ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2016; 18(1):82-92



Artigos de Revisao

Reflexoes acerca do brincar e seu lugar no infantil

Thoughts on playing and its place in childhood

Denise Bernardi

Resumo

O presente trabalho tem por objetivo promover uma reflexao a respeito da criança e do brincar na contemporaneidade. Atualmente, observa-se que o brincar é marcado pela "era" das tecnologias. Hoje, as crianças preferem permanecer mais tempo em frente à televisao e jogando videogame a se envolver em brincadeiras tradicionais. Para o desenvolvimento deste estudo realizou-se uma revisao de literatura utilizandose como base textos de autores de referência na temática do brincar. Ainda foram analisados textos de autores contemporâneos que pesquisam sobre esse tema. Apesar de a literatura indicar que o brincar é um importante instrumento para o desenvolvimento infantil, atualmente ele parece nao ser reconhecido pelos profissionais como tal, já que seu uso está cada vez mais reduzido. Acredita-se, desse modo, que essa temática ainda necessita ser discutida e ampliada entre os profissionais que atuam no contexto infantil.

Descritores: Jogos e brinquedos; Criança. Psicanálise; Desenvolvimento infantil.

Abstract

The present project has an aim to promote a reflection on child and playing in contemporary society. Nowadays, it is observed that playing is marked through the "technologies era". Today kids prefer to spend more time in front of the TV and playing videogame rather than getting involved in traditional games. In order to develop this study, a literature review was carried out using as a basis texts from reference authors in the playing theme. Yet, texts from contemporary authors who search about this theme were analyzed. Although the literature indicate that the play is an important tool for child development, currently it does not seem to be recognized by professionals as such, since its use is increasingly reduced. It is believed, therefore, that this issue still needs to be discussed and expanded between professionals working in the child context.

Keywords: Game Theory; Child; Psychoanalysis; Child Development.

 

 

INTRODUÇAO

Os jogos e brincadeiras, entendidos como ato de brincar, permitem a entrada da criança em um mundo no qual tudo pode acontecer. Nesse espaço, o imaginário é convidado a, ilusoriamente, criar personagens, inventar histórias, divertir-se, fantasiar e satisfazer desejos.

O ato de brincar é uma atividade fundamental para o desenvolvimento da criança. Por meio da brincadeira, ela tem a oportunidade de elaborar conflitos e fantasias inconscientes, desenvolver sua capacidade de criatividade, aprender a controlar seus impulsos e a lidar com seus medos1. A brincadeira promove o crescimento do indivíduo e o conduz aos relacionamentos grupais, sendo uma forma de comunicaçao consigo mesmo e com os outros2.

A escolha de refletir sobre esse tema foi motivada pelas vivências da autora enquanto psicóloga, no âmbito clínico e escolar infantil. Na prática profissional com esse público, foi possível observar uma diminuiçao do tempo destinado ao lúdico, o que levantou questionamentos, visto que os jogos e brincadeiras sao importantes para o desenvolvimento da criança.

A construçao do conhecimento, o aprendizado e a socializaçao iniciam-se através do ato de brincar, porém atualmente observa-se que os jogos e brincadeiras têm sido pouco explorados nos ambientes em que a criança está inserida. Na atualidade, em locais como o ambiente escolar, o momento do lúdico na rotina infantil parece ter apenas o objetivo de distrair e entreter a criança, de modo que o brincar nao parece estar sendo utilizado como um recurso que pode favorecer o desenvolvimento infantil.

O presente trabalho consiste em uma de revisao da literatura. Nele pretende-se discutir sobre o lugar destinado ao lúdico, em especial no contexto escolar infantil. Ainda, pretende-se discutir sobre as transformaçoes pelas quais os brinquedos passaram, e a funçao que o brincar tem na estruturaçao do psiquismo infantil. Para realizaçao deste estudo, tomou-se como base textos de autores que se tornaram referência por desenvolverem trabalhos sobre a temática do brincar, dentre eles Sigmund Freud, Donald Winnicott e Melanie Klein. Também foram analisados textos de autores contemporâneos que pesquisam sobre essa mesma temática.

