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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2016; 18(1):93-106



Artigos de Revisao

Reflexoes sobre o silêncio em psicoterapia de orientaçao analítica

Reflections on silence in psychoanalytic psychotherapy

Nathália Janovik da Silva1; Sidnei Samuel Schestatsky2

Resumo

Desde a origem da psicoterapia/psicanálise, trabalha-se a "cura pela fala" - a "talking cure". A fala é, por assim dizer, um dos principais recursos utilizados em psicoterapia, sendo considerado pressuposto importante para promover o acesso ao inconsciente e levar às mudanças psíquicas almejadas no processo terapêutico. Ampliando esse conceito, acredita-se que tao importante quanto a verbalizaçao é o silêncio em psicoterapia, que, embora seja bastante frequente na prática psicoterápica, sua abordagem como alvo de estudos na literatura atual ainda é relativamente escassa. O objetivo deste trabalho é apresentar uma concisa revisao bibliográfica focada nos diferentes significados que o silêncio pode adquirir durante o processo psicoterápico - tanto do paciente quanto do terapeuta -, desde as contribuiçoes de Freud até reflexoes mais atuais sobre o silêncio em psicoterapia, fazendo uma ligeira inserçao sobre o tema na cultura contemporânea. Conclui-se, pois, que o silêncio em psicoterapia de orientaçao analítica pode adquirir diferentes significados e que acolhê-lo nas suas distintas esferas significa, acima de tudo, oferecer uma escuta verdadeiramente psicoterápica para os nossos pacientes, conseguindo ouvir o nao dito.

Descritores: Psicoterapia; Psicanálise; Teoria psicanalítica.

Abstract

Since the very beginning, psychotherapy/psychoanalysis has worked with the "talking cure" concept. The speech is one of the main resources used in psychotherapy and is considered an important prerequisite to promote access to the unconscious and give rise to the desired psychic changes in the therapeutic process. Extending this concept, it is believed that silence is as important as verbalization in psychotherapy. Although it is quite common in the psychotherapeutic practice, studies on silence are still comparatively scarce in the contemporary literature. The objective of this paper is to present a concise literature review focused on the different meanings that silence can acquire during the psychotherapeutic process - both the patient's and the therapist's -, from Freud's contributions to more current reflections on silence in psychotherapy, incorporating this subject in the contemporaneous culture. We conclude, therefore, that silence in psychoanalytic psychotherapy can carry different meanings and that accepting it in its different spheres means, above all, to offer our patients a truly psychotherapeutic listening, being able to listen to the unspoken.

Keywords: Psychotherapy; Psychoanalysis; Psychoanalytic theory.

 

 

INTRODUÇAO

CONSIDERAÇOES GERAIS SOBRE A NOÇAO DE SILENCIO


A etimologia da palavra silêncio - do latim silentiu -, aliada aos seus significados na língua portuguesa - estado de quem cala, privaçao de falar, sigilo, segredo -, remete aos conceitos de subjetividade e singularidade, que, no setting terapêutico, estao relacionados à existência de um sujeito que se recusa a fazer o uso da linguagem1

Desde a origem da psicoterapia/psicanálise, trabalha-se a "cura pela fala" - a "talking cure". A fala é, por assim dizer, um dos principais recursos utilizados em psicoterapia, sendo considerado pressuposto importante para promover o acesso ao inconsciente e levar às mudanças psíquicas almejadas no processo terapêutico. O terapeuta trabalha a partir de técnicas expressas pela linguagem, como a associaçao livre, apontada pela obra freudiana como uma potente forma de revelaçao do inconsciente em psicoterapia.

No entanto, já em 1895, em "Estudos sobre a histeria"2, Freud já observava a existência de forças que se opunham à associaçao livre e à expressao verbal, o que chamou de resistências, fazendo uma alusao indireta ao silêncio. Posteriormente, no seu artigo "A dinâmica da transferência"3, Freud define a transferência como resistência, mas ao mesmo tempo como a principal ferramenta de trabalho da psicoterapia/psicanálise. Afirmou que "se as associaçoes de um paciente faltam, a interrupçao pode invariavelmente ser removida pela garantia de que ele está sendo dominado, momentaneamente, por uma associaçao relacionada com o próprio médico ou com algo a este vinculado". Assim, é através do silêncio, quando muitas vezes o paciente nao tem nada a dizer e o analista se cala, que se cria o espaço para a transferência.

