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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2016; 18(1):121-129



Comunicaçao breve

Iludir e desiludir: implicaçoes da supervisao no trabalho de um acompanhante terapêutico

Illusion and disillusionment: supervision implications on the work of a therapeutic assistant

Fábio Brodacz

Resumo

O autor busca demonstrar as implicaçoes da supervisao na evoluçao do trabalho de um acompanhante terapêutico. Para tal, resgatou sua própria experiência para demonstrar, a partir do conceito de Winnicott do processo de ilusao e desilusao no desenvolvimento emocional primitivo, como a supervisao nos atendimentos auxiliou na compreensao das necessidades de três pacientes. As diferenças foram 1) a existência ou nao de um trabalho de supervisao em cada um dos casos e 2) a formalidade desse trabalho como determinante na evoluçao dos atendimentos. No primeiro caso, nao supervisionado, houve a impossibilidade em perceber-se a necessidade de transitar em direçao à desilusao, ocasionando a ruptura do trabalho. No segundo, supervisionado com o próprio terapeuta, mostrou-se uma consonância entre as necessidades do paciente e o trabalho do acompanhante. No terceiro caso, em que havia uma obstinaçao do paciente por realizar uma atividade sabidamente além de suas possibilidades, evidenciou-se a importância da supervisao formal, periódica, realizada em grupo. Nesse processo, pôde ser direcionado o trabalho aproximando acompanhante e paciente daquilo que foi chamado por Winnicott de "momento de ilusao". Esse desprendimento da oferta maciça de realidade em direçao à fantasia mostrou-se fundamental para a aproximaçao à realidade e suas limitaçoes, incluindo aí tanto suas frustraçoes quanto, nas palavras de Winnicott, "o alívio e a satisfaçao que ela proporciona".

Descritores: Serviço de acompanhamento de pacientes; Teoria psicanalítica; Comportamento do adolescente.

Abstract

The author aims to demonstrate the implications of supervision in the development in the work of a therapeutic assistant. To that end, he brings back his own experience to demonstrate, from Winnicott's concept of illusion and disillusionment in the primitive emotional development, as the supervision of counselings helped with understanding the needs of three patients. The differences were 1) the existence of not of a supervision work in each of the cases and 2) the formality of this work as key in the development of the counselings. In the fist case, without supervision, it was impossible to notice the need of heading for disillusionment, causing the work to stop. In the second, supervised with the therapist himself, the needs of the patient were in agreement with the work of the assistant. In the third case, in which there was a stubborness from the patient to do an activity knowingly beyond his possibilities, the importance of formal, periodical and group supervision became clear. In this process, the work bringing assitant and patient closer could be guided, what Winnicott calls the "moment of illusion". This detachment of dense offer of reality towards fantasy proved fundamental to the nearing of reality and its limitations, including both its frustrations as, in Winnicott's words, "the relief and satisfaction it allows".

Keywords: Adolescent Behavior; Patient Care; Psychoanalytic Theory.

 

 

INTRODUÇAO

Acompanhamento terapêutico (AT)1 é uma modalidade de atendimento que surgiu na Argentina, no final da década de 1960, como uma necessidade clínica para pacientes cujas terapêuticas clássicas fracassavam. Inicialmente o AT foi chamado de "amigo qualificado", mas esse termo caiu em desuso pelo seu conteúdo amistoso e pouco profissional. O AT é um agente terapêutico que trabalha em conjunto com o terapeuta, portanto o termo acompanhante acabou se consolidando para referenciar-se a esse tipo de trabalho.

As funçoes do acompanhante terapêutico vao desde auxiliar em tarefas cotidianas do paciente até conter e oferecer limites (ego ou superego auxiliar). O trabalho de AT, inicialmente baseado em pressupostos psicanalíticos, e posteriormente expandido para outras modalidades psicoterápicas, definiu sua área de atuaçao principalmente com pacientes psicóticos, numa busca por reintegrá-los na sociedade e no vínculo familiar. Mauer & Resnizky2 sugerem as principais funçoes do acompanhante terapêutico: 1) conter o paciente; 2) oferecer-se como modelo de identificaçao; 3) trabalhar em um nível dramático/vivencial e nao interpretativo; 4) emprestar o "ego"; 5) perceber, reforçar e desenvolver a capacidade criativa do paciente; 6) informar sobre o mundo objetivo do paciente; 7) representar o terapeuta; 8) atuar como agente ressocializador; e 9) servir como catalisador das relaçoes familiares. Os autores ressaltam ainda as condiçoes necessárias para ser um acompanhante terapêutico, como vocaçao para a assistência, alto grau de comprometimento, interesse por trabalhar em equipe, maturidade, autonomia, capacidade de empatia e vínculo, flexibilidade em estabelecer limites fortes, capacidade de aliar a teoria com a prática, além de ausência de preconceitos e estereótipos.