No levantamento dos materiais, encontrou-se uma vasta quantidade de estudos sobre a temática do brincar; desse modo, alguns critérios foram levados em consideraçao para a seleçao do material. Foram selecionadas pesquisas que abordavam em especial as mudanças na construçao dos brinquedos e a funçao do brincar na estruturaçao do psiquismo da criança, por acreditar ser este um importante campo a ser analisado, visto que ao longo do tempo os brinquedos infantis sofreram intensas transformaçoes que podem ter influenciado na sua funçao estruturante do psiquismo infantil. A busca dos textos aconteceu por meio das bases de dados disponíveis on-line: LILACS e SciELO. As palavras-chave utilizadas foram: brincar, criança, infância, brincadeiras, desenvolvimento infantil e novas tecnologias. Com estas foram feitas diversas combinaçoes.


AS TRANSFORMAÇOES DA INFANCIA E DO BRINQUEDO

Na Idade Média nao existia uma distinçao entre a criança e o adulto, sendo esta considerada um adulto de pequeno tamanho, executando, assim, as mesmas atividades que os mais velhos. Nesse período nao se dispensava um tratamento especial para as crianças. A infância era considerada como um momento de transiçao para a vida adulta3.

Na contemporaneidade, o fato de a criança poder brincar e ir à escola sugere-nos algo natural, mas o conceito que se tem hoje sobre a infância passou por diversas modificaçoes. Na sociedade medieval, a ideia de infância nao existia; a criança ingressava no mundo dos adultos desde muito cedo. Assim que superava o período de alto grau de mortalidade, e podia viver sem os cuidados da mae e/ou ama, ela já era confundida com adultos. A criança participava das mesmas festas, usava o mesmo estilo de roupas, brincava e jogava os mesmos jogos que os adultos. Nesse período nao havia objetos específicos para as crianças brincarem4.

A fabricaçao de brinquedos nasceu na Alemanha, em seus primórdios, por fabricantes nao especializados, como oficinas de entalhadores de madeiras ou de fundidores de estanho. Antes disso, o brinquedo representava um produto secundário das diversas indústrias manufatureiras. Nesse período, os objetos usados nas brincadeiras infantis eram pequenas peças que faziam parte da decoraçao das casas e eram produzidos em madeira e cera. Posteriormente, eles tornaram-se peças maiores, produzidas também em metal, vidro e papel. Nessa época nao havia distinçao de gênero entre os brinquedos produzidos para as crianças. No decorrer do século XVIII, os brinquedos passaram a aparecer no mercado de fabricantes especializados no ramo. Antes do século XIX, sua produçao nao era funçao de uma única indústria específica5.

Com o passar do tempo, a comercializaçao de brinquedos foi crescendo e ganhando espaço no cenário mundial. Houve uma modificaçao gradual do brinquedo, que inicialmente era produzido em modelos artesanais e posteriormente adquiriu um formato industrializado. Os brinquedos, que eram produtos simples e rústicos, foram sendo substituídos por outros, produzidos em série e com materiais sofisticados6.

Desse modo, observa-se que a concepçao que se tem atualmente sobre os brinquedos passou por diversas transformaçoes ao longo dos séculos, assim como os conceitos de infância e do brincar. A infância foi reconhecida há pouco mais de 200 anos. De lá para cá, vivenciamos avanços e retrocessos na concepçao que construímos com relaçao à criança. O modo como esta é encarada nos dias atuais ainda conserva traços que pertenceram a outros tempos7.

A origem da palavra infância e o conceito que se tem sobre ela vêm se modificando constantemente, devido a estímulos que levam à adultizaçao da criança, pois "tanto quanto as diferentes formas de vestir, as brincadeiras de criança, antes tao visíveis nas ruas das nossas cidades, estao desaparecendo"8. Atualmente a criança vive sob o domínio de várias influências culturais, e desde cedo tem um papel "a cumprir" frente à sociedade, como: telespectadora, colecionadora e consumidora9.

Na contemporaneidade, o brinquedo é produzido com um novo design. Esses artefatos lúdicos sao projetados com base em estudos científicos. Os jogos eletrônicos, como os videogames, apresentam-se a serviço da ludicidade contemporânea, que exige a produçao de um brinquedo racionalizado, concebido a partir de uma avaliaçao do perfil infantil ao qual se destina o consumo desses objetos10.

