Rev. bras. psicoter. 2016; 18(1):93-106
Silva NJ, Schestatsky SS. Reflexoes sobre o silêncio em psicoterapia de orientaçao analítica. Rev. bras. psicoter. 2016;18(1):93-106
Artigos de Revisao
Reflexoes sobre o silêncio em psicoterapia de orientaçao analítica
Reflections on silence in psychoanalytic psychotherapy
Nathália Janovik da Silva1; Sidnei Samuel Schestatsky2
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
CONSIDERAÇOES GERAIS SOBRE A NOÇAO DE SILENCIO
A etimologia da palavra silêncio - do latim silentiu -, aliada aos seus significados na língua portuguesa - estado de quem cala, privaçao de falar, sigilo, segredo -, remete aos conceitos de subjetividade e singularidade, que, no setting terapêutico, estao relacionados à existência de um sujeito que se recusa a fazer o uso da linguagem1
Desde a origem da psicoterapia/psicanálise, trabalha-se a "cura pela fala" - a "talking cure". A fala é, por assim dizer, um dos principais recursos utilizados em psicoterapia, sendo considerado pressuposto importante para promover o acesso ao inconsciente e levar às mudanças psíquicas almejadas no processo terapêutico. O terapeuta trabalha a partir de técnicas expressas pela linguagem, como a associaçao livre, apontada pela obra freudiana como uma potente forma de revelaçao do inconsciente em psicoterapia.
No entanto, já em 1895, em "Estudos sobre a histeria"2, Freud já observava a existência de forças que se opunham à associaçao livre e à expressao verbal, o que chamou de resistências, fazendo uma alusao indireta ao silêncio. Posteriormente, no seu artigo "A dinâmica da transferência"3, Freud define a transferência como resistência, mas ao mesmo tempo como a principal ferramenta de trabalho da psicoterapia/psicanálise. Afirmou que "se as associaçoes de um paciente faltam, a interrupçao pode invariavelmente ser removida pela garantia de que ele está sendo dominado, momentaneamente, por uma associaçao relacionada com o próprio médico ou com algo a este vinculado". Assim, é através do silêncio, quando muitas vezes o paciente nao tem nada a dizer e o analista se cala, que se cria o espaço para a transferência.
O silêncio é um tema bastante presente em psicoterapia de orientaçao analítica, ainda que seja pouco explorado pela literatura. O objetivo deste trabalho é, portanto, apresentar uma revisao bibliográfica desse tópico, tanto por parte do paciente quanto do terapeuta, ampliando a leitura dos diversos significados que podem ser atribuídos ao fenômeno do silêncio. Para isso, foram selecionados artigos a partir das bases de dados MEDLINE e LILACS com os descritores "psychotherapy, psychoanalysis, psychoanalytic theory and silence", bem obras clássicas da psicoterapia/psicanálise.
O SILENCIO EM PSICOTERAPIA: REVISITANDO A LITERATURA
Imaginemos o seguinte cenário: o paciente está na sessao de psicoterapia, falando sobre sua mae deprimida. O psicoterapeuta está ouvindo atentamente o relato, fazendo ligaçoes provisórias em sua mente que podem, posteriormente, levar a uma interpretaçao. Entao, inesperadamente, o paciente para de falar, deixando a frase no ar, como se nao pudesse encontrar em qualquer lugar as palavras certas para completá-la; ou como se, tendo-as encontrado, nao conseguisse pronunciá-las. Nesse momento, o mais adequado seria aguardar e pensar sobre o que poderia ter acontecido. O silêncio do paciente estaria relacionado com o conteúdo do que ele estava falando e, de tao desconfortável, subitamente cessa o discurso? Seria o resultado de uma invasao repentina na sua mente de uma fantasia perturbadora, no seu rol de associaçoes? Seria uma resposta a algo que ele imaginava que estava fazendo, pensando ou sentindo, enquanto estava falando sobre determinado tema? Ou, ainda, estaria relacionado com alguma dificuldade encontrada na relaçao com o terapeuta? O fato é que alguma dessas contingências pode golpeá-lo como sendo o correto e causar-lhe uma brutal e desconfortável ansiedade. Logo após esse momento, o paciente pode ter recomeçado a falar, talvez comentando sobre seu silêncio; ou continuar como se nenhuma pausa no seu fluxo de pensamentos e palavras tivesse ocorrido; ou mudar para um tópico aparentemente nao relacionado, que poderia lhe dar alguma indicaçao das razoes escondidas atrás da sua súbita interrupçao verbal.