O silêncio é um tema bastante presente em psicoterapia de orientaçao analítica, ainda que seja pouco explorado pela literatura. O objetivo deste trabalho é, portanto, apresentar uma revisao bibliográfica desse tópico, tanto por parte do paciente quanto do terapeuta, ampliando a leitura dos diversos significados que podem ser atribuídos ao fenômeno do silêncio. Para isso, foram selecionados artigos a partir das bases de dados MEDLINE e LILACS com os descritores "psychotherapy, psychoanalysis, psychoanalytic theory and silence", bem obras clássicas da psicoterapia/psicanálise.


O SILENCIO EM PSICOTERAPIA: REVISITANDO A LITERATURA

Imaginemos o seguinte cenário: o paciente está na sessao de psicoterapia, falando sobre sua mae deprimida. O psicoterapeuta está ouvindo atentamente o relato, fazendo ligaçoes provisórias em sua mente que podem, posteriormente, levar a uma interpretaçao. Entao, inesperadamente, o paciente para de falar, deixando a frase no ar, como se nao pudesse encontrar em qualquer lugar as palavras certas para completá-la; ou como se, tendo-as encontrado, nao conseguisse pronunciá-las. Nesse momento, o mais adequado seria aguardar e pensar sobre o que poderia ter acontecido. O silêncio do paciente estaria relacionado com o conteúdo do que ele estava falando e, de tao desconfortável, subitamente cessa o discurso? Seria o resultado de uma invasao repentina na sua mente de uma fantasia perturbadora, no seu rol de associaçoes? Seria uma resposta a algo que ele imaginava que estava fazendo, pensando ou sentindo, enquanto estava falando sobre determinado tema? Ou, ainda, estaria relacionado com alguma dificuldade encontrada na relaçao com o terapeuta? O fato é que alguma dessas contingências pode golpeá-lo como sendo o correto e causar-lhe uma brutal e desconfortável ansiedade. Logo após esse momento, o paciente pode ter recomeçado a falar, talvez comentando sobre seu silêncio; ou continuar como se nenhuma pausa no seu fluxo de pensamentos e palavras tivesse ocorrido; ou mudar para um tópico aparentemente nao relacionado, que poderia lhe dar alguma indicaçao das razoes escondidas atrás da sua súbita interrupçao verbal.

Como se percebe a partir desta breve ilustraçao, diversos significados podem ser atribuídos ao silêncio no contexto psicoterápico. A seguir, apresentamos alguns deles, o que contribuirá para o seu melhor entendimento na prática clínica.


SILENCIO E RESISTENCIA

Desde sua criaçao, a psicoterapia/psicanálise foi concebida como a "cura pela fala", nome criado por Anna O. ao tratamento que estava recebendo por Breuer2. Essa dimensao de uma "talking cure" permaneceu ligada à técnica psicoterápica, e com boas razoes: a comunicaçao entre analista e paciente ocorre principalmente através das palavras. Freud, em 1926, dizia que "nada acontece entre eles, exceto que eles falam uns com os outros", comparando as ferramentas do psicanalista com as de outros médicos.

Os primeiros métodos de Freud, implementados nao só por razoes terapêuticas, mas também para fornecer um fluxo de dados para a investigaçao de suas teorias recém-descobertas, foram projetados principalmente para tornar consciente o inconsciente através da verbalizaçao de pensamentos e sentimentos reprimidos. Esse objetivo estava de acordo com a sua descoberta do conteúdo mental presente no inconsciente e com a entao existente teoria da libido, após o seu abandono da hipnose. O objetivo desses dispositivos foi principalmente a própria necessidade de Freud para fazer com que o paciente pudesse falar.

Em seus artigos sobre a técnica psicanalítica, Freud abordou mais precisamente o significado e as inferências associadas ao silêncio, o que hoje reconhecemos como manifestaçoes clássicas de resistência, isto é, o silêncio como resistência a pensamentos a respeito do analista, e o silêncio como resistência a lembrar de determinadas circunstâncias que sao fonte de ansiedade, com tendência à repetiçao e nao elaboraçao.

No primeiro desses casos, em "A dinâmica da transferência"3, Freud escreveu:

[...] A nossa experiência tem nos mostrado, e o fato pode ser confirmado como muitas vezes nos agrada, que se as associaçoes livres do paciente falham (nota: eu quero dizer quando realmente param e nao quando, por exemplo, o paciente as mantém retidas devido a um sentimento de desprazer), a paralisaçao pode invariavelmente ser removida por uma garantia de que ele está sendo dominado, no momento, por uma associaçao que se preocupa com o próprio médico ou com algo que o conecta ao médico. Assim que esta explicaçao é dada, a paralisaçao é removida, e a ausência de pensamentos foi transformada em uma recusa a falar [...].