Observamos em nossa prática com o público infantil que o envolvimento das crianças com os equipamentos eletrônicos parece atualmente ter substituído o uso dos brinquedos. O computador, a internet, o videogame e a televisao fazem parte da rotina diária da criança. Ainda, existem programas de televisao específicos destinados para esse público e campanhas publicitárias que anunciam a todo o momento novidades criadas especialmente para satisfazer as crianças, como uma infinidade de objetos eletrônicos, que se distanciam muito dos brinquedos tradicionais, como a bola, o peao e a boneca. Os brinquedos atuais oferecidos ao público infantil costumam ser descartáveis e rapidamente tornam-se pouco interessantes, o que faz com que, constantemente, sejam substituídos por outros mais modernos6.

Nota-se também que na contemporaneidade o espaço disponível para a criança brincar tem sido mais restrito. A tecnologia praticamente domina o seu dia a dia. Devido aos recursos tecnológicos disponíveis, muitas das brincadeiras tradicionais acabaram desaparecendo11.

O aperfeiçoamento e a sofisticaçao da indústria tecnológica levaram à produçao dos brinquedos do século XXI quase que exclusivamente de forma automática e mecanizada, o que nos leva a questionar sua influência na estruturaçao do psiquismo infantil. Um brinquedo que funciona a pilhas, em que a criança brinca sozinha e é convidada a "apenas" apertar o play, ficando passiva nesse processo e participando como espectadora nesse brincar, poderia ter implicaçoes em seu desenvolvimento?


O BRINCAR E O DESENVOLVIMENTO INFANTIL

O jogo nasce na relaçao que o bebê estabelece com sua mae, quando esta cuida dele. Trata-se frequentemente de jogos caracterizados por sons, balbucios e verbalizaçoes, que subentendem trocas comunicativas12. Nos primeiros anos de vida, as brincadeiras podem ser traduzidas como formas de autoconhecimento. Nesse período, os brinquedos utilizados pelo bebê sao partes do seu próprio corpo, como suas maos e pés13.

As brincadeiras do bebê propiciam o conhecimento de suas possibilidades e limitaçoes sensório-motoras, além de possibilitar o conhecimento do outro e do ambiente. Essas brincadeiras servem de base para o desenvolvimento cognitivo posterior14.

O brincar é uma ponte que liga o real ao imaginário. De forma inconsciente, a criança reinscreve no mundo externo conteúdos de seu mundo interno. A brincadeira, desse modo, tem uma funçao importante, uma vez que funciona como uma forma de defesa contra a ansiedade que os conteúdos internos podem ocasionar. A atividade lúdica serve como uma descarga emocional, na qual é possibilitada a reediçao dos conflitos infantis.

Assim, o prazer que as crianças encontram durante a brincadeira ocorre nao somente por esta gratificar seus impulsos de realizaçao de desejo, mas também pelo fato de permitir o domínio de suas angústias15. Por meio da brincadeira, a criança tem a oportunidade de reproduzir uma experiência traumática, modificando-a de forma que possa elaborar a experiência anterior, substituindo um sentimento desagradável pelo prazer gerado através do brincar.

A brincadeira ainda proporciona o desenvolvimento dos aspectos sociais, devido à oportunidade de interaçao. Através da brincadeira, a criança tem a possibilidade de conhecer seus próprios limites. Por meio do brincar ela pode elaborar sentimentos, reconhecer e controlar suas emoçoes.

Ao brincar, as crianças superam aspectos desagradáveis da realidade. O brinquedo as ajuda a dominar os medos instintivos e perigos internos por meio da projeçao destes para o mundo exterior. Por meio dessa projeçao, a criança consegue deslocar suas angústias para fora. Na tentativa de dominar sua dor, ela desloca os perigos instintivos e internos para o mundo exterior, o que oportuniza à criança nao só vencer o medo que estes lhe inspiram, como também estar mais preparada contra eles. As atividades lúdicas criam, desse modo, uma ligaçao entre a fantasia e a realidade e ajudam a criança a dominar o medo dos perigos internos e externos15.

Os jogos e brincadeiras oportunizam à criança recriar e modificar algo que ela nao tenha elaborado. Através do ato lúdico, ela pode simbolizar seus medos e problemas, resolvendo-os em outro contexto16.

