Rev. bras. psicoter. 2016; 18(1):82-92
Bernardi D. Reflexoes acerca do brincar e seu lugar no infantil. Rev. bras. psicoter. 2016;18(1):82-92
Artigos de Revisao
Reflexoes acerca do brincar e seu lugar no infantil
Thoughts on playing and its place in childhood
Denise Bernardi
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Os jogos e brincadeiras, entendidos como ato de brincar, permitem a entrada da criança em um mundo no qual tudo pode acontecer. Nesse espaço, o imaginário é convidado a, ilusoriamente, criar personagens, inventar histórias, divertir-se, fantasiar e satisfazer desejos.
O ato de brincar é uma atividade fundamental para o desenvolvimento da criança. Por meio da brincadeira, ela tem a oportunidade de elaborar conflitos e fantasias inconscientes, desenvolver sua capacidade de criatividade, aprender a controlar seus impulsos e a lidar com seus medos1. A brincadeira promove o crescimento do indivíduo e o conduz aos relacionamentos grupais, sendo uma forma de comunicaçao consigo mesmo e com os outros2.
A escolha de refletir sobre esse tema foi motivada pelas vivências da autora enquanto psicóloga, no âmbito clínico e escolar infantil. Na prática profissional com esse público, foi possível observar uma diminuiçao do tempo destinado ao lúdico, o que levantou questionamentos, visto que os jogos e brincadeiras sao importantes para o desenvolvimento da criança.
A construçao do conhecimento, o aprendizado e a socializaçao iniciam-se através do ato de brincar, porém atualmente observa-se que os jogos e brincadeiras têm sido pouco explorados nos ambientes em que a criança está inserida. Na atualidade, em locais como o ambiente escolar, o momento do lúdico na rotina infantil parece ter apenas o objetivo de distrair e entreter a criança, de modo que o brincar nao parece estar sendo utilizado como um recurso que pode favorecer o desenvolvimento infantil.
O presente trabalho consiste em uma de revisao da literatura. Nele pretende-se discutir sobre o lugar destinado ao lúdico, em especial no contexto escolar infantil. Ainda, pretende-se discutir sobre as transformaçoes pelas quais os brinquedos passaram, e a funçao que o brincar tem na estruturaçao do psiquismo infantil. Para realizaçao deste estudo, tomou-se como base textos de autores que se tornaram referência por desenvolverem trabalhos sobre a temática do brincar, dentre eles Sigmund Freud, Donald Winnicott e Melanie Klein. Também foram analisados textos de autores contemporâneos que pesquisam sobre essa mesma temática.
No levantamento dos materiais, encontrou-se uma vasta quantidade de estudos sobre a temática do brincar; desse modo, alguns critérios foram levados em consideraçao para a seleçao do material. Foram selecionadas pesquisas que abordavam em especial as mudanças na construçao dos brinquedos e a funçao do brincar na estruturaçao do psiquismo da criança, por acreditar ser este um importante campo a ser analisado, visto que ao longo do tempo os brinquedos infantis sofreram intensas transformaçoes que podem ter influenciado na sua funçao estruturante do psiquismo infantil. A busca dos textos aconteceu por meio das bases de dados disponíveis on-line: LILACS e SciELO. As palavras-chave utilizadas foram: brincar, criança, infância, brincadeiras, desenvolvimento infantil e novas tecnologias. Com estas foram feitas diversas combinaçoes.
AS TRANSFORMAÇOES DA INFANCIA E DO BRINQUEDO
Na Idade Média nao existia uma distinçao entre a criança e o adulto, sendo esta considerada um adulto de pequeno tamanho, executando, assim, as mesmas atividades que os mais velhos. Nesse período nao se dispensava um tratamento especial para as crianças. A infância era considerada como um momento de transiçao para a vida adulta3.
Na contemporaneidade, o fato de a criança poder brincar e ir à escola sugere-nos algo natural, mas o conceito que se tem hoje sobre a infância passou por diversas modificaçoes. Na sociedade medieval, a ideia de infância nao existia; a criança ingressava no mundo dos adultos desde muito cedo. Assim que superava o período de alto grau de mortalidade, e podia viver sem os cuidados da mae e/ou ama, ela já era confundida com adultos. A criança participava das mesmas festas, usava o mesmo estilo de roupas, brincava e jogava os mesmos jogos que os adultos. Nesse período nao havia objetos específicos para as crianças brincarem4.
A fabricaçao de brinquedos nasceu na Alemanha, em seus primórdios, por fabricantes nao especializados, como oficinas de entalhadores de madeiras ou de fundidores de estanho. Antes disso, o brinquedo representava um produto secundário das diversas indústrias manufatureiras. Nesse período, os objetos usados nas brincadeiras infantis eram pequenas peças que faziam parte da decoraçao das casas e eram produzidos em madeira e cera. Posteriormente, eles tornaram-se peças maiores, produzidas também em metal, vidro e papel. Nessa época nao havia distinçao de gênero entre os brinquedos produzidos para as crianças. No decorrer do século XVIII, os brinquedos passaram a aparecer no mercado de fabricantes especializados no ramo. Antes do século XIX, sua produçao nao era funçao de uma única indústria específica5.
Com o passar do tempo, a comercializaçao de brinquedos foi crescendo e ganhando espaço no cenário mundial. Houve uma modificaçao gradual do brinquedo, que inicialmente era produzido em modelos artesanais e posteriormente adquiriu um formato industrializado. Os brinquedos, que eram produtos simples e rústicos, foram sendo substituídos por outros, produzidos em série e com materiais sofisticados6.
Desse modo, observa-se que a concepçao que se tem atualmente sobre os brinquedos passou por diversas transformaçoes ao longo dos séculos, assim como os conceitos de infância e do brincar. A infância foi reconhecida há pouco mais de 200 anos. De lá para cá, vivenciamos avanços e retrocessos na concepçao que construímos com relaçao à criança. O modo como esta é encarada nos dias atuais ainda conserva traços que pertenceram a outros tempos7.
A origem da palavra infância e o conceito que se tem sobre ela vêm se modificando constantemente, devido a estímulos que levam à adultizaçao da criança, pois "tanto quanto as diferentes formas de vestir, as brincadeiras de criança, antes tao visíveis nas ruas das nossas cidades, estao desaparecendo"8. Atualmente a criança vive sob o domínio de várias influências culturais, e desde cedo tem um papel "a cumprir" frente à sociedade, como: telespectadora, colecionadora e consumidora9.
Na contemporaneidade, o brinquedo é produzido com um novo design. Esses artefatos lúdicos sao projetados com base em estudos científicos. Os jogos eletrônicos, como os videogames, apresentam-se a serviço da ludicidade contemporânea, que exige a produçao de um brinquedo racionalizado, concebido a partir de uma avaliaçao do perfil infantil ao qual se destina o consumo desses objetos10.
Observamos em nossa prática com o público infantil que o envolvimento das crianças com os equipamentos eletrônicos parece atualmente ter substituído o uso dos brinquedos. O computador, a internet, o videogame e a televisao fazem parte da rotina diária da criança. Ainda, existem programas de televisao específicos destinados para esse público e campanhas publicitárias que anunciam a todo o momento novidades criadas especialmente para satisfazer as crianças, como uma infinidade de objetos eletrônicos, que se distanciam muito dos brinquedos tradicionais, como a bola, o peao e a boneca. Os brinquedos atuais oferecidos ao público infantil costumam ser descartáveis e rapidamente tornam-se pouco interessantes, o que faz com que, constantemente, sejam substituídos por outros mais modernos6.
Nota-se também que na contemporaneidade o espaço disponível para a criança brincar tem sido mais restrito. A tecnologia praticamente domina o seu dia a dia. Devido aos recursos tecnológicos disponíveis, muitas das brincadeiras tradicionais acabaram desaparecendo11.
O aperfeiçoamento e a sofisticaçao da indústria tecnológica levaram à produçao dos brinquedos do século XXI quase que exclusivamente de forma automática e mecanizada, o que nos leva a questionar sua influência na estruturaçao do psiquismo infantil. Um brinquedo que funciona a pilhas, em que a criança brinca sozinha e é convidada a "apenas" apertar o play, ficando passiva nesse processo e participando como espectadora nesse brincar, poderia ter implicaçoes em seu desenvolvimento?
O BRINCAR E O DESENVOLVIMENTO INFANTIL
O jogo nasce na relaçao que o bebê estabelece com sua mae, quando esta cuida dele. Trata-se frequentemente de jogos caracterizados por sons, balbucios e verbalizaçoes, que subentendem trocas comunicativas12. Nos primeiros anos de vida, as brincadeiras podem ser traduzidas como formas de autoconhecimento. Nesse período, os brinquedos utilizados pelo bebê sao partes do seu próprio corpo, como suas maos e pés13.
As brincadeiras do bebê propiciam o conhecimento de suas possibilidades e limitaçoes sensório-motoras, além de possibilitar o conhecimento do outro e do ambiente. Essas brincadeiras servem de base para o desenvolvimento cognitivo posterior14.
O brincar é uma ponte que liga o real ao imaginário. De forma inconsciente, a criança reinscreve no mundo externo conteúdos de seu mundo interno. A brincadeira, desse modo, tem uma funçao importante, uma vez que funciona como uma forma de defesa contra a ansiedade que os conteúdos internos podem ocasionar. A atividade lúdica serve como uma descarga emocional, na qual é possibilitada a reediçao dos conflitos infantis.
Assim, o prazer que as crianças encontram durante a brincadeira ocorre nao somente por esta gratificar seus impulsos de realizaçao de desejo, mas também pelo fato de permitir o domínio de suas angústias15. Por meio da brincadeira, a criança tem a oportunidade de reproduzir uma experiência traumática, modificando-a de forma que possa elaborar a experiência anterior, substituindo um sentimento desagradável pelo prazer gerado através do brincar.
A brincadeira ainda proporciona o desenvolvimento dos aspectos sociais, devido à oportunidade de interaçao. Através da brincadeira, a criança tem a possibilidade de conhecer seus próprios limites. Por meio do brincar ela pode elaborar sentimentos, reconhecer e controlar suas emoçoes.
Ao brincar, as crianças superam aspectos desagradáveis da realidade. O brinquedo as ajuda a dominar os medos instintivos e perigos internos por meio da projeçao destes para o mundo exterior. Por meio dessa projeçao, a criança consegue deslocar suas angústias para fora. Na tentativa de dominar sua dor, ela desloca os perigos instintivos e internos para o mundo exterior, o que oportuniza à criança nao só vencer o medo que estes lhe inspiram, como também estar mais preparada contra eles. As atividades lúdicas criam, desse modo, uma ligaçao entre a fantasia e a realidade e ajudam a criança a dominar o medo dos perigos internos e externos15.
Os jogos e brincadeiras oportunizam à criança recriar e modificar algo que ela nao tenha elaborado. Através do ato lúdico, ela pode simbolizar seus medos e problemas, resolvendo-os em outro contexto16.
Na medida em que brinca, a criança aprende a lidar com a realidade, o que é importante para sua saúde mental. Brincando, ela vai se introduzindo na esfera social e cultural, quando passa de um brincar individual para um grupal, fazendo-a perceber e sentir a necessidade de estar junto, aprendendo a dividir e ceder seus brinquedos. É por meio do brincar que a criança estabelece essa relaçao com o outro. No brincar em grupo, ela aprende a construir sua realidade social compartilhada e através disso encontra espaço para explorar, criar e descobrir novas coisas e novos jeitos de lidar com uma mesma situaçao14.
Na brincadeira espontânea, a criança é livre para exercer domínio sobre seu próprio mundo, criando diferentes formas de solucionar seus conflitos através da imaginaçao. O exercício da imaginaçao habilita a criança a suportar mais facilmente as frustraçoes que encontra na realidade, aprendendo a lidar simbolicamente com algo que a ameaça. Quando brinca, a criança se desafia a crescer e avançar para novas etapas13.
Em 1920 Freud fez referência à brincadeira criada por seu neto de um ano e meio, que fazia aparecer e desaparecer um carretel de madeira amarrado com um cordao em volta dele. A criança, por meio da brincadeira com o carretel, buscava dominar sua angústia em relaçao à ausência da mae. Tratava-se de um jogo em que o menino brincava de "ir embora" com seus brinquedos, representando assim o distanciamento da mae. Através dessa descriçao é possível observar que a brincadeira pode oportunizar à criança ter fantasias em relaçao à figura materna, podendo elaborar sua dor. Assim, por meio do lúdico o sujeito tem a possibilidade de se reorganizar frente às suas angústias e ter mais autonomia, aprendendo a externalizar seus conflitos e a lidar com a própria agressividade17.
Ao brincar, a criança nao se situa apenas no momento presente. Ela também se coloca frente a seu passado e futuro. O brincar é uma atividade terapêutica que possibilita que a criança supere situaçoes traumáticas, simbolizando, falando e representando conteúdos que a perturbam. O brinquedo, da mesma forma que o brincar, nao é um objeto neutro, pois ele representa a história da criança por meio de outros objetos16.
Porém, é importante que existam condiçoes para que o brincar aconteça:
É preciso que haja abertura para o brincar e, consequentemente, para as criaçoes que ele possibilita. No universo infantil, um discurso pode ser uma história, um boneco pode ser um pai, uma casa pode ser um aviao, uma caixa pode ser um telefone, de tal forma que uma coisa pode sempre remeter a outra, em uma série de infinitas possibilidades, cuja significaçao só adquire força quando alguém lhe dá um contorno, transmitindo-lhe sentidos capazes de inscrevê-la em uma narrativa pessoal18.
Nos raros momentos em que sao propostos, os jogos e brincadeiras sao separados rigidamente das atividades escolares, como o "canto" dos brinquedos ou o "dia do brinquedo", assim mesmo, o brinquedo apenas é encontrado nas escolas infantis, nas classes de ensino fundamental estas alternativas sao abominadas, já que os alunos estao ali para "aprender, nao para brincar". O brincar, estando de fora do currículo escolar, nao contamina as demais tarefas escolares, sendo mantido sob controle. Só se brinca na escola se sobrar tempo ou na hora do recreio, sendo que estes momentos correm, permanentemente, o risco de serem suprimidos, seja por má conduta, seja por nao ter feito o dever de casa ou ainda por nao ter dado tempo19.
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