O presente trabalho teve como ponto de partida uma apresentaçao a um grupo de alunos de um curso de AT em um instituto de atendimento e ensino de Porto Alegre. O objetivo do encontro era fornecer um relato sobre minha própria experiência como acompanhante terapêutico, realizada durante um período de cerca de dois anos, na década de 1990. Passadas duas décadas, é possível elencar os fatores que fizeram com que três daquelas experiências tivessem permanecido registradas em especial, a ponto de poderem ser transmitidas depois de tanto tempo a novos interessados no trabalho de AT: em primeiro lugar, o fato de terem sido algumas de minhas primeiras experiências realizados a sós com pacientes, ainda como estudante de medicina, após algum tempo de prática com grupos de adolescentes em uma clínica. Em segundo, muitas das situaçoes experimentadas naqueles atendimentos e os ensinamentos que delas pude absorver vinham e continuam sendo aproveitadas em minha prática de atendimento psicoterápico, como referência em dilemas semelhantes e como balizamento para tomada de decisoes terapêuticas. Com as vivências bem disponíveis à memória, foi possível, ao longo da preparaçao para a apresentaçao dos relatos ao grupo de alunos, identificar um importante e decisivo fator de sucesso ou fracasso na evoluçao de cada um dos trabalhos, a saber, a existência ou nao de supervisao em cada um dos atendimentos.

A seguir, sao descritas três breves vinhetas e, logo após, a evoluçao de cada um dos trabalhos, o que deverá esclarecer a relevância da experiência de supervisao. Algumas características individuais de cada paciente foram alteradas no relato, a fim de preservar suas identidades.

Vinheta 1

Róbson é um jovem de 30 anos, com diagnóstico de esquizofrenia. Tem uma vida social bastante limitada desde os 20, quando passou a ter manifestaçoes mais intensas da doença. Nao tem nenhum trabalho formal, a única tarefa de sua responsabilidade é passear diariamente com o cao da família. Os pais incomodam-se muito com a limitaçao social de Róbson. Haviam feito tentativas de inserçao em um clube, e em alguns grupos comunitários, todas elas esbarrando em frustraçoes para todos. Mas os pais ainda consideram importante que Róbson tenha mais experiências de contato social. A psiquiatra que o atende pensa da mesma forma e sugere aos pais a ideia de trabalhar em conjunto com um AT. A família recebe a indicaçao sem a presença de Róbson, e aceita a ideia. No encontro seguinte com a médica, os pais trazem algumas condiçoes: primeiro, que fosse um acompanhante terapêutico masculino. Segundo, que (ao menos preferencialmente) gostasse de esportes - Róbson costumava jogar tênis na adolescência. E, por fim, esta a condiçao principal, que aceitasse nao revelar a Róbson que receberia pagamento pelo tempo em que estaria em sua companhia. A ideia era oferecer um primeiro encontro que parecesse casual e espontâneo, alguém que se interessou por jogar tênis com Róbson em uma quadra pública instalada numa praça a poucos metros da sua casa. Enfim, queriam oferecer a Róbson a chance de ter um amigo.

Vinheta 2

Beto precisou ser levado a psiquiatras e psicólogos desde muito pequeno. Aos 4 anos, a mae, que cuidava sozinha do filho com a ajuda eventual de uma irma sua, percebia que Beto nao era uma criança como as outras. Seu desenvolvimento tinha algo de estranho, comunicava-se com gritos, tinha baixa tolerância a mínimas frustraçoes. Após diversas avaliaçoes, consultas, uma tentativa de psicoterapia intensiva combinada com medicaçoes indicadas por um psiquiatra, a mae decide fazer uma nova tentativa com um psiquiatra que tem o trabalho voltado para psicoterapia e psicanálise, já bem experiente em atender crianças. Esse médico considera atender Beto oferecendo uma série de recursos: encontros de duas a três sessoes semanais com o terapeuta, que também prescreveria medicaçoes em doses suficientes para atenuar seu comportamento disruptivo, que, agora aos 11 anos, já envolve frequentes episódios de descontrole de impulsos, conduta hipersexualizada, por vezes agressividade física e verbal e comportamento desafiador. Esse conjunto de sintomas havia feito com que Beto, por exemplo, tivesse negada sua rematrícula em um curso de nataçao, no ano anterior. Mas, na opiniao do terapeuta, o retorno à nataçao é muito importante, pelo que oferece de atividade física propriamente dita, por ser um esporte que nao envolve contato direto, portanto mais oportuno, em se considerando a ainda severa impulsividade e, principalmente, para atenuar a marca de loucura indomável de Beto, que já passa a predominar para todos que convivem com o menino. O terapeuta trabalha uma via alternativa: sugere à mesma escola que aceite Beto de volta, garantindo que a família ofereceria um suporte adequado durante todo o período em que ele estivesse nas dependências da escola - vestiários, piscina, entrada e saída. O AT convocado para o trabalho inclusive deveria vestir trajes de banho por baixo, caso necessitasse entrar na água de pronto para conter ou retirar Beto da piscina.

Vinheta 3

Sílvio está com 21 anos, é filho único, criado apenas pela mae. Ouço com especial atençao a descriçao feita pelo psiquiatra que o atende porque sou o "próximo da fila" no grupo de ATs que se reunia semanalmente para supervisao dos atendimentos e distribuiçao de tarefas. O terapeuta comparece ao final da reuniao para conversar com o grupo a respeito de Sílvio. Por esse relato, fiquei sabendo que Sílvio é um rapaz com alguma síndrome genética (possivelmente Síndrome do X frágil); que há severa limitaçao social, acadêmica e de aquisiçoes da adolescência; que a mae está extenuada, que a relaçao mae e filho é simbiótica, com hipercontrole materno, esgotamento emocional da mae e irritabilidade e mau humor constante de Sílvio. Uma das razoes para frequentes brigas é uma antiga e cada vez mais intensa obstinaçao de Sílvio por caminhoes. Ele inclusive vem acalentando o desejo de ser caminhoneiro e traz o assunto insistentemente a todos com quem convive. O incômodo que a insistência do tema provoca vem do fato de que Sílvio sabidamente nao pode ser habilitado a dirigir qualquer veículo, quanto menos para os de grande porte. É preciso ajudar Sílvio a ampliar seu universo de interesses, trazer Sílvio para a realidade, fazê-lo abandonar ideias impossíveis.


EVOLUÇOES

Vinheta 1


Os encontros com Róbson iniciam já com grande artificialismo, com um relato prévio feito por ele a sua mae de que teria me encontrado com uma raquete de tênis na praça e iniciado comigo uma conversa, ocasiao em que eu teria me interessado em conhecê-lo e em convidá-lo para jogarmos.

De início, Róbson nao se mostra muito receptivo à minha presença, apesar de nao oferecer recusa aos meus convites, incluindo o de jogar tênis. Afinal, era dia de semana, o dia estava ensolarado e nenhum de nós faria objeçao ao estado lamentável da rede e ainda tomaria um bom cuidado para desviar dos buracos da quadra. As raquetes eram de boa qualidade e as bolinhas, novíssimas, amarelíssimas. Mas havia um clima de desarmonia que se reproduzia na discrepância entre o bom material esportivo e as precárias condiçoes da quadra, em analogia adequada para a incoerência maior daqueles encontros: amigo que nao é amigo, em um trabalho com remuneraçao recebida às escusas e sem possibilidade de oferecer a necessária desilusao, já que isso romperia com a condiçao imposta pelos pais a mim, assim como também a Róbson. Um acompanhante terapêutico disponível, aceitando trabalhar em um terreno defeituoso, precisando desviar dos buracos para nao deixar a bolinha quicar no solo duas vezes.

Temos, Róbson e eu, alguns encontros interessantes, e tenho até a impressao de estar fazendo algo importante por ele, mas essa atmosfera nao se sustenta e o trabalho logo começa a ser desestimulante e cansativo para mim, e claramente insatisfatório para Róbson. Algumas semanas após, Róbson recusa o convite para irmos à praça, e em seguida já nao quer mais que eu venha à sua casa. A família lamenta o fracasso e dispensa o trabalho do acompanhante.

Mais do que o pacto em iludir o paciente, o que parece fracassar nesse atendimento está relacionado à impossibilidade de evoluir a relaçao para o caminho da desilusao, conforme conhecemos por Winnicott3. Isso passaria, necessariamente, por nao dar o acordo com a família como aceitaçao tácita e definitiva para o trabalho, mas apenas como condiçao para início deste, elegendo como objetivo do trabalho do acompanhante nao o iludir para trabalhar, mas trabalhar para desiludir. Ou, segundo a premissa winnicottiana, iludir para desiludir. E, entao, quem sabe, rumar para uma outra quadra de tênis, sem buracos traiçoeiros.

Vinheta 2

Trabalho durante cerca de um ano com Beto. Nao foi necessário entrar na água em nenhuma oportunidade. De fato, os momentos em que ele está na piscina sao bem menos difíceis em comparaçao aos de dentro do vestiário, quando há grande dificuldade no cumprimento das combinaçoes. Beto abandona o box de banho com sabonete no corpo, canta músicas populares em alto volume e com frequência manifesta sons e gestos hipersexualizados. É um desafio ser, ao mesmo tempo, ego e superego auxiliar de Beto. Frequentadores e funcionários esperam sempre algo de mim: equilíbrio, maturidade, continência. É justamente para isso que eu estou ali, conforme ouço do terapeuta de Beto, sempre disponível. Sem essa funçao (que é tanto de supervisao como de coterapia), muito dificilmente teria podido continuar esse trabalho depois do dia em que Beto dá um forte tapa em uma de minhas nádegas, em meio à travessia de uma faixa de pedestres. Sim, repreendo-o de imediato, como deveria ter feito, olhando-o com ar de severidade e raiva, como poderia ter evitado fazer e nao mais dirijo a palavra a ele até a chegada à escola de nataçao, como igualmente poderia ter evitado fazer. O supervisor coterapeuta ajudou a compreender o que ocorria, Beto me conduzindo rumo à sua própria desintegraçao e fragilidade. O trabalho pôde entao tomar a direçao daquilo que Bion4 descreve como digestao mental, do evacuativo rumo ao elaborativo. E ainda recordar o que diz Alvarez5 sobre ter ossos para sustentar o paciente e músculos para movê-lo. Retorno ao encontro seguinte, nao desistindo e nao sendo mais um a ser escangalhado pelo que Beto tinha de mais psicótico. Foi preciso aprender com Gutfreind6 o que este aprendeu com Winnicott7 e com sua própria experiência: "nada mais era preciso do que sobreviver aos ataques". Continuar trabalhando com Beto foi uma vitória da saúde sobre a doença.

Vinheta 3

Inicio meu trabalho com Sílvio muito confiante em ajudá-lo a ampliar seu repertório de interesses: o mundo também oferece os instrumentos musicais, a culinária, a literatura, o cinema. É possível cultivar uma horta em casa, montar quebra-cabeças de cinco mil peças, criar hamster, cachorro, tartaruga. No mundo, é possível aprender origami, pintura em tecido, em acrílico sobre tela. É possível até mesmo (por que nao?) descobrir o sexo.

Mas as primeiras semanas de trabalho sao muito frustrantes. Nao apenas Sílvio deixa de demonstrar qualquer interesse por locadoras de filmes ou receitas de panqueca como nao esconde a expressao facial de desgosto a cada assunto desses que eu sugiro, nobres e revolucionários para mim, débeis e insossos para ele. Em realidade, Sílvio está enfarado de mim e de meus assuntos imprestáveis.

E o grupo de colegas, o que pensam? E o supervisor de grupo de AT? De início, nao saberia dizer. Quase todos apenas ouviam os relatos modorrentos de meus encontros com Sílvio e tudo o que eu precisava fazer, até entao, era seguir os encontros e trazer os relatos. Até o momento em que é possível ao supervisor formular uma ideia e oferecer uma sugestao, ancorado na opiniao do grupo: o AT deveria interessar-se mais por caminhoes. O foco deveria ser invertido: nao seria eu a apresentá-lo a um universo novo e ampliado, mas ele, Sílvio, quem me ensinaria sobre caminhoes, carretas e afins. E a proposta vem com uma sugestao bem prática: comece perguntando sobre marcas e modelos de caminhoes. Conhecer Volvo e Mercedes-Benz nao é suficiente para o bom trabalho. E nao estude antes, pergunte tudo ao Sílvio.

Funciona muito bem, e de imediato: no encontro seguinte, Sílvio, entusiasmado com a novidade, conta detalhes do universo dos pesos pesados, mostra revistas que vem colecionando há mais de quatro anos, desenhos, réplicas em miniatura, recortes de jornais com reportagens de fórmula truck. E garante, seguro e decidido: "quero ser caminhoneiro".

Ao relatar a experiência ao grupo, aprovaçao e mais recomendaçao do Celso Gutfreind: agora vocês vao entrar em um caminhao de verdade, que é o melhor lugar para o trabalho de vocês.

No encontro seguinte, que se deu na boleia de um Scania de uma revenda de usados, aprendi, enquanto acompanhava o êxtase de Sílvio, que a estrada pode ser uma excelente estratégia para escapar da dura e sufocante rotina, do aprisionamento das relaçoes fusionais e até mesmo, sim, dos profissionais da saúde que insistem em tentar nos oferecer realidade quando o que mais precisamos é ilusao.




CONSIDERAÇOES FINAIS

A leitura da tabela permite algumas importantes consideraçoes: em primeiro lugar, vemos que, onde o trabalho solicitado ao acompanhante coincide com a necessidade do paciente, no caso de Beto, o desfecho tende a ser favorável. No entanto, para que fosse mesmo satisfatório, foi fundamental, como já detalhado anteriormente, o compromisso do supervisor em auxiliar no processo. Robson, anteriormente, nao pôde dispor do mesmo zelo, o de um supervisor que apontasse ao acompanhante que a necessidade do paciente poderia rumar para além do que lhe foi solicitado inicialmente. Com Sílvio, a situaçao de discrepância entre o trabalho solicitado e a necessidade do paciente também ocorre, mas aqui há mais que um supervisor: há todo um grupo envolvido em digerir em conjunto o trabalho, diversas mentes pensando no que ocorria com duas outras. A formalidade e a periodicidade da supervisao, além disso, se mostraram decisivas quanto à possibilidade de direcionar o trabalho aproximando ambos, AT e paciente, daquilo que foi chamado por Winnicott de momento de ilusao. Esse movimento no processo, de desprendimento da oferta de porçoes de realidade em direçao ao espaço fantasioso, se mostraria fundamental para que fosse possível aproximar-se da realidade externa e suas limitaçoes, incluindo aí tanto suas frustraçoes quanto, nas palavras do próprio Winnicott, "o alívio e a satisfaçao que ela proporciona".

Os versos de Fernando Pessoa8, assim me parece, oferecem um bom fechamento ao trabalho:

Cada Um
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispoe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Nao tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.


REFERENCIAS

1. Londero I, Pacheco J. Por que encaminhar ao acompanhante terapêutico? Uma discussao considerando a perspectiva de psicólogos e psiquiatras. Psicologia em Estudo. 2006;11(2):259-267.

2. Mauer SK, Resnizky S. Acompanhantes terapêuticos e pacientes psicóticos: manual introdutório de uma estratégia clinica. Campinas: Papirus; 1987.

3. Winnicott DW. Distorçao do ego em termos de falso e verdadeiro self. In: O ambiente e os processos de maturaçao: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto alegre: Artmed; 1983.

4. Bion WR. Transformaçoes. Rio de Janeiro: Imago; 2004.

5. Alvarez A. Tornando-se vertebrado. In: Companhia viva - psicoterapia psicanalítica com crianças autistas, borderline, carentes e maltratadas. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994.

6. Gutfreind C. Parentalidade, criatividade e psicoterapia infantil. In: Narrar, ser mae, ser pai e outros ensaios sobre a parentalidade. Rio de Janeiro: Difel; 2010.

7. Winnicott DW. Desenvolvimento emocional primitivo. In: Da pediatria à psicanálise - obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago; 2000.

8. Pessoa F. Poesia completa de Ricardo Reis. Sao Paulo: Cia das Letras; 2007.

9. Gabbard GO. Disguise or consent: problems and recommendations concerning the publication and presentation of clinical material. International Journal of Psychoanalysis. 2000;81:1071-1086.










Especialista em Psicoterapia de Orientaçao Analítica. Psiquiatra, psiquiatra da infância e adolescência. Membro aspirante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Instituiçao: Instituto Contemporâneo de Psicanálise e Transdisciplinaridade, Porto Alegre, RS, Brasil.

Correspondência
Fábio Brodacz
Av. Caçapava 537, 306, Petrópolis
90460-130 Porto Alegre, RS, Brasil
fbrodacz@yahoo.com.br

Submetido em: 19/01/2015
Aceito em: 14/03/2015

 

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