É essa observaçao de Freud - ou seja, "a situaçao é alterada de uma em que as associaçoes falham para outra em que estao sendo retidas pelo paciente" - que esboçou muitas das percepçoes posteriores, bem como problemas na interpretaçao do silêncio com base nas posiçoes metapsicológicas estruturais e adaptativas. Com efeito, Freud parecia estar dizendo (em termos de seu modelo estrutural) que, se a resistência nao é removida, pelo menos ela foi transformada em um silêncio intrassistêmico4; ou um silêncio em que "as portas estao abertas" e a informaçao (conflito) está chegando, mas o paciente, por uma variedade de razoes, ainda nao é capaz de falar sobre isso. Em sua obra "Recordar, repetir, elaborar"5, Freud concentrou-se no silêncio sob a égide de repetir, em vez de lembrar, num ato de compulsao à repetiçao. Ele observou:

[...] Quando se anuncia a regra fundamental da psicanálise a um paciente com uma história de vida cheia de acontecimentos, e uma longa história de doença, entao, quando se pede para que ele diga o que ocorre à sua mente, espera-se que derrame uma enxurrada de informaçoes; mas, muitas vezes, a primeira coisa que acontece é que ele nao tem nada a dizer. Ele é silencioso e declara que nada lhe ocorre. Isso, é claro, é apenas uma repetiçao de uma atitude homossexual que vem à tona como uma resistência contra lembrar de nada. Enquanto o paciente está em tratamento, ele nao pode escapar dessa compulsao à repetiçao [...].

Aqui, a ênfase de Freud é colocada sobre a passividade escondida atrás de um silêncio, como uma "repetiçao de uma atitude homossexual" para lembrar; ou, dito em termos mais gerais, o silêncio serve como manobra defensiva contra um impulso ou desejo instintivo. Estendendo esse conceito para as noçoes atuais de ego, podemos afirmar que, quando o paciente começa a psicoterapia com o silêncio, trata-se, com toda a probabilidade, de uma reaçao passiva através da qual ou se defende dos seus impulsos inconscientes ou, como mais tarde outros autores vieram a melhor compreender, "descarrega-os". O paciente está, na verdade, dizendo: "diga-me o que fazer". O reconhecimento desse aspecto do silêncio, como tendo a ver com a defesa e descarga de impulsos, foi importante para desvendar outros significados ocultos e obscuros de silêncio.

Freud fazia referência ao significado específico de silêncio como o protótipo da repressao. A repressao como defesa poderia falhar, permitindo a entrada dos conflitos na consciência, sendo imediatamente repelidos através das defesas de projeçao, isolamento e negaçao. Nesses casos, estamos justificados ao falar de um conflito intrassistêmico, um conflito dentro do ego, no sentido de que os derivados instintivos entraram no reino do ego, mas ainda estao sendo repudiados por ele. Clinicamente, Freud propunha observar como o paciente continuaria a falar, desde que essas defesas intrassistêmicas fossem imperturbáveis. Se o terapeuta apontasse tais defesas ao paciente, um silêncio de maior ou menor duraçao poderia se instalar. Freud demonstrava ainda como a resistência inconsciente podia ser transformada em uma relutância consciente para falar, e pode ser usado de forma muito eficaz para demonstrar ao paciente a realidade de um conflito que até entao havia sido inconsciente. Na verdade, o silêncio foi levado à resistência à enésima potência, uma vez que era contrário à direçao do esforço terapêutico para facilitar a descarga dos impulsos negada pela barreira da repressao.

Um raciocínio semelhante é válido quando as forças do superego se opoem ao desejo do ego de colaborar com o tratamento psicoterápico, uma vez que o paciente pode tornar-se silencioso devido ao intenso temor de culpa, responsabilidade ou medo de retaliaçao/puniçao por parte do terapeuta, através da verbalizaçao dos seus conflitos e/ou impulsos. Portanto, no que tange à estruturaçao do aparelho psíquico proposta por Freud, o silêncio apareceria como uma manifestaçao consciente do ego em afastar ansiedades associadas às demandas do id ou do superego, bem como facilitar a descarga de derivados desses impulsos instintivos. O silêncio, à serviço da descarga, nao é necessariamente uma tentativa do paciente de controlar ou frustrar o psicoterapeuta, retendo o que as palavras faladas podem simbolizar, mas pode ser usado para induzir o analista a sentir o que ele, naquele momento, nao é capaz de tolerar dentro de si. De uma forma mágica, os pacientes vao sentir que, quando o intervalo do silêncio foi preenchido pelo psicoterapeuta, isso pode deixar a mensagem para o paciente de que ele nao é responsável por tais pensamentos. Há, portanto, silêncios por parte do paciente que exigem silêncio do analista.