Na medida em que brinca, a criança aprende a lidar com a realidade, o que é importante para sua saúde mental. Brincando, ela vai se introduzindo na esfera social e cultural, quando passa de um brincar individual para um grupal, fazendo-a perceber e sentir a necessidade de estar junto, aprendendo a dividir e ceder seus brinquedos. É por meio do brincar que a criança estabelece essa relaçao com o outro. No brincar em grupo, ela aprende a construir sua realidade social compartilhada e através disso encontra espaço para explorar, criar e descobrir novas coisas e novos jeitos de lidar com uma mesma situaçao14.

Na brincadeira espontânea, a criança é livre para exercer domínio sobre seu próprio mundo, criando diferentes formas de solucionar seus conflitos através da imaginaçao. O exercício da imaginaçao habilita a criança a suportar mais facilmente as frustraçoes que encontra na realidade, aprendendo a lidar simbolicamente com algo que a ameaça. Quando brinca, a criança se desafia a crescer e avançar para novas etapas13.

Em 1920 Freud fez referência à brincadeira criada por seu neto de um ano e meio, que fazia aparecer e desaparecer um carretel de madeira amarrado com um cordao em volta dele. A criança, por meio da brincadeira com o carretel, buscava dominar sua angústia em relaçao à ausência da mae. Tratava-se de um jogo em que o menino brincava de "ir embora" com seus brinquedos, representando assim o distanciamento da mae. Através dessa descriçao é possível observar que a brincadeira pode oportunizar à criança ter fantasias em relaçao à figura materna, podendo elaborar sua dor. Assim, por meio do lúdico o sujeito tem a possibilidade de se reorganizar frente às suas angústias e ter mais autonomia, aprendendo a externalizar seus conflitos e a lidar com a própria agressividade17.

Ao brincar, a criança nao se situa apenas no momento presente. Ela também se coloca frente a seu passado e futuro. O brincar é uma atividade terapêutica que possibilita que a criança supere situaçoes traumáticas, simbolizando, falando e representando conteúdos que a perturbam. O brinquedo, da mesma forma que o brincar, nao é um objeto neutro, pois ele representa a história da criança por meio de outros objetos16.

Porém, é importante que existam condiçoes para que o brincar aconteça:

É preciso que haja abertura para o brincar e, consequentemente, para as criaçoes que ele possibilita. No universo infantil, um discurso pode ser uma história, um boneco pode ser um pai, uma casa pode ser um aviao, uma caixa pode ser um telefone, de tal forma que uma coisa pode sempre remeter a outra, em uma série de infinitas possibilidades, cuja significaçao só adquire força quando alguém lhe dá um contorno, transmitindo-lhe sentidos capazes de inscrevê-la em uma narrativa pessoal18.

A criança que brinca é favorecida em vários aspectos, já que a atividade lúdica estimula sua criatividade, promove sua autonomia e oportuniza um maior conhecimento sobre si mesma. Na brincadeira, a criança é convidada a dividir, ceder, esperar sua vez e vivenciar uma série de regras. Nesse ato, ela aprende a conviver com o outro e a respeitá-lo. Entretanto, questiona-se qual espaço, hoje, é oportunizado para a criança vivenciar esses aspectos, já que, se observarmos a rotina das crianças em um dos contextos nos quais ela está inserida, como a escola, é possível perceber a diminuiçao dos momentos destinados para brincar nesse ambiente:

Nos raros momentos em que sao propostos, os jogos e brincadeiras sao separados rigidamente das atividades escolares, como o "canto" dos brinquedos ou o "dia do brinquedo", assim mesmo, o brinquedo apenas é encontrado nas escolas infantis, nas classes de ensino fundamental estas alternativas sao abominadas, já que os alunos estao ali para "aprender, nao para brincar". O brincar, estando de fora do currículo escolar, nao contamina as demais tarefas escolares, sendo mantido sob controle. Só se brinca na escola se sobrar tempo ou na hora do recreio, sendo que estes momentos correm, permanentemente, o risco de serem suprimidos, seja por má conduta, seja por nao ter feito o dever de casa ou ainda por nao ter dado tempo19.

Percebe-se, desse modo, conforme apontado por Fortuna19, que na atualidade os momentos destinados para a brincadeira sao frequentemente substituídos por outras atividades consideradas mais relevantes. Concorda-se com as afirmaçoes do autor, visto que, através da atuaçao com esse público, observamos que o uso do brincar, que poderia ser utilizado como um recurso a contribuir no processo de ensino-aprendizagem, dificilmente aparece atrelado a essas atividades. Nao raro para manter o currículo escolar em dia, a primeira atividade a ser retirada da rotina das crianças é "a hora do brincar".

