Rev. bras. psicoter. 2016; 18(1):68-81
Tavares RC. O bebê imaginário: uma breve exploraçao do conceito. Rev. bras. psicoter. 2016;18(1):68-81
Artigos de Revisao
O bebê imaginário: uma breve exploraçao do conceito
The imaginary baby: a brief examination of the concept
Renata Corbetta Tavares
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A maternalidade, compreendida enquanto conjunto de processos psicoafetivos pelos quais a mulher passará por conta do advento da maternidade, representa um período de crise de identidade e consequente questionamento dos diversos aspectos constituintes de sua personalidade1,2. Nesse sentido, Szejer & Stewart3 apontam que "ser mae", de certa forma, acontece uma só vez, visto que, a partir do momento em que a mulher passa por esse período de reediçao de sua identidade, "nunca mais será como antes". Contudo, os autores destacam que cada maternidade tem o poder de transformar a mulher, como se a preparasse para ser mae de uma criança em especial, de modo que a cada gestaçao ocorre um novo rearranjo psicoafetivo, permitindo a essa mulher, no contato com seu novo bebê, transformar-se numa nova mae adaptada, ou adaptando-se a essa nova criança.
Nesse processo de tornar-se mae, que encerra em si mais do que apenas o período gestacional e o parto, figuram fatores de grande importância no futuro relacionamento a ser estabelecido entre a mulher e seu bebê. Entre eles encontra-se a representaçao de um bebê imaginário, que durante o período da gravidez constituirá a forma primordial de contato da mae com seu bebê ainda desconhecido. Através do imaginar o filho, a mae terá, progressivamente, condiçoes de estabelecer contato com o bebê da realidade: inicialmente através dos movimentos fetais, que num primeiro momento sao ainda incluídos nesse espectro de fantasia e idealizaçao, também através dos exames de rotina e, mais tarde, com o próprio nascimento e a vinda do bebê real4.
A partir deste artigo, pretende-se realizar uma breve revisao do conceito de bebê imaginário, proposto por autores psicanalíticos como Lebovici5, Soulé1, entre outros. Esse conceito se refere à construçao, por parte da mae durante a gestaçao, de um "objeto psíquico" pertencente ao seu imaginário e correspondente ao bebê ainda nao nascido, através do qual serao pautadas as relaçoes entre ela e seu filho. O bebê imaginário pode ser compreendido como este objeto psíquico do imaginário da mae, que se constitui a partir do desejo e das referências verbais desta5,1.
A importância da investigaçao a respeito das representaçoes maternas está ligada a sua influência sobre o contato que se estabelece entre os pais e seu filho. A qualidade e as características desse relacionamento, que se funda a partir das representaçoes iniciais dos pais sobre seu bebê, serao determinantes no curso do desenvolvimento infantil6. Tal perspectiva é validada por estudos como a pesquisa realizada por Thun-Hohenstein et al.7, na qual os autores visavam investigar o valor preditivo das representaçoes mentais pré-natais de maes sobre a criança daquela gestaçao para as interaçoes mae-bebê aos três meses após o nascimento. A partir dos resultados apresentados pela pesquisa, foi possível identificar que as representaçoes das gestantes eram preditoras da habilidade regulatória materna aos três meses de vida do bebê, assim como tais representaçoes foram enunciativas de comportamentos de interaçao por parte do mesmo.
GRAVIDEZ E REORGANIZAÇAO DA IDENTIDADE
A gravidez constitui um momento complexo, tanto na vida da gestante quanto na vida do casal e da família, de um ponto de vista mais global3,8. A vinda de um bebê afeta diretamente todos os envolvidos no sistema do qual essa criança virá a fazer parte, de forma que desencadeia uma reorganizaçao dos papéis de cada membro da família. Caron e Lopes9 referem-se a esse período como um momento de "nascimentos simultâneos", já que a chegada de um bebê traz consigo a passagem de filho para pai, de mae para avó, filha para mae, e assim por diante. A transformaçao relativa aos processos de atribuiçao de identidade vivenciada pelos pais é, segundo Cramer10, impregnada pela relaçao original que esses tiveram com seus próprios pais. Em relaçao a tal reorganizaçao, foi citada anteriormente a maternalidade, que se refere ao desenvolvimento e à integraçao dos processos psicoafetivos desencadeados em funçao da maternidade1.