Seguindo a revisao da literatura, encontramos em Ferenczi6 e Abraham7 os primeiros autores a lançarem ideias inovadoras sobre a técnica psicoterápica e a presença do silêncio na sessao. Ferenczi vinculou o silêncio a uma manifestaçao de erotismo anal e a um caráter marcadamente "retentor". A pausa do discurso estaria relacionada a uma retençao das fezes e a um sentimento de superioridade, igualando essa força com o aprisionamento de todos os sentimentos. Por outro lado, a verbalizaçao poderia ser equiparada à evacuaçao das fezes ou a um sentimento de fraqueza e debilidade. Já Abraham apontava que a funçao do discurso nao é apenas comunicativa, mas também serve para descarregar sentimentos instintivos, e, nesse sentido, o silêncio representaria uma defesa inconsciente contra a descarga de tais sentimentos conflituosos. Nao é por acaso que, em linguagem comum, a logorreia é, muitas vezes, descrita como "diarreia verbal", e o silêncio, considerado "de ouro". Quando as palavras sao simbolicamente associadas a fezes, o silêncio torna-se a expressao de prisao de ventre; um silêncio exibindo tais conotaçoes anais seria caracterizado também por uma atitude agressiva. Mais tarde, por volta de 1940,o processo do discurso foi conceituado por Ella Freeman Sharpe8 como um deslocamento da maturaçao das zonas erógenas, formulando-a como se segue:

[...] Quando o ego estabiliza a realizaçao do controle do corpo e torna-se automático, as emoçoes de raiva e prazer, que até entao acompanhavam descargas corporais, devem ser tratadas de outra maneira. Ao mesmo tempo em que o controle esfincteriano sobre ânus e a uretra está sendo estabelecido, a criança está adquirindo o poder do discurso [...]. [...] Em primeiro lugar, a descarga da tensao quando esta já nao é aliviada por descargas físicas pode ocorrer através da fala. A atividade de falar é substituída pela atividade física agora restrita a outras aberturas do corpo, enquanto as próprias palavras tornam-se os próprios substitutos para a substância corporal [...].

Quase uma década mais tarde, Fliess9 estendeu, sistematizou e validou esses conceitos prévios, ainda que altamente empíricos. Esse autor teorizou que o ato da fala, liberando afetos agressivos através da vocalizaçao, ajuda a superar a repressao de tais sentimentos. Dessa forma, esclareceu como alguns pacientes buscam regressivamente - através do silêncio, por exemplo - a mesma satisfaçao que tinham anteriormente, através do controle das zonas erógenas. De acordo com Fliess, o silêncio poderia corresponder a uma forma de fechamento do esfíncter, deslocado a partir das zonas erógenas para os órgaos e funçoes da fala, de modo a manter a repressao de impulsos pré-genitais. Tais pensamentos de Fliess eram extensoes diretas de formulaçoes teóricas de Sharpe no campo da metapsicologia da linguagem. Fenichel10, à semelhança de Sharpe e Fliess, também menciona a origem erótico-anal das dificuldades no processo da fala: "a retençao de palavras, assim como antes a retençao de fezes, pode ser uma garantia contra possíveis perdas ou uma atividade autoerótica prazerosa". Também poderia se postular a existência de um silêncio "fálico", termo empregado em publicaçao mais recente11. As palavras podem ser experimentadas como uma extensao do corpo, ou da psique, com a capacidade de "penetrar" nos ouvidos e mentes do ouvinte. Por sua vez, a linguagem em si é frequentemente erotizada e utilizada para fins sedutores. Nesse sentido, o silêncio é inconscientemente associado com uma impotência fálica e pode se tornar defesa contra ansiedades que pertencem a esse estágio de desenvolvimento. Manter o silêncio é uma forma de proteger os pais, o terapeuta e a si mesmo da exposiçao aos perigos da sexualidade e da agressao e retaliaçao que caracterizam o complexo de Édipo. O silêncio se torna uma espécie de autocensura, com efeito tranquilizador para que o paciente nao corra o risco de dizer nada de "errado".


SILENCIO E COMUNICAÇAO

Nos últimos anos, com o crescente foco sobre a compreensao da comunicaçao total - verbal e nao verbal - entre terapeuta e paciente, o significado do silêncio tem sido objeto central de pesquisa, com significados diversos, que nao apenas o de resistência, defesa ou descarga. Nao é sem razao, portanto, que o fenômeno do silêncio na situaçao psicoterápica, com sua ênfase no "paciente-falante" e "terapeuta-ouvinte"12, deve ser visto cada vez mais como uma forma particularmente significativa de comunicaçao psicoterapêutica. Expressoes pré-verbais e nao verbais, a linguagem corporal e o acting out estao quase sempre presentes e sao peças importantes se quisermos entender toda a complexidade do que os nossos pacientes estao, consciente e/ou inconscientemente, tentando nos dizer. Mas o que acontece entre as palavras?

Diferentes silêncios têm diferentes significados e todos sao ricamente sobrepostos uns aos outros. O silêncio nao é apenas uma ausência (de palavras), mas uma presença ativa de algo que, naquele momento, nao pode ser colocado no setting terapêutico. Já em 1901, Freud13 trouxe à tona a descoberta do significado dos atos falhos como ativos processos para a comunicaçao de algo que está reprimido. Tanto quanto nós nunca nos esquecemos de uma consulta médica, mas "decidimos" nao nos lembrar dela, o silêncio é mais do que somente uma falta de expressao verbal: é o resultado de um ativo processo que, como a repressao, requer um gasto de energia mental.

Silêncio, entao, tanto pode ser uma forma que o paciente tem de evitar dizer alguma coisa quanto ser uma maneira - talvez a única que o paciente dispoe - de dizer que nao há palavras que possam expressar o que está se passando com ele naquele momento. Pode expressar raiva, emoçao, desespero, gratidao, vazio, alegria, vergonha, desamparo ou qualquer outra emoçao. Por trás do silêncio, há uma fantasia inconsciente que o silêncio, como um sonho ou o sintoma, pode, ao mesmo tempo, esconder e/ou manifestar alguma coisa. Um silêncio, durante uma sessao psicoterápica, pode ser tratado como o conteúdo manifesto de um sonho: a ser "ouvido" e, à medida do possível, a ser traduzido para os desejos latentes, ideias e fantasias a partir dos quais pode se originar.

O silêncio, a serviço da comunicaçao na relaçao terapeuta-paciente, é significativo e merece ser escutado, porque invariavelmente está enraizado nas fantasias inconscientes e é fundamental no entendimento dos conflitos psíquicos do paciente. Pode-se postular que ele corresponde ao produto final de uma tensao entre diferentes forças psíquicas que, no contexto da relaçao terapêutica, é experimentado dentro da transferência e encontra sua manifestaçao como uma interrupçao do livre processo associativo. Nesse momento, a tarefa terapêutica mais importante é tentar esclarecer com o paciente por que ele nao pode falar, ao invés de tentar fazê-lo falar. Assim, como psicoterapeutas, temos a responsabilidade de ajudar nossos pacientes a nao entender exatamente o que eles dizem, mas também por que eles nao podem falar sobre o que eles estao silenciosos, ou seja: que tipo de informaçao eles estao tentando nos transmitir através do silêncio. Muitas vezes, situaçoes como estas sao encaradas como sinal de resistência por parte do paciente. No entanto, essa distorçao conceitual pode ser esclarecida se permitirmos que comportamentos nao verbais nao sejam necessariamente entendidos como resistência: nem sempre eles negam o acesso ao inconsciente, nem impedem o trabalho terapêutico. Isso é especialmente verdadeiro na comunicaçao de experiências que foram nao verbais, ou que pertenceram a uma fase pré-verbal do desenvolvimento.

Muitos silêncios compartilhados entre terapeuta e paciente sao momentos inundados de comunhao, onde pessoas diferentes podem compartilhar momentos de profundo apreço sem, no entanto, borrar os limites de cada um. Nos últimos anos, houve um questionamento cada vez maior da visao convencional do silêncio como resistência simples e de explorar seus valores comunicativos e integrativos. A própria estrutura da sessao psicoterápica presta-se a uma comunicaçao nao verbal. Qualidades "silenciosas" do setting, como a constância do meio ambiente, as horas fixas, a habilidade do psicoterapeuta para a empatia, a neutralidade, a contençao para manter o paciente e a situaçao, representam uma comunicaçao contínua em um nível nao verbal, análoga à comunicaçao na relaçao precoce estabelecida entre mae e filho. Outras abordagens da comunicaçao nao verbal incluem a expressao simbólica dos sintomas, os fenômenos de transferência e contratransferência. Algumas dessas interaçoes podem estar relacionadas a fenômenos sensoriais prévios e podem se tornar o ponto de partida para uma troca emocional, dando acesso à memória pré-verbal, onde é o corpo que se lembra. Fenômenos nao verbais, como postura corporal, coordenaçao motora, formas de respiraçao, dentre outros, podem conter importantes informaçoes para a compreensao da sintomatologia subjacente que, por enquanto, ainda nao pode ser verbalizada14. Especificamente na relaçao psicoterápica, como já havia apontado Kris15, o silêncio do paciente convida o terapeuta a vivenciar internamente as suas próprias fantasias emocionais. Os pacientes que tendem a cair em silêncios frequentes passam a observar mais atentamente seus terapeutas, a fim de avaliar sua reaçao e convencer-se de que tanto o silêncio quanto a comunicaçao afetiva que ele carrega serao tolerados pelo médico. Certos silêncios podem ser interpostos na continuidade das produçoes do paciente para que ele possa alcançar o "momento adequado" para a sua entrega.

Em muitas sessoes de psicoterapia, o silêncio como uma forma pré-verbal de comunicaçao pode ser uma maneira de regredir para um espaço mais seguro, assemelhando-se à fantasia do útero, do berço ou do dormir. Se o terapeuta, entao, respeita o silêncio do paciente, se empaticamente compreende e é capaz de responder a ele de forma adequada, seja através de boas interpretaçoes ou de seu próprio silêncio, o setting psicoterapêutico pode se tornar um espaço seguro tal que a psicoterapia passa a adquirir um caráter emocionalmente enriquecedor.


SILENCIO E MORTE

Desde a antiguidade, inúmeros poetas, e nao apenas os psicanalistas, postularam uma simbólica ligaçao entre o silêncio e a morte, nao apenas no sentido literal da palavra, mas principalmente com o significado de perda. O silêncio pode, assim, expressar a perda de um objeto amado (incluindo, aqui, o terapeuta) ou mesmo de partes de si mesmo; uma perda que pode ser real ou imaginária, experimentada no passado, temida no presente ou antecipada no futuro que se aproxima.

Nesses casos, o paciente silencioso aparece como uma pessoa que está em luto pela perda. Seu silêncio pode ser uma memória, uma repetiçao ou uma antecipaçao de separaçao de qualquer objeto, ou mesmo uma quebra psicoterápica constante, na medida em que o paciente vive na transferência a sensaçao de que está prestes a perder mais um objeto amado - o terapeuta. Postula-se que, por mais real que seja a experiência emocional vivida na transferência, ainda assim o silêncio nao representa a perda do terapeuta como uma pessoa ou como símbolo do processo psicoterápico. O silêncio pode expressar a falha no estabelecimento de uma relaçao de confiança com a pessoa que o terapeuta está representando na transferência. O luto pela perda quase iminente de um objeto confiável, continente e cuidador, vivida no aqui e agora, é expresso através de uma resposta silenciosa por parte do paciente. Trata-se, pois, de uma perda passada simbolizada através do silêncio e, como tal, deve ser entendida e interpretada.

Bollas16 referiu que o silêncio também pode simbolizar "a morte de si mesmo" e representar um impedimento ao surgimento de um self ainda escondido e embrionário. Se o self coeso de um estágio de desenvolvimento (Winnicott's True Self) nao obtiver a resposta afetiva adequada da mae, ou o seu representante, para confirmar a sua realidade subjetiva, ele poderá continuar indistinguível do objeto primário, ainda embrionário, "quase morto". A tarefa do terapeuta é permitir seu aparecimento ao compreender a situaçao do paciente, oferecendo uma relaçao de confiança para que este self, ainda altamente vulnerável, tenha uma nova oportunidade de crescimento. O silêncio, nesse caso, é uma tentativa de proteger sua existência autêntica de uma possível destruiçao.

Weinberger17 sugeriu que o silêncio teria uma funçao narcísica e que seria uma defesa contra o medo da perda da autoestima. Nesse contexto, Modell 18 salientou que determinado tipo de silêncio poderia ocorrer em pacientes com funcionamento narcisista, o que levaria a um "estado de casulo", com o objetivo de promover um controle onipotente dos sentimentos. Essa condiçao seria uma ilusao grandiosa da autossuficiência, motivada pelo medo da intimidade e da intrusao de terceiros, e serviria para tentar manter a autoestima e o controle interno dos afetos.