Esses apontamentos levantam importantes questionamentos e reflexoes sobre o brincar e seu uso. Na atual realidade, a maioria das crianças passa grande parte do seu dia no ambiente escolar, e, se nao brincam na escola, nos questionamos onde as crianças estao brincando.


UM NOVO JEITO DE BRINCAR

O avanço na área tecnológica permitiu que as indústrias fossem aperfeiçoando seus brinquedos, criando jogos que tudo fazem. Bonecas que cantam, trenzinhos que andam e apitam sozinhos, carrinhos movidos a pilha e ursos que contam histórias. Como consequência, o que se percebe é um empobrecimento na forma como as crianças brincam. Atualmente, os brinquedos têm vida própria e agem sozinhos, permitindo assim de forma restrita que as crianças interfiram em seu funcionamento13.

O surgimento da internet e o aprimoramento dos meios tecnológicos vêm influenciando em uma série de mudanças na vida das pessoas. Essas transformaçoes trouxeram possibilidades em diversos aspectos. Os avanços da tecnologia possibilitaram o aparecimento de novas formas de estabelecer relaçoes, de se comunicar, de trabalhar, de alcançar informaçoes e notícias, assim como a indústria tecnológica também apresentou novos formatos aos brinquedos, o que repercutiu na forma de brincar6.

Atualmente, há um número muito grande de brinquedos automáticos, movidos a pilha ou a bateria, que diminuem a possibilidade da criança de fantasiar, criar e transformar esses objetos. Os brinquedos de última geraçao introduzem a criança em um brincar de maneira acelerada. As imagens sao instantâneas e exigem pressa na atuaçao da criança. Com regras preestabelecidas e ritmo programado, o brinquedo nao dá tempo para a criança pensar. Passiva, sem espaço para atuar, ela nao exercita seus poderes para desvendar o desconhecido13.

Apesar de novas formas de interatividade nos jogos eletrônicos surgirem a todo o momento, nota-se que uma criança jogando videogame possui pouco espaço para criar, já que os jogos vêm com um roteiro predeterminado. Mesmo que seja possível optar entre tarefas paralelas ou secundárias, geralmente é vivenciado de forma solitária. Nesses jogos também é possível permanecer horas frente à tela, brincando, sem a presença de outra pessoa. Os jogos eletrônicos parecem assim nao possuir a mesma dimensao simbólica das brincadeiras tradicionais. Esses brinquedos podem empobrecer a experiência da troca em presença6.

Entre os diversos produtos destinados às crianças, os brinquedos sao os que mais seduzem o universo infantil. A indústria de brinquedos movimenta milhoes todos os anos, utilizando-se de diversos recursos para encantar e atrair seu público, tornando as crianças consumidoras fiéis. Os brinquedos sao inventados pelos adultos, transmitidos pela mídia e vastamente comercializados, incentivando um consumo supérfluo que é rapidamente substituído20.

Os brinquedos modernos têm o poder de atrair e seduzir o público infantil, contudo mostram-se distantes de seu valor como instrumentos do brincar, já que desviam a brincadeira viva e ativa. Os novos artefatos da ludicidade ainda parecem limitar a criança, que perde a oportunidade de fantasiar, interagir e criar5.

Na atualidade, o brincar é marcado pela "era" das tecnologias. Hoje as crianças permanecem mais tempo em frente à televisao, jogando videogame e "navegando" na internet do que envolvidas em brincadeiras tradicionais, como pular corda, brincar de casinha ou jogar bola. A televisao vem ocupando um espaço importante no cotidiano das pessoas. As crianças acabam passando grande parte do tempo que estao em casa em frente a esse aparelho. Existem na atualidade diversos programas criados em especial para atrair a atençao do público infantil6.

Entretanto, o elevado uso dos equipamentos eletrônicos tem sido associado à violência observada nas brincadeiras infantis. Em uma pesquisa realizada por Caiado & Pereira21 com acadêmicos concluintes do curso de Pedagogia, os entrevistados destacaram a violência observada na interaçao entre as crianças, fato que também observamos em nossa prática no contexto escolar infantil. Os participantes da pesquisa atrelaram a violência nas brincadeiras ao elevado uso da televisao, do videogame e do computador.

