Rev. bras. psicoter. 2016; 18(2):37-49
Sei MB, Colavin JRP. Desistência e abandono da psicoterapia em um serviço-escola de Psicologia. Rev. bras. psicoter. 2016;18(2):37-49
Artigos Originais
Desistência e abandono da psicoterapia em um serviço-escola de Psicologia
Withdrawal and abandonment of psychotherapy in a Psychology service-school
Maíra Bonafé Sei1; Joao Rafael Pimentel Colavin2
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
O serviço-escola de Psicologia é um serviço que está diretamente vinculado aos cursos de graduaçao em Psicologia. Desde a Lei 4.119, em 1962, por meio da qual a profissao de "Psicólogo" foi regulamentada e reconhecida na Classificaçao Brasileira de Ocupaçoes (CBO), os serviços-escola de Psicologia foram instalados com o objetivo de propiciar ao estudante a vivência da prática clínica. Assim, o futuro psicólogo pode transpor o aprendizado apenas teórico e conduzir processos terapêuticos, oferecendo atendimento psicológico à populaçao que nao tem condiçoes de arcar com os custos da psicoterapia em clínicas particulares1.
Por se tratar de um serviço com custo acessível, com preços abaixo daqueles praticados em espaços privados ou mesmo sem cobrança financeira, um cenário permeado por algumas dificuldades acaba por se delinear nesse tipo de instituiçao. Neste sentido, Guerrelhas e Silvares2 pontuam que os principais problemas encontrados no contexto do serviço-escola de Psicologia sao as longas filas para atendimento e consequentemente um extenso período de espera para o atendimento e um grande número de desistências e abandonos do processo psicoterapêutico. Quanto ao termo "desistência", esta é definida por Kazdin e Mazurick3 como o término prematuro e unilateral do tratamento, que pode acontecer tanto por parte do paciente quanto por parte do terapeuta.
Alguns estudos mostram a realidade do Brasil acerca da situaçao da evasao em serviços públicos de atendimento psicológico, sobretudo os serviços-escola de Psicologia. Dentre estes, menciona-se o trabalho de Lhullier et al.4, desenvolvido na cidade de Pelotas, no Rio Grande do Sul, que concluiu que 49,5% dos pacientes atendidos na Clínica-Escola da Universidade Federal de Pelotas abandonaram a psicoterapia sem nenhuma sinalizaçao de término por parte do terapeuta ou da instituiçao. Ampliando o olhar para além da realidade brasileira, Wierzbicki e Pekarin5 mostraram que 48% dos pacientes que iniciam um trabalho psicoterapêutico abandonam seus tratamentos. Além disso, em estudo empreendido por Bados, Balaguer e Saldaña6, 43,8% dos pacientes da Clínica-Escola da Universidade de Barcelona abandonaram seus tratamentos, citando como motivos a baixa motivaçao para o processo ou a insatisfaçao com o tratamento ou o terapeuta (46,7%), dificuldades nao relacionadas ao tratamento ou à instituiçao (40%) ou nao ter sentido nenhuma melhora em seu sintoma (13,3%).
Diante de tais dados, faz-se necessário investigar os sentidos e motivaçoes para essa alta taxa de evasao (quase metade dos pacientes tanto no Brasil quanto no exterior), para identificaçao de aspectos que geram o abandono e, com isso, possibilitar mudanças no manejo do atendimento, prevenindo a saída do paciente do processo terapêutico antes do término previsto7. Neste sentido, observa-se que vários sao os motivos para a desistência do atendimento psicológico8, tais como uma frágil aliança terapêutica entre paciente e terapeuta, dificuldades pessoais do paciente em se engajar em determinados tipos de tratamentos psicológicos7, a troca de terapeutas presente no atendimento em instituiçoes9, a percepçao de que já obteve a ajuda almejada10,11, experiências negativas em tratamentos anteriores, início do tratamento em decorrência de indicaçao de terceiros12, dentre outros.
A despeito do fato de alguns pacientes desistentes referirem ter alcançado a melhora desejada10,11, entende-se que a desistência decorrente de questoes como problemas na relaçao terapêutica, advindas da troca de terapeutas ou da frágil aliança terapêutica, podem fazer com que a pessoa nao se beneficie de tudo o que a psicoterapia poderia lhe oferecer, sem, talvez, conseguir solucionar seus conflitos e questoes. Uma dinâmica como essa poderia contribuir para o aumento da taxa de pessoas com morbidades psiquiátricas graves13, tornando-se esse um problema de saúde pública. A partir desse panorama, objetiva-se mapear as desistências e abandonos da psicoterapia junto a um serviço-escola de Psicologia, apontando para as possíveis motivaçoes da populaçao para a nao continuidade no atendimento inicialmente solicitado.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa descritiva que, enquanto tal, almeja descrever características de uma populaçao ou fenômeno, sem manipulaçoes ou interferência do pesquisador, com o intuito de classificaçao, explicaçao e interpretaçao dos acontecimentos14. No que se refere aos procedimentos empregados, caracteriza-se como uma pesquisa de levantamento, de caráter documental, ou seja, que se baseia em documentos que nao receberam um tratamento analítico, com o objetivo de organizar informaçoes dispersas dando a estas uma importância como fonte de consulta.
No caso desta investigaçao, os documentos consultados foram as fichas de triagens realizadas e os resumos de encerramento de casos referentes a atendimentos efetuados em um serviço-escola, entre fevereiro de 2013 e dezembro de 2013. Esclarece-se que no serviço-escola em questao constam no prontuário dos pacientes os seguintes documentos: a ficha de triagem, uma tabela com informaçoes sobre as sessoes realizadas, os atendimentos desmarcados e as faltas nao justificadas, além de uma ficha de encerramento do caso nas situaçoes de alta ou desistência da psicoterapia, na qual constam informaçoes acerca do número de sessoes realizadas, aspectos trabalhados e motivo da finalizaçao, ou uma ficha de encaminhamento do caso para outro terapeuta no caso de finalizaçao das atividades do terapeuta inicial junto ao serviço-escola.
Quanto aos aspectos éticos, ressalta-se que todos os pacientes do referido serviço, acompanhados em psicoterapia, assinam um Termo de Consentimento, por meio do qual indicam a ciência sobre o uso do material clínico decorrente dos atendimentos realizados, trabalhos científicos e outras atividades de caráter acadêmico.
CARACTERIZAÇAO DO SERVIÇO-ESCOLA
O presente trabalho baseia-se na experiência de um serviço-escola de Psicologia de uma universidade pública paranaense, instituiçao que conta com aproximadamente 40 anos de existência. Sua implantaçao foi decorrente da chegada ao 5º ano do curso de Psicologia para a habilitaçao de Formaçao de Psicólogo. Esse serviço atende a comunidade interna (estudantes e funcionários da universidade) e a comunidade externa (moradores da cidade na qual a universidade está situada e de municípios da regiao sem vínculo com a instituiçao), que procuram atendimento por iniciativa própria ou que chegam ao espaço por meio de encaminhamentos, e propicia aos estagiários a vivência da prática clínica em Psicologia.
Sua principal oferta ao público interessado é a psicoterapia individual, usualmente conduzida por estagiários de 5° ano da graduaçao em Psicologia, sob supervisao de docentes credenciados junto ao Conselho Regional de Psicologia. Contudo, também realiza atividades de avaliaçao psicológica, psicoterapia de grupo, casal e família, dentre outras intervençoes psicológicas, propostas por meio de projetos de ensino, pesquisa e extensao. Ao iniciar a psicoterapia, os pacientes assinam um termo de consentimento no qual fica estabelecido o contrato terapêutico, com declaraçao de ciência acerca do fato de tratar-se de um serviço-escola de Psicologia, cujos atendimentos sao conduzidos por estudantes em formaçao, com a norma de nao poderem se ausentar em mais de 30% dos atendimentos agendados.
Ressalta-se que o estágio em Psicologia Clínica configurou-se como uma atividade obrigatória a todos os estudantes de Psicologia para a conclusao da formaçao de psicólogo. Todos os estagiários deveriam atender obrigatoriamente um caso clínico, ao longo de um ano letivo. Entretanto, por meio de uma mudança curricular, a ênfase "Psicologia e Processos Clínicos" passou a se apresentar como uma das três possíveis ênfases do curso a partir do currículo cuja vigência se iniciou em 2014, tendo, entao, um caráter optativo.
No que se refere ao montante de atendimentos realizados, entre 2006 e 2013, o serviço-escola estudado contabilizou uma média de 3.855 atendimentos por ano. Em 2013, foram realizados 4.104 atendimentos, sendo 3.974 atendimentos realizados de forma individual e 130 realizados em grupo. Foram também realizadas 229 entrevistas de triagem, sendo 176 de pessoas adultas e 53 de crianças. Dentre essas 229, 188 compareceram e deram prosseguimentos à psicoterapia e 41 nao deram prosseguimento quando chamados para iniciar a psicoterapia.
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