso em tela psicoterapêutico, é pouco explorado no decorrer do filme, consistindo em raras e rápidas cenas de Kate no consultório. Por fim, Correndo com tesouras44, embora tenha a psicoterapia como um tema central, foi retirado da amostra porque ele focava tratamento medicamentoso aliado à intervençao psicoterapêutica, característica essa que o distinguia do restante dos títulos. Essa medida implicou a exclusao desse 19º título.

Assim, a amostra final utilizada neste trabalho consistiu de três filmes. Eles foram assistidos plano a plano13 e repetidas vezes, e as sessoes clínicas encenadas passaram por processo de transcriçao literal, momento no qual, no caso das produçoes estrangeiras, o texto da legendagem em português foi considerado. Esse material fundamentou as análises e as discussoes sobre possíveis processos defensivos utilizados pelos personagens, as quais ocorriam entre os autores em sessoes de supervisao clínica, cenário no qual os conteúdos fílmicos eram tidos como "aproximaçoes" de casos clínicos reais.


RESULTADOS E DISCUSSAO

Considerando o gênero suspense policial e a semelhança do conteúdo dos filmes Instinto selvagem 219 e Mentes diabólicas20, eles foram unidos em uma só categoria para realizar a discussao, denominada de filmes judiciais. Diva21, por ser único título de gênero comédia dramática na amostra, será analisado à parte.

Filmes judiciais

Esta categoria surgiu após ter havido constataçao de que Instinto selvagem18 e Mentes diabólicas19 retratavam situaçoes similares: contexto de avaliaçao psicológica com fins judiciais e psicodinâmica dos sujeitos envolvidos no processo de avaliaçao psicológica. Em ambos, as sessoes com o clínico funcionam como um recurso para explicar os fatos, esclarecendo-os tanto para o profissional quanto para o espectador comum. No segundo desses filmes isso é ainda mais evidente, pois, com frequência, enquanto Alex narra os fatos a Sally, as cenas/imagens correspondentes ao discurso verbal sao exibidas.

Associadas ao esclarecimento da trama, outras duas características foram verificadas: os atendidos buscavam, por meio do processo psicodiagnóstico, convencer o clínico - e também o público - acerca de sua inocência. Esse movimento faz crer que tudo o que é falado nesse contexto é intencional, o que dificulta a identificaçao de MDs, que, como assinalado, sao recursos inconscientes.

A segunda característica diz respeito à conduta dos profissionais. Em ambos os filmes, os clínicos, envolvidos pelos atendidos, eram impelidos a investigar os crimes dos quais estes eram acusados. Em Mentes diabólicas, Sally, instigada e provocada pelo que Alex lhe diz e acreditando em sua versao, passa a buscar elementos que a confirmem. Glass, de Instinto selvagem 2, por sua vez, é atraído sexualmente por Catherine e envolvido em seu jogo de seduçao, mentiras e crimes.

Considerando o exposto até o momento sobre os filmes desta categoria, foi possível realizar uma análise global dos casos clínicos retratados. Assim, os mecanismos de intelectualizaçao e de atuaçao (acting out) foram identificados.

A intelectualizaçao, considerada defesa neurótica, ocorre quando a pessoa utiliza pensamentos abstratos de forma excessiva, a fim de evitar sentimentos difíceis e perturbadores3. Nessa defesa, os elementos cognitivos que representam a pulsao ou o afeto se mantêm conscientes, ainda que em termos generalizados ou impessoais, enquanto a qualidade das emoçoes é perdida. Trata-se de uma "estratégia cognitiva para minimizar a importância de problemas na vida afetiva" (p. 47)12.

A intelectualizaçao nao distorce os fatos ou motivos de experiências, mas os coloca em termos abstratos e retira suas qualidades afetivas. Deste modo, essa defesa "diminui a habilidade do ouvinte de se tornar empático com a experiência do sujeito" (p. 25)12.

É difícil lidar profissionalmente com pessoas que utilizam desse recurso defensivo. Na maioria das vezes, o sujeito responde às questoes com afirmaçoes gerais, utiliza a segunda e a terceira pessoa para discursar sobre seus sentimentos e para se referir a experiências pessoais, dirige a atençao para minúcias, faz questionamentos "científicos" e demonstra maior interesse em debatê-los. Todos esses comportamentos sao utilizados para evitar responder às questoes sobre seus sentimentos e reaçoes12.