Além de aspectos relacionados à violência, o uso do computador e dos jogos eletrônicos parece trazer consequências a outras esferas, dentre elas a cogniçao humana. Em especial no que se refere à atençao, a interaçao do homem com os jogos de videogame tem apontado para alteraçoes perceptocognitivas22.

O uso desses artefatos tem sido alvo de preocupaçao, na medida em que tem aumentado progressivamente o tempo que os jovens passam em contato com os jogos eletrônicos, acarretando desse modo prejuízo no desempenho acadêmico, comportamentos de dependência, impulsividade e isolamento social23,24,25. O uso dos jogos eletrônicos contribuiu para um estilo de vida mais sedentário e menos ativo, o que também pode ser apontado como um possível prejuízo para o desenvolvimento motor das crianças. Entretanto, enquanto alguns prejuízos sao atrelados ao uso dos jogos eletrônicos, cabe destacar que alguns estudos apontam benefícios em decorrência da utilizaçao desses artefatos26,27, como a sugestao de que o uso dos jogos eletrônicos poderia facilitar o processo de aprendizado.


CONSIDERAÇOES FINAIS

O ato de brincar nao é apenas uma açao espontânea de um determinado momento, ele traz a história de cada criança, revelando seus enigmas e suas questoes. É brincando que a criança revela seus conflitos, de forma semelhante à dos adultos, que revelam esses conflitos através da fala16. Brincar, fantasiar e imaginar sao açoes que antecedem o racional e que vao além da realidade. Eles sao necessários para o desenvolvimento psíquico e das capacidades criativas, sendo importantes para a ampliaçao das zonas de relaçao entre o sujeito e o seu mundo. O brincar, desse modo, é um elemento fundamental na vida da criança27,28,29.

Contudo, através da prática profissional com crianças, em especial no contexto escolar infantil, observamos que o tempo destinado para o brincar parece estar cada vez mais reduzido. Esse dado também é apontado por Caiado & Pereira21 através de uma pesquisa realizada com 48 acadêmicos concluintes do curso de Pedagogia, na qual foi investigado sobre o uso do brincar no contexto escolar. Os participantes do estudo referiram que consideram muito pouco o tempo que é destinado para as crianças brincarem no âmbito escolar na atualidade.

O brincar parece desse modo estar sendo mantido em segundo plano, ou usado apenas como forma de entretenimento ou para ocupar o tempo ocioso das crianças. Os brinquedos passaram a assumir a condiçao de simples objeto desprovido de valor lúdico e perdendo seu real significado. Em nossa prática observamos que o tempo destinado para brincar costuma ser cronometrado, e, nao raro, grande parte dos brinquedos permanece exposta como objetos de decoraçao e enfeite. Esses artefatos sao mantidos assim, fora do alcance das crianças e também do seu real uso.

Através da revisao de literatura, observamos que muitos estudos abordam a temática do brincar e sua importância na rotina da criança. Contudo, apesar de a literatura confirmar os benefícios do lúdico, nota-se que o distanciamento da criança com as brincadeiras é uma realidade cada vez mais presente. O uso desses artefatos parece estar se limitando, o que sugere que atualmente os profissionais nao têm reconhecido o poder do lúdico para o desenvolvimento infantil.

Apesar de elevado o número de estudos atuais abordando a temática do brincar, é predominante o número de estudos teóricos sobre o tema. Em contrapartida, é reduzido o número de pesquisas que abordem dados obtidos através de estudos de campo nos contextos em que as crianças estao inseridas na atualidade, sendo essa uma importante limitaçao. Com isso, destacamos a relevância de novos estudos empíricos sobre o tema em questao. Acredita-se que novos estudos sobre essa temática possam contribuir para fortalecer a importância que o brincar desempenha no desenvolvimento cognitivo, motor, social e emocional das crianças.


REFERENCIAS

1. Stragliotto CEB. Pensando sobre o brincar. Contemporânea: Psicanálise e Transdisciplinaridade. 2008;5:180-187.

2. Winnicott D. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975.

3. Rodrigues LM. A criança e o brincar [monografia]. Mesquita: Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro; 2009.

4. Ariés P. História social da família e da criança. Rio de Janeiro: LTC; 1981.

5. Benjamim W. Reflexoes: a criança, o brinquedo, a educaçao. Sao Paulo: Sumus; 1984.

6. Cairoli P. A criança e o brincar na contemporaneidade. Revista de Psicologia da IMED. 2010;2(1).

7. Franco RR, Batista CVM. A criança e o brincar como um direito de liberdade. Londrina: Universidade Estadual de Londrina; 2009.

