Rev. bras. psicoter. 2016; 18(2):3-19
Campezatto PvM, Serralta FB, Habigzang LF. Adesao à técnica psicanalítica no processo de psicoterapia com uma paciente borderline. Rev. bras. psicoter. 2016;18(2):3-19
Artigos Originais
Adesao à técnica psicanalítica no processo de psicoterapia com uma paciente borderline
Adherence to the psychoanalytic technique with a borderline female patient
Paula von Mengden Campezatto1; Fernanda Barcellos Serralta2; Luísa Fernanda Habigzang3
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
As psicoterapias vêm sofrendo pressao para comprovar cientificamente seus métodos1,2. Pesquisadores têm buscado respostas sobre porque, para que e para quem a psicoterapia funciona. O porquê de a psicoterapia funcionar é a pergunta-chave dos estudos sobre processo terapêutico. Nesse âmbito, os estudos almejam oferecer subsídios para compreender fatores que influenciam a resposta ao tratamento. Contudo, as publicaçoes de pesquisas sobre processos em psicoterapia sao ainda incipientes, e a maior parte dos estudos avalia resultados3,4.
O processo das psicoterapias envolve fatores específicos e comuns. Os fatores específicos sao fatores da técnica que distinguem diferentes tipos de psicoterapia (como o manejo da transferência, na abordagem psicanalítica) e os comuns estao presentes em todos os tipos de psicoterapia, como aliança terapêutica, estrutura da situaçao terapêutica e como se organizam e se transmitem os conteúdos terapêuticos, por exemplo5. Décadas de investigaçao demonstram que os fatores comuns sao mais importantes para promover a mudança do que os fatores específicos6. No entanto, e estimativa do efeito dos fatores específicos pode estar subestimada pela carência de estudos que focalizem esses fatores e seu efeito na psicoterapia, bem como devido às limitaçoes dos delineamentos tipicamente utilizados nos estudos de processo-resultados7,8. Argumenta-se que para compreender a mudança em psicoterapia psicanalítica é necessário examinar múltiplas variáveis subjetivas por meio do tempo e, nesse sentido, o estudo de caso sistemático pode ser mais indicado do que delineamentos grupais9.
A psicoterapia psicanalítica baseia-se nos desenvolvimentos teóricos da metapsicologia psicanalítica aliados às adaptaçoes da técnica a pacientes, contextos e culturas diferentes da época em que a psicanálise foi criada. Fatores específicos, como neutralidade do terapeuta e interpretaçao da transferência e de defesas, por exemplo, nao necessariamente estao presentes da mesma forma em todos os casos, pois a sua adoçao como parâmetro depende da natureza da psicopatologia do paciente. A diferenciaçao entre o tipo de estrutura (e consequente funcionamento mental) deve ter repercussao direta na técnica utilizada, o que reforça a necessidade de investigar os processos de psicoterapias psicanalíticas com pacientes de diferentes níveis de funcionamento.
Pacientes borderline apresentam como característica o funcionamento frágil do ego, a difusao da identidade, o predomínio de mecanismos de defesa primitivos e o funcionamento mental no nível de processo primário, ainda que com manutençao do teste de realidade10. Fatores ambientais, como vivências de abuso ou negligência e a falta de um modelo de apego seguro, sao partes de sua etiologia11. Devido a essas características, esses pacientes geralmente requerem modificaçoes na técnica psicanalítica clássica12.
Verifica-se na literatura que a técnica para o atendimento dos pacientes borderline nao apresenta consenso na literatura. A adaptaçao à condiçao face a face entre paciente e psicoterapeuta, porém com proposta rígida do setting, frequência e intervençoes predominantemente do espectro interpretativo, foi proposta por Kernberg10. Baseada no modelo desse autor, a Terapia Focada na Transferência é uma modalidade manualizada de psicoterapia psicodinâmica dirigida a pacientes borderline que visa trabalhar as representaçoes do paciente e dos outros na medida em que surgem na interaçao com o terapeuta. O tratamento é estruturado de forma a controlar a atuaçao, sustentando-se no estabelecimento do contrato e na neutralidade do terapeuta11. Outra corrente é centrada na construçao do vínculo de confiança e compreensao baseado na criaçao de introjeçoes positivas que o ambiente materno fracassou em prover. Essa modalidade de adaptaçao da técnica tem como característica a utilizaçao de uma gama maior de intervençoes em detrimento das clássicas interpretaçoes, nas quais a presença de constância, cuidados e nao puniçao do terapeuta sao mais importantes do que o conteúdo das interpretaçoes13 [PVMC1], baseando-se na obra de Bion14 e Ogden15, entre outros. E, ainda, Bateman & Fonagy16 defendem uma modalidade estruturada de tratamento para pacientes borderline que tem como objetivo estimular o processo de mentalizaçao, ou seja, buscar compreensao de estados mentais do próprio indivíduo e de pessoas de seus relacionamentos sociais. Experiências de fragmentaçao na estrutura do self podem ser reduzidas pelo desenvolvimento da capacidade de mentalizaçao, assim como a habilidade de lidar com estados emocionais e o desenvolvimento de relacionamentos interpessoais. Assim, os autores apoiam a ideia de que interpretaçoes transferenciais nao devem ser utilizadas nesse tratamento. Tais modalidades, embora sustentadas empiricamente, geralmente nao sao ensinadas nos cursos de formaçao de psicoterapeutas em nosso meio, sendo pouco conhecidas entre psicoterapeutas nao familiarizados com a pesquisa em psicanálise.
Uma vez que os modelos de orientaçao psicanalítica nao sao unânimes a respeito da técnica e do processo ideal na psicoterapia com pacientes borderline, constata-se a necessidade de mais estudos do processo terapêutico de psicoterapias psicodinâmicas para conhecer melhor os elementos associados aos resultados terapêuticos. Seguindo esse propósito, este artigo tem como objetivo descrever e compreender um processo de psicoterapia de uma paciente com transtorno de personalidade borderline, com foco na técnica psicanalítica. Procura-se observar como os aspectos intrapessoais (funcionamento da paciente) interferem na adesao à técnica e no modo como se estabelecem aspectos interpessoais da dupla paciente e psicoterapeuta. Trata-se de um caso interrompido precocemente. Avaliar o processo terapêutico de casos que nao atingiram os resultados esperados pode auxiliar a desenvolver modos mais efetivos para ajudar esses pacientes a permanecer em tratamento, de forma a extrair deste o máximo de benefício.
MÉTODO
DELINEAMENTO
Estudo de caso único sistemático17.
PARTICIPANTES
Fez parte do estudo uma dupla paciente-psicoterapeuta e integrantes do grupo de supervisao clínica do caso. A paciente, Lara, era adulta jovem, solteira, empregada doméstica, ensino fundamental incompleto, com hipótese diagnóstica de transtorno de personalidade borderline, estabelecida pela psicoterapeuta e pelo grupo de supervisao. A queixa inicial era choro constante, sentimento de vazio, relacionamento conflituado com a mae, dificuldade em expressar sentimentos e baixa autoestima. Foi vítima de violência doméstica durante a infância (violência física, negligência e suspeita de abuso sexual). A terapeuta era psicóloga, com formaçao em psicoterapia psicanalítica, cinco anos de experiência na área. O grupo de supervisao clínica do caso foi conduzido por uma psicanalista experiente (supervisora) e contou com a participaçao de uma professorapesquisadora em psicologia e psicanálise, quatro psicólogas com experiência em psicoterapia psicanalítica (dentre elas, a psicoterapeuta do caso) e duas estudantes de psicologia.
Para fins deste estudo, as sessoes do tratamento e de supervisao constituem a unidade de análise. Descrevemos sucintamente ambos os contextos: os atendimentos psicológicos foram realizados em uma clínicaescola, após procedimento-padrao de triagem da instituiçao que verificou a indicaçao de psicoterapia psicanalítica. Essa triagem foi conduzida por psicóloga com formaçao em psicoterapia e experiência de dez anos na área. A indicaçao inicial foi de psicoterapia psicanalítica com a frequência de duas sessoes semanais; no entanto, devido a questoes laborais e financeiras, a paciente passou a ser atendida semanalmente no ambulatório da instituiçao parceira deste estudo. O tratamento teve duraçao de nove meses e consistiu em 25 sessoes marcadas, com o comparecimento da paciente em 13 sessoes. Essas foram gravadas em áudio e supervisionadas semanalmente. Nas supervisoes, as discussoes tiveram como base as gravaçoes em áudio das sessoes, as sessoes dialogadas realizadas pela psicoterapeuta e o diário de campo da mesma, com informaçoes complementares, tais como atrasos, faltas, comunicaçao entre as sessoes e sentimentos contratransferenciais. As 18 sessoes de supervisao foram gravadas em áudio e registradas através de relato escrito.