Em Mentes diabólicas20, todas as tentativas de Sally de direcionar a entrevista com Alex - em busca de compreender o ponto de vista dele e seus sentimentos - sao prontamente rebatidas por outras perguntas, respostas gerais ou atribuiçao de fatos a terceiros. Como respostas gerais, pode-se identificar, entre outros exemplos, o momento em que Sally pergunta em que ele acredita e Alex diz: "Gestalt". Outra verbalizaçao que representa uma generalizaçao é quando esse personagem diz que o amigo conseguiu o que queria, "a eternidade", sem ter fornecido maiores explicaçoes.

Questionamentos "científicos" foram identificados diversas vezes no decorrer do filme. Além da Gestalt, Alex narra fatos históricos sobre a Igreja e o Vaticano e discorre sobre leituras de artigos científicos, sempre perguntando a opiniao de Sally. Esse personagem também questiona a profissional sobre assuntos relacionados ao seu próprio caso e sobre temas pessoais. A atribuiçao dos fatos a terceiros ocorre com frequência, evitando o desvelamento de si, diante de Sally. Na maioria das vezes, Alex atribui os acontecimentos ao colega falecido, Nigel. Quando Sally procura entender mais sobre sua história, Alex responde ter dito tudo aos policiais e pede que ela recorra a eles para obtençao de informaçoes dessa natureza. Em outro momento, o acusado faz referência a "eles", "os que nao querem ter seus segredos revelados". Como o atendido nao é muito esclarecedor em sua fala, Sally questiona:

Sally: Seu quarto foi desmontado.

Alex: Eles devem ter levado.

Sally: E quem sao eles?

Alex: Sao os que nao querem ter seus segredos revelados.

Sally: Segredos. Eles... nós... Eu escuto você e o que eu ganho? Você nao quer mesmo me dizer o que aconteceu. Eu só estou perdendo meu tempo. Só isso.20

Catherine, de Instinto selvagem 219, apresenta postura semelhante à de Alex. A diferença é que Catherine nao recorre a assuntos "científicos", porém respostas gerais e questionamentos ao profissional sao características identificadas na relaçao deles. Exemplos de respostas pouco esclarecedoras podem ser observados no seguinte trecho:

Glass: Diga algo de que tem medo.

Catherine: Tédio.

Glass: É por isso que gosta de se arriscar?

Catherine: Eu gosto de me arriscar.19

As perguntas direcionadas ao clínico também podem ser entendidas como maneiras de evitar falar sobre si mesma. Por vezes, Catherine responde a uma pergunta de Glass com outra, ou até mesmo faz observaçoes sobre ele, como se o estivesse analisando. Esse movimento dela é ilustrado em relatos verbais como os seguintes: "eu aposto que gosta de se arriscar, nao é, Dr. Glass?", "sabe do que gosto em você? Gosta de ter controle. Como eu"19.

Muitos comportamentos de Catherine se aproximam do mecanismo de acting out, também conhecido como agir e classificado como defesa imatura. Na atuaçao a pessoa age sem refletir ou considerar as consequências negativas de seus atos12. Essa é a maneira que ela encontra para lidar com conflitos emocionais e/ou divergências interpessoais. Por meio da açao a pessoa descarrega sentimentos e pulsoes, evitando assim a tensao causada pelo adiamento de sua satisfaçao ou pela reflexao "sobre os eventos dolorosos que os estimularam" (p. 5)12.

Apesar de a atuaçao envolver comportamentos socialmente inadequados ou autodestrutivos, ela nao é sinônima de mau comportamento12. Seu uso fica evidente por meio da relaçao dos chamados comportamentos de acting out, como brigas físicas, ou uso compulsivo de drogas, com afetos ou pulsoes que a pessoa nao é capaz de tolerar. A tensao e a ansiedade causadas pela pulsao original sao tao exacerbadas que quaisquer estratégias para lidar com ela sao suspensas pela pessoa. Assim, a açao nao é antecedida pelo pensar e geralmente "resulta na expressao de agressao crua, sexo, vinculaçao ou outras pulsoes sem consideraçao por quaisquer consequências" (p. 5)12.

O que torna necessário o processo de avaliaçao psicológica de Catherine é um acidente de carro no qual ela, durante uma relaçao sexual, dirigia em alta velocidade e sob o efeito de drogas. Durante as sessoes com o clínico, ela relata outros dois episódios de experiências sexuais diversificadas e que para ela denotaram experiências pouco ou nada significativas, e outro episódio em que dirigia perigosamente. O gosto por esse tipo de comportamento é expresso claramente por Catherine em determinado momento, quando diz a Glass que "gosta de se arriscar". Ou quando diz: "Nick dizia: 'a morte está sempre por perto'. É a única coisa real, com exceçao do sexo, às vezes". E ainda: "Eu transei com um cara ontem. Transamos durante horas. Nós fizemos de tudo [...]. Sabe, daqui a uma semana, acho que nem me lembrarei disso"19.