Como se percebe a partir desta breve ilustraçao, diversos significados podem ser atribuídos ao silêncio no contexto psicoterápico. A seguir, apresentamos alguns deles, o que contribuirá para o seu melhor entendimento na prática clínica.
SILENCIO E RESISTENCIA
Desde sua criaçao, a psicoterapia/psicanálise foi concebida como a "cura pela fala", nome criado por Anna O. ao tratamento que estava recebendo por Breuer2. Essa dimensao de uma "talking cure" permaneceu ligada à técnica psicoterápica, e com boas razoes: a comunicaçao entre analista e paciente ocorre principalmente através das palavras. Freud, em 1926, dizia que "nada acontece entre eles, exceto que eles falam uns com os outros", comparando as ferramentas do psicanalista com as de outros médicos.
Os primeiros métodos de Freud, implementados nao só por razoes terapêuticas, mas também para fornecer um fluxo de dados para a investigaçao de suas teorias recém-descobertas, foram projetados principalmente para tornar consciente o inconsciente através da verbalizaçao de pensamentos e sentimentos reprimidos. Esse objetivo estava de acordo com a sua descoberta do conteúdo mental presente no inconsciente e com a entao existente teoria da libido, após o seu abandono da hipnose. O objetivo desses dispositivos foi principalmente a própria necessidade de Freud para fazer com que o paciente pudesse falar.
Em seus artigos sobre a técnica psicanalítica, Freud abordou mais precisamente o significado e as inferências associadas ao silêncio, o que hoje reconhecemos como manifestaçoes clássicas de resistência, isto é, o silêncio como resistência a pensamentos a respeito do analista, e o silêncio como resistência a lembrar de determinadas circunstâncias que sao fonte de ansiedade, com tendência à repetiçao e nao elaboraçao.
No primeiro desses casos, em "A dinâmica da transferência"3, Freud escreveu:
[...] A nossa experiência tem nos mostrado, e o fato pode ser confirmado como muitas vezes nos agrada, que se as associaçoes livres do paciente falham (nota: eu quero dizer quando realmente param e nao quando, por exemplo, o paciente as mantém retidas devido a um sentimento de desprazer), a paralisaçao pode invariavelmente ser removida por uma garantia de que ele está sendo dominado, no momento, por uma associaçao que se preocupa com o próprio médico ou com algo que o conecta ao médico. Assim que esta explicaçao é dada, a paralisaçao é removida, e a ausência de pensamentos foi transformada em uma recusa a falar [...].
[...] Quando se anuncia a regra fundamental da psicanálise a um paciente com uma história de vida cheia de acontecimentos, e uma longa história de doença, entao, quando se pede para que ele diga o que ocorre à sua mente, espera-se que derrame uma enxurrada de informaçoes; mas, muitas vezes, a primeira coisa que acontece é que ele nao tem nada a dizer. Ele é silencioso e declara que nada lhe ocorre. Isso, é claro, é apenas uma repetiçao de uma atitude homossexual que vem à tona como uma resistência contra lembrar de nada. Enquanto o paciente está em tratamento, ele nao pode escapar dessa compulsao à repetiçao [...].
[...] Quando o ego estabiliza a realizaçao do controle do corpo e torna-se automático, as emoçoes de raiva e prazer, que até entao acompanhavam descargas corporais, devem ser tratadas de outra maneira. Ao mesmo tempo em que o controle esfincteriano sobre ânus e a uretra está sendo estabelecido, a criança está adquirindo o poder do discurso [...]. [...] Em primeiro lugar, a descarga da tensao quando esta já nao é aliviada por descargas físicas pode ocorrer através da fala. A atividade de falar é substituída pela atividade física agora restrita a outras aberturas do corpo, enquanto as próprias palavras tornam-se os próprios substitutos para a substância corporal [...].
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