Nesse sentido, o tema da reorganizaçao da identidade, proposto por Stern2, encontra-se intimamente relacionado ao período gestacional e ao puerpério, seja a mae em questao primípara, secundípara ou multípara. O autor propoe que, com o nascimento de um bebê, a mae passa a estruturar-se conforme uma organizaçao de duraçao variável em que o suporte central da vida psíquica deixa de sustentar-se sobre os complexos nucleares (Complexo de Édipo). Esse novo "eixo organizador dominante para a vida da mae" é único, na medida em que nao constitui uma simples variaçao ou derivaçao dos construtos psíquicos vigentes até o momento e, por isso, o autor propoe chamá-lo de constelaçao da maternidade2.
Dessa maneira, o construto elaborado pelo autor permite a compreensao e a intervençao clínica diferenciadas no tangente à aliança terapêutica e às consideraçoes de transferência/contratransferência a serem empregadas nas intervençoes a sujeitos que se encontram na constelaçao da maternidade. Com a ideia de constelaçao da maternidade, Stern2 dispoe sobre o profundo realinhamento sofrido pela mulher em praticamente todas as esferas a partir do nascimento de seu bebê e até mesmo antes dele. Conforme o autor, tal realinhamento passa por quatro temas centrais, sendo eles: o tema da vida-crescimento do bebê; o tema do relacionar-se primário, no qual figura como central a questao do envolvimento emocional entre a mae e seu bebê; o tema da matriz de apoio, em que está em questao o suporte ambiental a ser recebido pela nova mae; e o tema de reorganizaçao da identidade, citado previamente.
Examinando a temática da reorganizaçao da identidade, proposta por Stern2 como constituinte da constelaçao da maternidade, é possível ponderar sobre a complexidade do período da gravidez e do puerpério, conforme sugerido acima. Acompanhando o nascimento de um novo bebê, apresenta-se também uma reforma radical no cotidiano da mae, que implica grande mudança em seus investimentos emocionais; assim, a mulher passa a assumir novas identidades, como mae de família, progenitora etc. Consequentemente, um novo trabalho mental é elaborado no sentido de incorporar essas novas identidades, e a mulher, necessitando de modelos com os quais se identificar (positiva ou negativamente) no desempenho de tais papéis, passará a reviver a história de suas identificaçoes com as figuras parentais de seu próprio desenvolvimento, em especial sua mae2,11,3,10.
Outro aspecto que pode ser associado a essa noçao de identificaçao com as figuras parentais pode ser o conceito de mito familiar. Através deste, alguns autores psicanalíticos situam o lugar ocupado pela personagem do bebê na fantasia fundamental dos pais a partir do discurso a ele dirigido. Tal discurso é anterior ao próprio bebê e determinante na constituiçao subjetiva do mesmo12,5,11.
Ora, é através do processo imaginativo da mae que se dá, primariamente, a interaçao entre a gestante e seu bebê, conforme já foi proposto. Nesse sentido, "é esse processo que oferecerá à mae o substrato relacional necessário para receber o bebê" (p. 244)11. Entretanto, o que desencadeia a estruturaçao de tal processo imaginativo por parte da mae consiste na maneira como esta recebeu ela mesma, enquanto sujeito, os enunciados identificantes projetados por seus próprios pais no tempo de seu nascimento11.
Em outras palavras, todo ser humano tem sua chegada ao mundo mediada por um "banho de linguagem", conforme propoe Szejer3, visto que as palavras ditas (e nao ditas) a respeito de um bebê nascido ou ainda nao nascido funcionam como uma identidade criada para esse sujeito. Cramer destaca que seu ponto de partida ao abordar a questao da relaçao entre o recém-nascido e seus pais sao as palavras ditas a respeito do bebê, que o psicanalista suíço compara às "roupas com as quais se cobre essa criança ainda nua, as qualidades com as quais ela é enfeitada e os defeitos de que é acusada" (p. 4)10.
O que ocorre durante o período em que a mae precisa entrar em contato com esse ser ainda desconhecido que habita em seu corpo é a necessidade de pôr em movimento um processo de "imaginaçao" desse sujeito. O fator que irá desencadear tal processo será, justamente, uma entrada em contato com sua pré-história: a partir da maneira como essa futura mae vivenciou seu próprio banho de linguagem, como ela mesma foi inserida no mundo enquanto sujeito, ela encontrará os meios para, por sua vez, dar ao seu bebê condiçoes de ser introduzido ao sistema enquanto sujeito, ou enquanto um bebê imaginado.
UM BEBE A SER IMAGINADO
Ao processo de imaginar um bebê durante a gestaçao, dando ao feto um estatuto de sujeito, idealizando o para além de sua condiçao biológica, vinculando-se a essa expectativa de criança, diferentes autores psicanalíticos utilizam termos diversos, de modo que nao há um consenso na denominaçao de tal fenômeno. Bebê imaginado, bebê imaginário, corpo imaginado, bebê da fantasia sao alguns dos termos encontrados6. Para este trabalho optou-se pelo termo "bebê imaginário", sem, contudo, descartar a viabilidade dos demais termos encontrados.
O processo de representaçao do bebê imaginário, ao ser considerado para o presente trabalho, foi contemplado através da perspectiva enunciada por Stern2, que indica que a representaçao do bebê imaginário nao é simultânea ao desenvolvimento do feto, tendo seu início, normalmente, a partir do terceiro mês de gestaçao. É digno de nota que a época em que a mae geralmente se autoriza a iniciar o processo de representaçao do bebê imaginário coincide com o final do período mais crítico da gravidez, o qual é mais propenso a abortos espontâneos2,4. O autor destaca ainda que a capacidade de representaçao do bebê imaginário nao é automática e desencadeada pelo aspecto biológico da gestaçao, e sim um processo subjetivo pelo qual a futura mae passará ao relacionar suas experiências físicas durante a gravidez àquelas psicológicas e históricas.
Tal perspectiva encontra-se em harmonia com aquela apresentada por Lebovici5, autor de referência nas pesquisas sobre o tema. Este propoe o que se pode compreender como uma noçao progressiva a respeito do processo de representaçao do bebê imaginário. Inicialmente, o autor descreve o desejo de maternidade, que é ativo muito primariamente e mobiliza fantasias mais primitivas, entre elas aquela da cena primária descrita por Freud, por exemplo. Esse desejo tem sua origem na infância e é reforçado através dos processos identificatórios, das brincadeiras infantis de casinha, mamae/papai e filhinho etc. Ademais, o autor destaca que, posteriormente, já no período gestacional, a situaçao real da mae requer um trabalho de representaçao mais ativo (que poderá de bom grado ser sustentado e acompanhado pelo pai). Entra aí o processo de representaçao do bebê imaginário.
Alguns autores propoem a consideraçao da gestaçao a partir de diferentes níveis, contrastando principalmente o nível biológico e o nível psicológico: Aulagnier (apud Ferrari, Piccinini, Lopes4) apresenta uma divisao entre a gestaçao no plano biológico, em que o foco recai sobre as transformaçoes sofridas pela célula até sua conversao em ser humano completo, e o plano da relaçao de objeto, no qual figura com destaque a relaçao da mae com o corpo imaginado através do qual tal célula é representada.
Em movimento mais expansivo, a psicanalista Raphael-Leff13 assinala três fases de transformaçao ao longo do período gestacional. A psicanalista admite que cada gravidez seja diferente e possua suas peculiaridades, entretanto, propoe o destaque sobre três períodos específicos marcados por transiçoes importantes: a fase inicial da gravidez, quando o foco é a adaptaçao às mudanças corporais e ao desequilíbrio emocional, ou seja, a própria gravidez; a seguir, a fase mediana, na qual o destaque recai sobre o reconhecimento da criança através dos movimentos internos, em outras palavras, o destaque é o feto; e, por fim, a fase final, na qual o foco principal passa a ser a criança: a futura mae preocupa-se com o nascimento e a subsistência de seu bebê.
Autores como Stern2 e Stern-Bruschweiller e Freeland (apud Ferrari, Piccinini, Lopes4), por sua vez, apontam a ocorrência de três gestaçoes simultâneas em que a mae sustenta o desenvolvimento físico do feto, a construçao de uma identidade materna do ponto de vista psíquico e a representaçao mental de um bebê imaginário.
Mas o que é o bebê imaginário? O bebê imaginário corresponde à "primeira inserçao da criança no mundo imaginário da mae" e é através da representaçao do bebê imaginário que a mae constrói um "filho", antes mesmo de conhecer seu bebê real, quando este ainda é um feto (p. 311)4. A importância desse expediente reside no fato de que, através dessa representaçao, a mae poderá investir sua libido no bebê imaginário, criando um espaço subjetivo no qual virá a ser recebido, posteriormente, o bebê da realidade.
Soulé1 caracteriza o bebê imaginário como sendo o filho idealizado no processo da gestaçao: um bebê dotado de onipotência e plena capacidade de realizar os desejos narcísicos da mae que o imagina. Sendo assim, conforme já salientado, a importância da representaçao de bebê imaginário culmina com sua influência sobre o relacionamento a ser estabelecido entre mae e filho da realidade. Ademais, é interessante destacar que essa representaçao se torna possível a partir do momento em que, na gestaçao, a mae utiliza-se de seu próprio narcisismo como matéria-prima para construçao de um filho (imaginário), o qual será investido por ela libidinalmente.
Brazelton e Cramer (apud Ferrari, Piccinini, Lopes4) ressaltam que sao os desejos narcisistas da mae os responsáveis por colocar em movimento o processo de vinculaçao desta ao seu bebê: a partir do desejo narcisista, a mae é capaz de criar uma representaçao de bebê imaginário, sobre a qual se vinculará com seu bebê (feto). Dessa maneira, o bebê é tomado como objeto sobre o qual recai sua libido, de modo a investir sobre ele como se fosse a coisa mais importante de todo o mundo. Ora, esse investimento é narcisista, já que esse bebê imaginário sobre o qual se edifica uma série de expectativas é, na realidade, um objeto que, de certa forma, faz parte do eu materno. Sendo assim, esse processo do investimento narcisista se distingue do enamoramento clássico, conforme proposto por Aulagnier, justamente devido ao fato de o objeto do investimento libidinal manter-se, no caso da gestaçao e da construçao do bebê imaginário, endógeno, enquanto no enamoramento o objeto dever ser externo ao eu.
Aulagnier (apud Ferrari, Piccinini, Lopes4; Piccinini et al.14) e Soulé1 destacam ainda o fato de que, durante a gestaçao, a representaçao materna acerca do feto nao corresponde a um embriao em desenvolvimento, e sim a uma criança com um corpo completo, autônomo e unificado. A essa imagem de corpo integral e uno do bebê representada pela gestante ao longo da gravidez Aulagnier denomina corpo imaginado (apud Ferrari, Piccinini, Lopes4).
Lebovici5 postula sobre três crianças que coexistem permanentemente na mente da mae. Sao elas: a criança da fantasia, a criança imaginária e a criança real. A primeira diz respeito àquela oriunda da fantasia do Édipo, consistindo no desejo reprimido de haver tido um filho com seu pai e assim, consequentemente, negar a castraçao. Esta é inconsciente e vem acompanhada dos desejos infantis da mulher. A criança imaginária corresponde àquela que a gestante constrói a partir de sua idealizaçao e expectativas. Por fim, a criança real é aquela que a mae virá a conhecer a partir do nascimento e com a qual o relacionamento será "enriquecido" a partir dos conteúdos imaginários e de fantasia aportados das relaçoes com as "instâncias" mencionadas anteriormente.
Soulé1 também discorre sobre a existência simultânea de três filhos com os quais a mae se relaciona. Para o autor, coexistem o filho imaginário do fantasma, que corresponde ao filho idealizado durante a gestaçao; o recém-nascido vivo, ou filho real; e o recém-nascido teórico, que consiste em um bebê biológico, que funciona conforme normas biológicas preestabelecidas.
Um dos recursos para que, após o nascimento, a mae nao baseie seu relacionamento em apenas um desses bebês (o recém-nascido teórico, o filho edípico, o bebê imaginário...) é que, ao longo da gravidez, ocorra o processo de construçao de um bebê imaginário, pois é a partir dessa construçao imaginativa que se oportuniza a vinculaçao entre a futura mae e seu bebê. Durante a gestaçao o processo de vinculaçao é iniciado quando a mae passa a imaginar seu bebê ou, segundo Aulagnier (apud Piccinini et al.14), quando a mae passa a estabelecer uma relaçao imaginária com seu bebê, atribuindo-lhe, no nível da fantasia, um corpo a ser libidinizado. Desse modo, a autora ressalta que a maneira através da qual a mae empreende a tarefa de imaginar seu bebê opera no sentido de estabelecer um vínculo entre ambos, ao passo que permite à gestante contemplar a criança como parte da ordem humana da qual ela mesma faz parte.
As representaçoes maternas têm grande importância no estabelecimento das relaçoes posteriores entre mae e filho, sendo compostas de construçoes fantasiosas, defeitos, qualidades e características atribuídas à criança que sao passíveis de efetividade ou nao em relaçao ao bebê da realidade6. Conforme já exposto, o fator desencadeador do processo de representaçao do bebê imaginário consiste no contato que a própria mae estabelece consigo mesma, com seu bebê e sua história. Desse modo, vários autores assinalam o papel de destaque desempenhado pelo passado infantil da própria gestante no processo de representaçao do bebê imaginário, conforme exposto anteriormente.
Stern2, por sua vez, pontua que, enquanto imersa no que o autor chamou de constelaçao da maternidade, a mulher mergulha nas recordaçoes das experiências iniciais de sua própria maternagem devido ao fato de apresentar-se em um forte contexto evocativo. Piccinini e Ferrari11 enunciam que a mulher necessita ser capaz de identificar-se com as necessidades e sinais advindos de seu bebê para poder inscrevê-los em um contexto simbólico visando atribuir-lhes sentido. Os autores colocam que esse movimento de tomada do lugar do filho se faz possível na medida em que a mae remonta às suas próprias experiências precoces. Winnicott15, ao dispor sobre a preocupaçao materna primária, um de seus conceitos mais célebres, discorre justamente sobre essa habilidade por parte da mae: sua propensao a "regredir" durante um período específico, para ser capaz de acompanhar, através de identificaçao, as necessidades enunciadas por seu bebê. É a partir do retorno provisório (na normalidade) a uma disposiçao primitiva que a mae se torna capaz de "adivinhar" os sinais de seu bebê16.
Todo o exposto se orienta no sentido de ilustrar a importância da história infantil da própria gestante para o processo de representaçao do bebê imaginário. Destarte, tal representaçao passa, necessariamente, pela idealizaçao de características físicas e psicológicas em relaçao à criança, bem como expectativas em relaçao a seu temperamento, seu futuro etc. Szejer e Stewart3 apontam que a história de vida da gestante se relaciona à maneira como esta se projeta enquanto mae, bem como à sua capacidade de imaginar características para o bebê e sua possibilidade de interpretar os comportamentos apresentados pelo mesmo, como os movimentos intrauterinos, por exemplo.
É ponto de vista adotado para este trabalho que a representaçao do bebê imaginário nao ocorra simultaneamente ao desenvolvimento do feto2. Nao se assume aqui que uma ligaçao paralela ocorra entre tal representaçao e o processo de gestaçao, visto que a primeira, conforme a perspectiva adotada para este artigo, parece incluir aspectos que ultrapassam o ponto de vista biológico hormonal, incluindo temas de ordem psicológica, afetiva, histórica, social etc.
Soulé1 defende que no início da gestaçao ocorre um "branco de filho". O autor explica que essa ausência de representaçao se dá para que, nesse momento, possa existir em sua plenitude a "vivência e a representaçao de estar grávida". Nesse sentido, Stern2 indica que a representaçao do bebê feita pela mae durante a gestaçao normalmente ocorre de forma mais intensa a partir do quarto mês de gravidez, atingindo seu auge ao sétimo mês.
O período gestacional abarca múltiplas representaçoes a respeito do bebê que está por vir. Tais representaçoes sao caracterizadas como distintas, antagônicas, alternantes, o que é ilustrado por Fleck5 como uma "maré representacional", pois vao e vêm tendo em vista o preparo da gestante para os aspectos incógnitos e indefinidos do seu bebê. O fenômeno das "marés representacionais" funciona como um "estoque de representaçoes" que permite uma vinculaçao mais facilitada com o filho ainda desconhecido, já que, através de um largo espectro de atributos (muitas vezes antagônicos), o representa de forma inconsciente. Sendo assim, as chances de receber o até entao desconhecido bebê como "próprio e esperado" sao aumentadas devido à amplitude de representaçoes que lhe foram oferecidas6.
Ao final da gestaçao, Stern2 destaca que as representaçoes maternas passam a decrescer. A compreensao de tal fenômeno é a de que, nesse momento, a mae necessita preparar-se para o nascimento do bebê real, de forma que uma excessiva idealizaçao poderá enfatizar a discordância entre o bebê de sua imaginaçao e aquele da realidade4.
O trabalho imaginativo realizado pela mae em relaçao ao seu bebê se sustenta sobre as mudanças corporais por ela vivenciadas ao longo da gestaçao, uma vez que a "possibilidade de pensar um corpo para o seu filho ocorre, também, pela capacidade de a mae representar suas modificaçoes corporais e dar-lhes um sentido para além do entendimento concreto" (p. 308)4.
Michel Soulé1 propoe um dado bastante intrigante ao explicar que o corpo da mae reconhece os movimentos fetais e reage a eles durante toda a gravidez. No entanto, é apenas a partir de um dado momento que a gestante passa a "sentir" conscientemente tais movimentos, o que a leva a concluir que existe um termo a partir do qual o filho passa a existir na fantasia da mae. Assim, o advento do bebê imaginário passa a modificar toda a percepçao e o significado que a futura mae atribui a seu próprio corpo e aos demais aspectos da vida em geral. O autor dispoe ainda que, aos poucos, diversos fatores tornam o feto integrante da realidade da mae: "os movimentos fetais ativos, as solicitudes e as questoes por parte do pai e do meio, a significaçao simbólica favorecida e privilegiada pelo valor sociocultural, a vigilância médica e os exames técnicos" (p. 141)1.
OS EXAMES PRÉ-NATAIS E O CONTATO PRELIMINAR ENTRE BEBE IMAGINARIO E BEBE REAL
Um aspecto bastante controverso no que tange à questao da representaçao do filho ao longo do processo gestacional sao os atuais exames pré-natais que possibilitam uma "desmistificaçao" e um contato prévio com o bebê da realidade antes do nascimento, como, por exemplo, as ecografias. É ponto de vista debatido entre autores se o avanço das técnicas médicas que permitem esse contato com o feto antes do nascimento se afigura como fator positivo ou negativo em relaçao ao processo representacional do bebê que ocorre ao longo da gestaçao.
Por um lado, autores como Soulé1 defendem que os exames de rotina podem constituir um "aborto do fantasma" na medida em que interrompem um processo puramente representacional que possui um período fixo para se desenrolar (os nove meses da gestaçao). Dessa maneira, o contato antecipado com o bebê da realidade, ou com os dados de realidade a respeito de um bebê que ainda se constrói enquanto imaginário, acaba por bloquear o processo de representaçao do bebê imaginário. O que ocorre a partir disso é uma dificuldade por parte dos pais em estabelecer um lugar para esse filho que chega, visto que se perde um pouco o objeto psíquico imaginário destinatário de todo o conteúdo narcisista a ser nele investido.
Em contrapartida, é perspectiva de autoras como Caron, Fonseca e Lopes8,16,9 que tais recursos médicotecnológicos possam exercer efeito positivo sobre a representaçao do bebê imaginário, pois possibilitam à gestante explorar o estabelecimento de relaçoes reais - para além dos simples movimentos fetais, que inicialmente sao revestidos de percepçoes igualmente idealizadas - e imaginárias com o bebê simultaneamente.
Em consonância com o panorama mais positivo em relaçao aos exames de imagem pré-natais parece encontrar-se Lebovici, que, ao destacar que é variável a forma através da qual cada mae utiliza-se de tais recursos, pondera que as ecografias constituem "novas possibilidades de figuraçao às representaçoes da criança imaginária" (p. 263)5.
Questoes como o desconhecido, a fragilidade, o medo e as dúvidas podem ser manifestadas a partir do contato ultrassonográfico com o bebê. Tais aspectos podem ter uma repercussao emocional para a gestante. Desse modo, o recurso apresentado pelos exames de imagem consiste em um "facilitador do processo de tornar-se pai/mae" enquanto a abordagem ultrassonográfica for adequada. Isso implica diretamente na postura do profissional médico e no setting estabelecido para realizaçao dos exames: "A imagem sozinha, sem a participaçao do ultrassonografista, nao tem valor e pode até ser traumática" (p. 75)8.
Para Caron, Fonseca e Lopes8, o processo de desidealizaçao do bebê imaginário pode ter início durante a gestaçao, sem, contudo, figurar como um aspecto negativo, pois permite a reduçao de expectativas em relaçao ao bebê e o vislumbre das limitaçoes do filho real.
O CONFRONTO ENTRE BEBE IMAGINARIO E BEBE REAL
A partir do parto, a mae dá-se conta de que deverá "abandonar por algum tempo sua relaçao fantasmática privilegiada com seu filho imaginário e todas as suas virtudes, e engajar-se numa confrontaçao com um recémnascido particular" (p. 142-143)1. Esse recém-nascido é o bebê real.
O bebê real é compreendido como aquele que será contrastado ao bebê imaginário, correspondendo a uma cópia decepcionante deste, a ser conhecido pela mae a partir do nascimento1,5. Lebovici refere que, por constituir um prolongamento da própria mae, aos seus olhos o bebê real corresponde simultaneamente a um objeto real e a um objeto subjetivo.
Por figurar como uma refutaçao à ilusao do poder materno de produzir um filho perfeito - "na medida de sua megalomania", conforme enuncia Soulé1 -, o recém-nascido traz consigo uma importante tarefa, que é posta em marcha a partir de seu nascimento: o conflito entre o filho idealizado, aquele da imaginaçao, e o bebê real. O psicanalista cita a expressao de que "a mae deve fazer o trabalho de luto do filho imaginário sob o empurrao cabeçudo do filho real", indicando justamente o papel de destaque desempenhado por este último: é através do contato com o recém-nascido e suas demandas reais, muitas vezes decepcionantes, que a mae se vê impelida a realizar tal processo de luto (p. 149)1. Dessa maneira, diante do novo relacionamento que se estabelece com a criança da realidade, o bebê imaginário perde, na maior parte das vezes, sua primazia, em detrimento das necessidades e demandas do bebê real, que exigem, por parte da mae, um rearranjo.
Nesse sentido, é importante que a criança da realidade se estabeleça como o suporte sobre o qual a mae realiza a ancoragem do bebê imaginário. Sendo assim, os fatores de ilusao nao desaparecem por completo; pelo contrário, se mantêm ativos por algum tempo, estabelecendo essa ligaçao entre o bebê imaginário e o bebê real de modo que a mae possa vincular-se ao recém-nascido. Assim, o bebê real constitui o "substituto manifesto" do bebê imaginário, de forma que essa "realocaçao" suscita nos pais estranheza1. Em consonância com o exposto, Fleck6 destaca a regularidade com que a estranheza figura na relaçao estabelecida entre a mae e seu bebê recém-nascido. A autora justifica o estranhamento por parte da mae por conta da frequente diferença entre o bebê imaginário e aquele da realidade, apontando, contudo, que após o nascimento existe a possibilidade de reelaboraçao de antigos esquemas maternos presentes na gestaçao devido ao contato direto entre mae e bebê.
Os sintomas depressivos sao bastante comuns no pós-parto. Debray (apud Fleck6) ressalta que um processo de luto se faz necessário mesmo quando o bebê real corresponde às expectativas traçadas pela mae durante o período gestacional. Isso ocorre devido à separaçao física que se impoe entre a mae e o bebê que se desenvolvia em seu interior. Enquanto parte do corpo materno, o recém-nascido traz à tona questoes relativas ao lugar da mulher diante da castraçao, evocando as resoluçoes dadas a tais temas ao longo da vivência do Édipo por parte desta, confrontando a mae com angústia1.
Em adiçao a isso, o narcisismo materno, tao cultivado ao longo da gestaçao, é duramente confrontado a partir do nascimento, passando a mae a sofrer uma ferida narcísica: ela é relegada a uma posiçao passiva, já que, independente de suas intençoes e da qualidade de seu cuidado, é o próprio bebê que detém a "decisao" de viver ou morrer. Assim, "todo nascimento exprime, pois, duas mortes possíveis: aquela da mae e aquela do recém-nascido, pois a cada passo ele deve renascer" (p. 149)1.
Dessa maneira, os sintomas depressivos aparecem num contexto em que a mulher é posta em contato com a realidade e diante dela deve se reorganizar: remanejar suas expectativas diante de um bebê de carne e osso, tornar-se mae, identificar-se com esse papel e com as atividades a ele relacionadas. Em geral, esse quadro depressivo se dissipa em alguns dias, porém há situaçoes em que ele se agrava, tornando-se patológico e digno de maior atençao e acompanhamento específico.
Ao discorrer sobre o baby blues, também conhecido como a depressao pós-parto, Michel Soulé1 propoe que nesses casos o quadro se instala nas mulheres que nao conseguem estabelecer o luto em relaçao ao filho imaginário, o que implica uma dificuldade no luto da valorizaçao narcisista. Dessa maneira, o psicanalista propoe que a depressao pós-parto incide nas maes que nao têm sucesso em esperar que o processo de contato com o recém-nascido lhes propicie uma reconciliaçao com o mesmo, permitindo-lhes ultrapassar o relacionamento com o bebê imaginário. Em suma, essas maes se mantêm em investidas exaustivas no sentido de recuperar o relacionamento com o filho imaginário.
Por fim, muito se falou sobre o papel dos pais, em especial da mae, sobre a integraçao entre o bebê imaginário e o bebê real; contudo, isso nao significa dizer que o próprio recém-nascido nao desempenhe uma parte ativa no desenrolar de tal processo. Ferrari, Piccinini e Lopes4 destacam um paradoxo que concerne à questao da representaçao do bebê imaginário: enquanto, por um lado, é essencial que durante a gestaçao seja elaborada a representaçao de um bebê imaginário, por outro, a partir do nascimento, é necessário que as diferenças entre este e o recém-nascido sejam remanejadas.
Assim, é através do bebê imaginário, daquele que foi o portador de suas expectativas, que a mae se pautará para interpretar as necessidades e sinais enunciados por seu bebê real. Contudo, é de suma importância que seja deixado um espaço para que o próprio bebê da realidade se manifeste enquanto sujeito individual, portador de características próprias, visto que, guiando-se apenas (e rigidamente) pelos aspectos de um bebê idealizado, a mae tende a deixar pouco espaço para que a criança surja enquanto ser diferenciado dela mesma. Ferrari, Piccinini e Lopes4 enfatizam que expedientes desse tipo, por parte dos pais, podem ocasionar o surgimento de psicopatologias graves, como psicoses infantis, por exemplo.
É importante ressaltar a açao do bebê sobre a mae, de modo a demonstrar como este nao se coloca de forma puramente passiva na relaçao que se estabelece a partir do nascimento (e até mesmo antes dele). É notável que o recém-nascido desempenha um papel nesse relacionamento de forma que ele poderá "seduzir" seus pais e conquistar o posto até entao reservado ao bebê imaginário. Poderá ocorrer também que o bebê real se negue a realizar tal papel. Soulé1 propoe que tanto o papel que o bebê desempenha dentro da economia psíquica da mae quanto características pessoais da criança sao responsáveis pela maneira como esta desempenha sua parte no relacionamento. Isso serve para demonstrar como diferentes crianças se colocam de diferentes maneiras na relaçao com seus pais e maes.
CONSIDERAÇOES FINAIS
Com o presente artigo foi possível realizar uma resumida revisao do conceito de bebê imaginário, a partir de alguns autores psicanalíticos. Através do exposto, é legítimo concluir que o conceito de bebê imaginário figura na literatura psicanalítica associado à questao do narcisismo materno e configura um aspecto de grande importância na compreensao do relacionamento estabelecido entre a mae e o bebê, tanto ao longo da gestaçao quanto após o nascimento.
A questao da história de vida, em especial a história da gestaçao, infância e nascimento da própria mae, também ocupa um local de destaque na compreensao e no encadeamento do conceito de bebê imaginário, já que, conforme visto ao longo do trabalho, o fator desencadeante do processo imaginativo de bebê imaginário consiste na maneira como a mae recebeu, por sua vez, o estatuto de sujeito por parte daqueles que a "banharam de linguagem" em seus primeiros momentos.
Foi possível ainda identificar um movimento particular no processo de representaçao do bebê imaginário, que nao obedece a um crescendo, muito menos a uma cronologia específica. Tal processo se organiza conforme a capacidade de cada gestante, em relaçao com seu próprio corpo, sua história e sua subjetividade. Foi visto que, ao contrário do que se pode imaginar, o filho imaginário nao é um processo que eclode no momento da confirmaçao da gravidez, e sim uma ideia que se constrói aos poucos e que amadurece e se esvanece em períodos-chave para facilitar a identificaçao e a vinculaçao da mulher com seu bebê.
Finalmente, é relevante pontuar que o presente artigo, conforme enunciado pelo próprio título, orientouse pelo objetivo de realizar uma breve exploraçao do conceito de bebê imaginário, o que indica que, inevitavelmente, muitos aspectos ainda restam a ser investigados. Como sugestoes de futuras pesquisas, sao propostos temas que chamaram a atençao ao longo da elaboraçao do presente trabalho, como a representaçao do bebê imaginário voltada para o contexto paterno, as psicopatologias infantis e sua relaçao com o processo de representaçao do bebê imaginário e um aprofundamento sobre a questao controversa dos exames pré-natais em relaçao ao processo de representaçao do bebê imaginário.
REFERENCIAS
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Psicóloga infantil. Aluna do Curso de Psicoterapia Psicanalítica de Crianças e Adolescentes do Centro de Estudos Psicodinâmicos de Santa Catarina (CEPSC). Mestranda em Estudos da Traduçao pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Instituiçao: Centro de Estudos Psicodinâmicos de Santa Catarina (CEPSC).
Correspondência
Renata Corbetta Tavares
R. Bocaiúva, 2086, Centro
88015-530 Florianópolis, SC, Brasil
rcorbettatavares@gmail.com
Submetido em: 21/12/2014
Aceito em: 11/05/2015
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