Outro indício do uso de acting out é a perda de controle durante a sessao e até mesmo a saída impulsiva da terapia, comportamentos que ocorrem devido a um desapontamento interpessoal e que trazem consequências negativas para as relaçoes da pessoa11. Catherine, ao sentir-se pressionada por Glass a responder determinadas perguntas, abandona imediatamente a sessao. Mais adiante, novamente sentindo-se pressionada, ela afronta o profissional, questionando-o, detalhadamente e em tom de afirmaçao, sobre a atraçao sexual dele para com ela. Em seguida, ela mesma encerra a sessao.

Em contraste ao que é apontado por Perry12, nao se verificou em Catherine o retorno da capacidade de reflexao e da culpa, após os comportamentos de acting out. Esse autor ressalta que, quando isso nao ocorre, pode ser que outra defesa, como a negaçao ou a racionalizaçao, possa estar em uso. No caso da personagem em questao, pelo que foi assinalado anteriormente, acredita-se que a intelectualizaçao assuma esse papel.

Diva

Diva
, ao contrário dos filmes judiciais relatados, permite o acompanhamento de um processo clínico de longa duraçao (aproximadamente três anos de análise). Essa característica favoreceu a identificaçao da dinâmica defensiva da protagonista.

Mercedes inicia seu processo analítico sem conhecimentos sobre como agir nessa situaçao, nova para ela. Titubeia e até começa a se levantar do diva, em direçao à saída do consultório:

É o seguinte, Lopes, eu acho que eu me precipitei. Talvez eu nao seja um caso tao sério, um caso de análise, porque eu nao sou depressiva, eu nao tenho síndrome do pânico, eu nao sou viciada em droga, nem cleptomaníaca. Posso falar a verdade? Eu nem sequer tô triste.21

Através dessa vinheta, o uso da negaçao pela protagonista foi percebido. Considerada uma defesa primitiva3, ela consiste em evitar a percepçao de aspectos dolorosos da realidade externa que sao aparentes para os outros9,12. Mercedes faz uso desse mecanismo em outros momentos do filme, por exemplo, quando narra que seu casamento nao está em crise ou que seus estudantes a adoram, ao passo que as imagens cinematográficas retratam o oposto. Cabe observar que a negaçao impede quem a utiliza de reconhecer sentimentos, desejos e intençoes. Com o uso dela a pessoa evita a tomada de consciência de fatos psíquicos que poderiam trazer consequências negativas para si mesma12.

A racionalizaçao, também classificada como defesa primitiva, ocorre quando a pessoa utiliza explicaçoes racionais para justificar atitudes, comportamentos e crenças geralmente inaceitáveis3. Explicaçoes para o próprio comportamento, ou de outrem, sao inventadas a fim de o sujeito poder se reassegurar de tudo aquilo em que "quer/precisa" acreditar. O motivo que leva à utilizaçao dessa defesa é de difícil reconhecimento para quem a utiliza, mas evidente para o observador externo12. Isso ocorre quando Mercedes, em conversa com sua amiga Mônica, trata um possível caso extraconjugal do marido com suspeita naturalidade: "[...] significa que de vez em quando ele sai com outra mulher, só isso. [...] Acho tao cafona desconfiar de marido. O Gustavo nao é meu, ele só faz parte da minha vida. [...] Nao me dói nadinha pensar que o Gustavo tem outra ..."21

Noutro momento Mercedes relata brevemente a morte da mae a Lopes, contando que a perdeu ainda em criança: "Se sofrer era tudo o que esperavam de mim, eu surpreendi sendo madura antes da hora e evitando dar trabalho para o meu pai. Naquele dia eu nao chorei pela minha mae. E depois daquele dia eu nao chorei por mais ninguém". Esse assunto é frequentemente retomado pelo analista, ainda que de forma subentendida, uma vez que suas verbalizaçoes nao sao explicitadas no filme. Sempre que é questionada sobre isso, Mercedes muda de assunto e mostra-se bastante incomodada, exclamando em tom exasperado: "Que que tem minha mae? Ai, toda sessao, minha mae, minha mae. Deixa minha mae pra lá. Esquece a minha mae"21.