O SILENCIO DO TERAPEUTA

As explanaçoes de Theodore Reik19 sobre "o significado psicológico do Silêncio" foram uma das primeiras discussoes sobre desenvolvimento das interpretaçoes do paciente a respeito do silêncio do terapeuta. Reik observou que esse silêncio é sentido, no início, como um interesse benevolente. Mas, pouco a pouco, muda de significado e o silêncio do psicoterapeuta assume a qualidade de uma recusa em falar. O esforço do paciente torna-se, agora, dirigido a quebrar o silêncio do terapeuta. Mas nao importa o que tampouco o quanto ele produz, o silêncio continua. Entao, o paciente começa a senti-lo como uma negaçao absoluta. Esse é um período de intensa ansiedade entre a dupla terapêutica, e Reik conclui que esse desenvolvimento traça "um retorno de um sentimento que desempenhou um papel importante na relaçao do paciente com um objeto antigo de amor - da ternura original para a amargura sobre uma negaçao imaginada ou real. A passagem de uma interpretaçao do silêncio para outra nao é, de forma alguma, tao óbvia quanto pode parecer à primeira vista" (p. 181). Cada contrato psicoterápico inclui, em suas disposiçoes iniciais, uma simples declaraçao do método de tratamento, um compromisso financeiro claro e uma programaçao de horário de trabalho. Por causa de sua necessidade e desejo de ser ajudado, o paciente aceita essas condiçoes, chega na hora marcada e começa a tarefa psicoterápica de relatar verbalmente seus pensamentos e sentimentos conscientes. O psicoterapeuta observa e escuta. Nem terapeuta nem paciente tem conhecimento do curso que a psicoterapia tomará. Verbalizaçoes do paciente, juntamente com o silêncio do terapeuta, constituem a estrutura padrao do método. O papel acordado inicialmente em cima do paciente-falante e terapeuta-ouvinte continuará como a parte estrutural central do setting psicoterápico. Somente quando as primeiras intervençoes do psicoterapeuta ocorrem é que o paciente se torna um ouvinte. Durante o período preparatório nao verbal, se a relaçao que está começando é pautada em sentimentos de confiança e empatia, essa atmosfera psicoterápica permitirá ao paciente sentir que o silêncio do terapeuta lhe concede o direito de também ficar em silêncio, se ele ainda é incapaz de falar. Se o silêncio do terapeuta, no entanto, denota impaciência, tédio, indiferença ou hostilidade, será sentido pelo paciente como desaprovaçao, rejeiçao ou condenaçao20. As vezes sentimos uma necessidade de preencher o vácuo, para dizer algo, sem saber o que dizer. O conteúdo nos escapa. Apenas olhar em vao para o paciente entre o número infinito de possíveis combinaçoes de fonemas, e encontrar palavras sem sentido, frases incompletas, torna-se altamente ansiogênico. Resta-nos esperar, entao, presos ao nosso desconforto mudo, sabendo que, quanto mais tempo o nosso silêncio passa, mais difícil será quebrá-lo. Kahn21 indica que o silêncio do terapeuta tem de se relacionar com o paciente de duas maneiras diferentes, sendo uma delas o trabalho interpretativo que leva à compreensao; "o outro tipo de relacionamento, que é mais difícil de definir, é de fornecer cobertura para a autoexperiência do paciente na situaçao clínica". Considerando o que se passa no paciente, Bollas22 afirma que muito da passividade e do silêncio do paciente nao sao resistência, mas a memória da experiência precoce da criança de estar com a mae. Ele considera que é importante para o terapeuta, nessas situaçoes, estar ciente do fato de que a situaçao psicoterápica convida o paciente a se lembrar da relaçao de objeto mais antigo. "A expectativa do paciente de que o analista vai desempenhar uma funçao de transformaçao, nao é necessariamente um desejo, ou uma resistência ao trabalho analítico, mas pode, de fato, ser a resposta do paciente ao convite regressivo que o espaço analítico propoe" (p. 106). O silêncio de um paciente pode ser uma forma de protestar contra a regra fundamental do tratamento estabelecido. O terapeuta pode ser incapaz, por sua própria intolerância, ansiedade, psicopatologia ou conflitos psíquicos, de responder adequadamente. Ele pode tornar-se excessivamente silencioso, por meio de identificaçao com o paciente, que, por sua vez, pode experimentar tal situaçao como rejeiçao ou puniçao. No extremo oposto do espectro, o terapeuta pode se tornar "superinterpretativo", na tentativa de tranquilizar e "alimentar" o paciente com palavras. Se as palavras sao comparáveis à comida - por causa de suas conotaçoes orais e da funçao nutritiva e enriquecedora que pode ter -, o silêncio, em seguida, especialmente se prolongado e repetido, pode ser equiparado a uma forma simbólica de anorexia, em que tanto o paciente quanto o terapeuta sao mantidos em um estado de fome emocional.

Ferenczi23 aponta que um problema permanente para decidir é "quando se deve manter em silêncio e aguardar novas associaçoes, e em que ponto a manutençao do silêncio resultaria apenas em causar mais sofrimento ao paciente". Se o silêncio nao é necessariamente um espaço vazio de tempo, mas, ao contrário, muitas vezes é cheio de significados, quando e em que condiçoes o silêncio do terapeuta torna-se significativo e, assim, adquire o caráter de uma intervençao?