INSTRUMENTO
O Instrumento para Avaliar Sessoes Psicanalíticas (Iasp) avalia a adesao à técnica psicanalítica por meio do exame de sessoes transcritas ou gravadas em áudio, para verificar se estas podem ser consideradas psicanalíticas. É autoaplicável, sendo necessário que o juiz possua amplo conhecimento a respeito da teoria e da técnica psicanalítica, além de ter experiência em psicoterapia psicanalítica e/ou psicanálise18. Constituído por cinco itens, engloba os seguintes pontos: (A) natureza das intervençoes, (B) neutralidade do terapeuta, (C) realizaçao de interpretaçoes, (D) uso da teoria para compreensao do material e (E) aspectos da relaçao pacienteterapeuta (sendo o somatório de E1 - clima da sessao e E2 - atitude do terapeuta). O ponto de corte sugerido para considerar uma sessao como psicanalítica é =13, sendo 25 a pontuaçao máxima da escala (Almeida, 2010). Encontra-se em processo de validaçao no Brasil. Testes preliminares da versao final demonstraram boa confiabilidade (Alpha de Cronbach's = 0,8119 e PABAK = 0,831/p= 0,00920), apresentando apenas um fator, com todos os itens tendo participaçao relevante na sua composiçao18,19.
PROCEDIMENTOS DE COLETA E ANALISE DE DADOS
A pesquisa seguiu procedimentos éticos, aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa (Parecer 772.465). Após o convite e aceitaçao da participaçao pela paciente e pela psicoterapeuta, a gravaçao em áudio das sessoes de psicoterapia foi realizada na clínica-escola parceira deste estudo. A cada sessao realizada, a psicoterapeuta relatava, por escrito, o atendimento para ser utilizado na supervisao, também gravada em áudio. Todas as sessoes do tratamento foram transcritas literalmente.
As transcriçoes das sessoes foram distribuídas às 13 juízas voluntárias para avaliaçao por meio do Iasp, de forma que cada sessao fosse avaliada por duas juízas. Essas juízas possuíam no mínimo dez anos de experiência clínica (Md = 14,07 anos) e já haviam concluído curso de especializaçao em psicoterapia psicanalítica e/ou em psicanálise. O escore final foi calculado com a média das duas juízas. Quando houve discrepância no escore total entre as duas juízas, ou seja, a mesma sessao foi considerada psicanalítica por uma juíza e nao psicanalítica por outra, tal sessao foi enviada para uma terceira juíza. Isso foi realizado nas sessoes de número 3 e 25.
Para exame aprofundado da evoluçao do processo de psicoterapia, os áudios das sessoes foram ouvidos e as transcriçoes de todas as sessoes foram lidas, visando a uma integraçao com os resultados obtidos por meio do Iasp. Além disso, recorreu-se à gravaçao do áudio das supervisoes para compreender e explicitar momentos de maior ou menor adesao à técnica psicanalítica.
RESULTADOS E DISCUSSAO
O tratamento durou nove meses e consistiu em 25 sessoes marcadas, com o comparecimento da paciente a 13 sessoes (de números 1, 2, 4, 5, 7, 10, 12, 13, 14, 15, 19, 20 e 25). A Figura 1 apresenta a distribuiçao dos escores totais do Iasp em todas as sessoes do tratamento analisado. A maioria das sessoes (76,92%, n=10) está classificada acima do ponto de corte da escala (=13), sendo considerada de abordagem psicanalítica, com média de 14,96 pontos. Tal resultado permite considerar o tratamento em questao psicanalítico no que diz respeito à técnica da psicoterapeuta. No entanto, três sessoes (1, 5 e 20) se apresentam abaixo do ponto de corte, nao sendo consideradas aderidas à técnica psicanalítica.
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