O comportamento relacionado à perda materna precoce pode ser entendido como negaçao, mas também como isolamento afetivo, uma defesa neurótica mais elaborada3. Nessa operaçao defensiva conexoes/relaçoes sao desfeitas a fim de poupar a pessoa de emoçoes e pulsoes que acarretem ansiedade11. A pessoa que recorre a essa defesa se mantém consciente dos elementos cognitivos, sendo capaz de descrevê-los - como feito por Mercedes -, entretanto perde contato com os sentimentos associados à respectiva ideia12. A narraçao que a protagonista faz sobre o falecimento da mae esclarece que ela nao se permitiu elaborar esse luto, numa acepçao ampla do termo.

Como defesas mais elaboradas, em Mercedes o humor e a sublimaçao podem ser identificados. O humor é um recurso bastante utilizado pela personagem, seja no setting terapêutico ou em momentos corriqueiros, o que também parece se associar ao gênero do filme (comédia). Nessa defesa o sujeito encontra ou enfatiza elementos cômicos ou irônicos dos conflitos ou estressores, visando reduzir afetos desagradáveis3,12. Como exemplo desse recurso, o momento no qual Mercedes fala sobre seu casamento para Lopes é citado:

A gente sempre ouve aquela história, nao é? Que cada um de nós é a metade de uma laranja e que a vida só tem sentido quando a gente encontra a outra metade. Eu nao conheço ninguém que sonha em ser uma laranja. O senhor já perguntou pra alguém qual o seu maior sonho? E ele respondeu: ser uma laranja inteira?21

A sublimaçao pode ser ilustrada quando Mercedes diz que as artes plásticas sao sua verdadeira vocaçao. O termo sublimaçao foi usado por Sigmund Freud pela primeira vez em 1905, para definir "um tipo particular de atividade humana" (p. 734)2 sem relaçao aparente com a sexualidade, mas que só é possível através da força da pulsao sexual. Em toda sua obra, ele associou a sublimaçao ao fenômeno da criaçao intelectual e artística2. Nesse modo de defesa a pulsao original é dessexualizada e seu alvo e/ou objeto é convertido para canais socialmente aceitos e valorizados, como, por exemplo, atividades artísticas, literárias e intelectuais.

O filme se inicia com Mercedes falando sobre suas pinturas: "Quando eu pinto os meus quadros eu nao penso em ser uma celebridade. Minha pintura é pra dar contorno no que em mim fica solto e nao se enquadra"21. O enquadre citado pela personagem vai ao encontro da definiçao de sublimaçao como promotora da transformaçao de "objetos socialmente ou internamente inaceitáveis em outros socialmente aceitáveis" (p. 39)3. A importância dessa defesa é novamente destacada ao término de seu processo de análise, quando Mercedes diz: "[...] tô adorando os quadros que eu tô fazendo. É... Tá sendo uma terapia pra mim"21.


CONSIDERAÇOES FINAIS

Todos utilizam MDs, e eles revelam muito sobre quem deles faz uso3,8. As análises realizadas neste trabalho corroboram essa colocaçao e procuraram evidenciar a contribuiçao da linguagem fílmica para o processo de formaçao de clínicos psicanaliticamente orientados, desde que se pondere sobre as personagens dos filmes comerciais espelharem aspectos da realidade comum, porque a ficçao é um produto da criaçao humana. Tal contribuiçao tem sido notada em vários outros trabalhos, de diferentes autores e com ênfases diversas14,15,16,22,23,24,25.

Como os filmes analisados eram comerciais, é importante considerar a limitaçao referente à análise propriamente dita, à identificaçao dos dados e às circunstâncias a que se propôs analisar a princípio: casos clínicos foram substituídos por casos fílmicos e nao se buscou torná-los simétricos com essa medida. Isso ocorre porque o cinema é produzido a fim de atingir e entreter um grande público13.

Por razoes como essas, desejar a existência de películas cuidadosamente pensadas e articuladas a determinadas teorias e práticas profissionais, sejam clínicas ou nao, é algo utópico e até mesmo limitante. Utópico porque os filmes nao sao feitos para servirem de objeto de análises científicas - embora possam sê-lo e venham sendo. Limitante porque nao permitiria a estudantes e clínicos se apropriarem desse recurso artístico e interpretá-lo subjetivamente, para entao refletir, elaborar, apreender e, por fim, ampliar e/ou solidificar um conhecimento adquirido. Assim, a proposta de analisar filmes comporta dificuldades e riscos.

Quanto à identificaçao dos MDs, dificuldades para discerni-los foram encontradas. Isso ocorreu devido à diversidade de defesas descritas na literatura, bem como à semelhança entre algumas delas. As atividades do Ego sao complexas e se inter-relacionam, o que tolhe "qualquer tentativa de simplificar o estudo dos mecanismos de defesa" (p. 99)10.

Outro complicador observado foi a sobreposiçao de mecanismos. Geralmente eles sao empregados em conjunto, tendo, em alguns casos, um ou dois mecanismos como os principais10. O comportamento sexualizado observado em certas encenaçoes das personagens Catherine e Mercedes, em especial o da primeira, poderia ser debatido à luz do MD sexualizaçao. Este, para Gabbard3, por exemplo, seria alinhado a uma defesa de nível superior (neurótica), e para McWilliams8, ao grupo de defesas mais primitivas.

O contraste entre os filmes judiciais e Diva evidenciou pontos importantes, tais como as imagens dos clínicos e o perfil dos atendidos. Nos filmes do gênero suspense/policial, os clínicos sao tidos como figuras influenciáveis, completamente sujeitas às narrativas dos atendidos e, numa acepçao pejorativa, assumem posturas investigativas e/ou envolvem-se sexual e afetivamente com eles. Ferem princípios normativos e filosóficos que embasam profissoes que lidam com a saúde mental das pessoas e, em especial, as que se orientam pelo modelo psicanalítico de homem.

Nesse sentido, outra limitaçao embutida nas análises dos filmes selecionados consiste na eventual estigmatizaçao dos clínicos e da atividade clínica que eles podem provocar. Este trabalho consolida relatos de Heidemann et al.17, quando afirmam que os profissionais costumam ser retratados em filmes como criminosos, antiéticos, sedutores e sádicos. O fato de essa ser uma situaçao recorrente na indústria cinematográfica pode contribuir para o descrédito da profissao, uma vez que grande parte do público leigo desconhece como funciona um processo clínico (psicoterapêutico ou nao), com exceçao reservada aos que o frequentaram em algum momento de suas vidas, ou que possuem pessoas de seu círculo de convívio que o fizeram.

A distinçao de categorias de análise fílmica foi útil na observaçao do funcionamento psíquico dos atendidos, evidenciando diferenças entre eles. Alex Benett e Catherine se mostraram frios e indiferentes, pareceram nao se preocupar muito com a situaçao na qual se encontravam e com os crimes dos quais eram acusados. Sofrimentos ou afliçoes nao foram verificados em seus relatos, sendo estes atinentes à concretude dos fatos. Eles nao buscaram o profissional em busca de autoconhecimento ou por espontaneidade. Ao contrário, a relaçao que estabeleceram com os clínicos era imposta a eles por via de lei, da qual tentavam se defender. Havia resistência consciente a colaborar com o profissional. Mercedes, em oposiçao, sofria com questoes existenciais, como felicidade, conjugalidade e perdas, seja da mae, da amiga ou da juventude; ela apresentava contradiçoes e inúmeras preocupaçoes com acontecimentos corriqueiros, angustiava-se com dilemas que podem ser considerados mais próximos daqueles vividos pelo espectador comum (nao sociopata).

Além disso, pode ser argumentado que qualquer forma de tratamento psicológico é sempre feito sob a influência de resistências inconscientes. E mesmo aquele que procura terapia espontaneamente também traz áreas obscuras em sua vida emocional, sobre as quais nao necessariamente deseja obter algum facho de luz, portanto, de forma similar ao suspeito que é levado ao consultório de forma coercitiva. Naturalmente, este último, ao menos em tese, desfruta de melhores condiçoes para formar uma aliança terapêutica, que proporciona a energia necessária para tentar sobrepujar as resistências inconscientes e dobrar seus próprios MDs.

Parece, assim, ser razoável supor que nos dois filmes estrangeiros, de modo diferente do que pode ser observado no nacional, nao houve o estabelecimento de aliança terapêutica numa acepçao plena da palavra. Em qualquer estudo sobre os MDs encenados precisa haver ponderaçao atenta sobre o quanto houve, nas encenaçoes, distorçoes propositais. Essa discrepância entre os funcionamentos psíquicos dos casos fílmicos analisados reforça afirmaçoes de que o repertório de defesas utilizado por eles contribui significativamente para a formaçao de suas personalidades, além de ser bom indicativo de suas saúdes psicológicas, ou da falta delas3,9.

Em retomada aos objetivos propostos e após haver ponderaçoes sobre limites metodológicos do estudo, nos títulos estrangeiros, intelectualizaçao e acting out foram mecanismos observados. Na produçao nacional, a visualizaçao do espectro de defesas imaturo-maduras foi facilitada, sendo elas negaçao, racionalizaçao, isolamento afetivo, sublimaçao e humor. Por essa via, personagens sob suspeita criminal apresentaram processos defensivos menos desenvolvidos, quando comparados à diversidade de defesas constatada nas narrativas de Mercedes. Assim, os dois primeiros filmes parecem propiciar condiçoes para propagar visoes deturpadas sobre o que seria o funcionamento defensivo de uma pessoa, na medida em que os funcionamentos psíquicos dos respectivos protagonistas se alinhariam a formas severas de adoecimento (assassinos nao apenas "em potencial").

Em Diva, por outro lado, os processos defensivos utilizados por Mercedes podem favorecer concepçoes mais humanizadas sobre casos clínicos: uma dona de casa em processo de revisao de vida, que faz coisas "diferentes" e até "absurdas" em certos momentos. E nesse instante cabe retomar os gêneros dos filmes analisados e os objetivos de cada um deles13: suspenses policiais instigam climas de "tensao psicológica", e comédias, sensaçoes de "leveza psicológica".

Mesmo com as limitaçoes mencionadas, o uso de filmes comerciais também pode funcionar como mediador para o estudante lidar com aspectos práticos envolvidos em processos clínicos reais, possibilitando a ele desenvolver técnicas como as de observaçao, de interpretaçao e de formulaçao de hipóteses sobre casos clínicos. Todavia, é preciso ter cautela para diferenciar os personagens e os recortes que se aproximam da realidade laboral e, acima de tudo, para distinguir atitudes e posturas que seriam mais ou menos desejáveis de serem praticadas em âmbitos profissionais.


REFERENCIAS

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30. Totalmente apaixonados/Trust the man [filme]. Direçao: B Freundlich. Sao Paulo: Imagem filmes; 2004.

31. A fantástica fábrica de chocolates/Charlie and the Chocolate Factory [filme]. Direçao: T Burtom. Sao Paulo: Warner Bros.; 2005.

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33. Caindo fora/Checking out [filme]. Direçao: J Hare. Sao Paulo: Visual Filmes; 2005.

34. Terapia do amor/Prime [filme]. Direçao: B Younger. Barueri: Europa Filmes; 2005.

35. Diva do amor/The treatment [filme]. Direçao: O Rudavsky. Barueri: Focus Filmes; 2006.

36. Mais estranho que a ficçao/Stranger than fiction [filme]. Direçao: M Forster. Sao Paulo: Columbia Pictures do Brasil; 2006.

37. Charlie um grande garoto/Charlie Bartlett [filme]. Direçao: J Poll. Sao Paulo: California Filmes; 2007.

38. Reine sobre mim/Reign over me [filme]. Direçao: M Binder. Sao Paulo: Sony Pictures; 2007.

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40. Quase irmaos/Step brothers [filme]. Direçao: A McKay. Sao Paulo: Sony Pictures; 2008.

41. O psicólogo/Shrink [filme]. Direçao: J Pate. Sao Paulo: Imagem filmes; Roadside Attractions; 2009.

42. Ruby Sparks: a namorada perfeita/Ruby Sparks [filme]. Direçao: J Dayton, V Faris. Sao Paulo: 20th Century Fox; 2012.

43. Um método perigoso/A dangerous method [filme]. Direçao: D Cronenberg. Sao Paulo: Imagem filmes; 2012.

44. Correndo com tesouras/Running with scissors [filme]. Direçao: R Murphy. Sao Paulo: Columbia Pictures; 2006.










1. Doutorado. Professor adjunto do Departamento de Psicologia e professor permanente do Programa de Mestrado em Psicologia. Uberaba, MG, Brasil
2. Graduaçao em Psicologia. Profissional da prática privada
3. Graduaçao em Psicologia. Profissional da prática privada

Correspondência
Tales Vilela Santeiro
Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Departamento de Psicologia
Avenida Getúlio Guarita, n. 159, 3º andar. Nossa Senhora da Abadia
38025440 Uberaba, MG, Brasil
talesanteiro@hotmail.com

Submetido em: 20/10/2015
Aceito em: 26/05/2016

Instituiçao: Universidade Federal do Triângulo Mineiro

Suporte Financeiro: Programa de Bolsas de Iniciaçao Científica da Universidade Federal de Goiás (Pivic).

 

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