Intervençao em psicoterapia é geralmente considerada como um processo ativo, em que o psicoterapeuta diz ou faz alguma coisa. Obviamente, a maior parte do tempo, quando o paciente está sob livre associaçao, o silêncio do terapeuta nao é uma intervençao, mas o complemento passivo de uma atividade do paciente. Somente quando o silêncio do terapeuta é sentido, consciente ou inconscientemente, como um estímulo, entao ele é percebido pelo paciente como uma intervençao, desde que seja usado com uma boa dose de tato. Como Zeligs12 coloca: "o uso indevido da prerrogativa do terapeuta de silêncio, seja por omissao grave ou por incapacidade de fazer uma sutil ou oportuna intervençao (talvez apenas um grunhido ou um 'ah!'), podem ter efeitos notavelmente indesejáveis". Nao raro, o silêncio do terapeuta é sentido pelo paciente como uma ameaça. Ele poderá sentir-se diminuído na sua incapacidade de realizar ou, mesmo, sentir-se culpado pela falta de associaçoes/verbalizaçoes do seu terapeuta. Porém, mais frequentemente, o paciente sente o silêncio do terapeuta como um momento de acolhida e reage positivamente a ele.

Nesses casos, embora em um deles o silêncio tenha um caráter ameaçador e, no outro, um caráter empático, em ambos o silêncio do terapeuta é encarado como uma intervençao. Ademais, o silêncio, por vezes, pode ser o melhor caminho para frustrar a necessidade do paciente de provocar o terapeuta, seja através de palavras ou condutas agressivas, seja através de silêncios prolongados. Nesse processo, o silêncio do terapeuta é sentido como uma frustraçao, uma vez que o paciente deseja provocar raiva no terapeuta. A frustraçao da necessidade de chocar ou provocar o terapeuta pode levar à expressao de afetos reprimidos que, por sua vez, conduzem à exploraçao da motivaçao subjacente à necessidade de provocar ou assustar o terapeuta. O silêncio do terapeuta é inesperado e torna-se, entao, uma intervençao.

A maioria das razoes pelas quais o terapeuta permanece em silêncio é inerente à sua funçao no setting. Um silêncio um pouco menos deliberado ocorre quando o psicoterapeuta está em conflito sobre o que dizer ou como dizê-lo, e decide que o caminho mais seguro é manter-se calado. Nesse sentido, Brockbank24 refere que o silêncio do terapeuta é frequentemente resultado da sua contratransferência, a qual, muitas vezes, é racionalizada como neutralidade. Isso pode influenciar o paciente a também permanecer em silêncio, e apenas a compreensao dos sentimentos contratransferenciais permitirao ao terapeuta compreender o significado dessas situaçoes no processo terapêutico.

Se a psicoterapia de orientaçao analítica/psicanálise está principalmente preocupada com a atribuiçao de sentido à comunicaçao dos pacientes, e se acreditamos que os silêncios podem ser expressivos, entao uma das nossas mais importantes - e nao menos difíceis - funçoes como terapeutas é aprender sobre seus mundos interiores através da escuta dos seus silêncios, tao significativos quanto as suas palavras.


CONSIDERAÇOES FINAIS

Com a elaboraçao deste trabalho, foi possível explorar os possíveis significados do tema "silêncio em psicoterapia", bem como ampliar o conceito inicial do significado do silêncio para além do caráter resistencial no setting terapêutico, nos convocando a acolher mais pacientemente os momentos silenciosos dos pacientes em nossa prática clínica. Acolher os silêncios dos pacientes significa, acima de tudo, oferecer uma escuta verdadeiramente psicoterápica que, em nosso entendimento, está para além de apenas ouvir as palavras, mas que igualmente se define pelo nao dito, pela comunicaçao silenciosa firmada entre a dupla terapêutica.


REFERENCIAS

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1. Médica Psiquiatra/UFRGS. Psiquiatria de Adiçao/UFRGS. Doutoranda em Ciências Médicas: Psiquiatria/UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil
2. Médico Psiquiatra/UFRGS. Mestre em Saúde Pública/Harvard University. Doutor em Ciências Médicas: Psiquiatria/UFRGS. Professor titular do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS

Instituiçao: Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Correspondência
Nathália Janovik da Silva
Rua Ramiro Barcelos, 2350, bairro Rio Branco
90035-903 Porto Alegre, RS, Brasil
janovik.nathalia@gmail.com

Submetido em: 01/09/2015
Aceito em: 20/10/2015

 

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