8. Postman N. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia; 2006.

9. Salgado RG. Ser criança e herói no jogo e na vida: a infância contemporânea, o brincar e os desenhos animados [tese]. Rio de Janeiro: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; 2005.

10. Filho ASS. A dimensao estética do brinquedo: contributos críticos à educaçao estética da criança [tese]. Goiânia: Universidade Federal de Goiás; 2009.

11. Barbosa RFM, Gomes CF. Brincadeira e desenho animado: a linguagem lúdica da criança contemporânea. In: X Congresso Nacional de Educaçao - EDUCERE. Curitiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná; 2011.

12. Ferro A. O jogo. In: A técnica psicanalítica infantil: a criança o analista da relaçao ao campo emocional. Rio de Janeiro: Imago; 1995.

13. Ferreira SC. A indústria do brincar [dissertaçao]. Rio de Janeiro: Fundaçao Getúlio Vargas; 1992.

14. Bomtempo E, Antunha EG, Oliveira VB, organizadores. Brincando na escola, no hospital, na rua... 2. ed. Rio de Janeiro: Wak; 2008.

15. Klein M. Psicanálise da criança. Sao Paulo: Mestre Jou; 1969.

16. Kishimoto TM, organizador. O brincar e suas teorias. Sao Paulo: Pioneira; 1998.

17. Freud S. Além do princípio de prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Rio de Janeiro: Imago; 2009. (Ediçao standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).

18. Di Paolo AF, Barros CV. Consideraçoes acerca do brincar e do estatuto da fantasia a partir de proposiçoes teóricas que baseiam a pesquisa IRDI. Estilos da Clínica. 2010;15(1).

19. Fortuna TR. Sala de aula é lugar de brincar? In: Xavier MLM, Dallazen MIH, organizadores. Planejamento em destaque: análises menos convencionais. Porto Alegre: Mediaçao; 2000.

20. Varotto MA, Silva MR. Brinquedo e indústria cultural: sentidos e significados atribuídos pelas crianças. Motrivivência. 2004;16(23):169-190.

21. Caiado KRM, Pereira CL. Narrativas da infância: os sentidos do brincar na formaçao de professores. Diálogo Educacional. 2007;7(20).

22. Alves L, Carvalho AM. Videogame e sua influência em teste de atençao. Psicologia em Estudo. 2010;15(3).

23. Eisenstein E, Estefenon SB. Geraçao digital: riscos das novas tecnologias para crianças e adolescentes. Revista Hospital Universitário Pedro Ernesto, UERJ. 2011;10.

24. Breda VCT, Picon FA, Moreira LM, Spritzer DT. Dependência de jogos eletrônicos em crianças e adolescentes. Revista Brasileira de Psicoterapia. 2014;16(1):53-67.

25. Savi R, Ulbricht VR. Jogos digitais educacionais: benefícios e desafios. Novas Tecnologias na Educaçao. 2008;6(2).

26. Ramos DK. Jogos cognitivos eletrônicos: contribuiçoes à aprendizagem no contexto escolar. Ciências & Cogniçao. 2013;18(1).

27. Conti FD, Souza, ASL. O momento de brincar no ato de contar histórias: uma modalidade diagnóstica. Psicologia Ciência e Profissao. 2010;30(1):98-113.

28. Froede C, Wollz LEB, Sousa PMS, Sousa TRSS, Monteiro GA. Percepçoes de infâncias e do brincar na contemporaneidade. Perspectiva On line: Humanas e Sociais Aplicadas. 2013;8(3):23-34.

29. Lira NAB, Rubio JAS. A importância do brincar na educaçao infantil. Revista Eletrônica Saberes da Educaçao. 2014;5(1).










Psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica e Psicoterapia de Família e Casal, Mestranda em Psicologia Clínica (PUC-Rio)

Instituiçao: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Correspondência
Denise Bernardi
Avenida Marquês de Paraná nº 349, apt. 709, Centro
24030-215 Niterói, RJ, Brasil
denise_psicologia@yahoo.com.br

Submetido em: 03/04/2015
Aceito em: 13/05/2015

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo