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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2016; 18(1):55-67



Artigos Originais

Compreensao psicodinâmica do ciclo vital de Daenerys Targaryen, personagem da série Game of Thrones

Psychodynamic understanding of "Daenerys Targaryen's" life cycle, character from the series "Game of Thrones"

Murilo Martini1; Rodrigo Chiavaro da Fonseca2; Henrique Iahnke Garbin3; Ana Margareth Siqueira Bassols4

Resumo

Este artigo analisa os aspectos psicológicos da personagem Daenerys Targaryen, da série Game of thrones, buscando essencialmente avaliar sua evoluçao cognitiva, social e comportamental, bem como os conflitos vivenciados em seu ciclo vital e os respectivos mecanismos de enfrentamento das adversidades. Por meio da interpretaçao subjetiva das simbologias metafóricas citadas na narrativa, extrapola-se a leitura literal da obra, com vistas a compreender também as representaçoes da esfera inconsciente da personagem. Daenerys tem infância conturbada pela morte dos pais, pela fuga da cidade natal, pelo exílio e pelos maus-tratos cometidos pelo irmao. Ademais, sao-lhe impostos casamento e erotizaçao precoces, eventos que desrespeitam seu tempo de amadurecimento psíquico, desencadeando encurtamento das fases do seu ciclo vital e desestabilizaçao do processo de latência e desenvolvimento puberal. Contudo, as experiências que vivencia no período, tais quais a gestaçao e a emancipaçao por que passa, associadas a variantes inatas da sua personalidade - a exemplo do temperamento dócil, inteligência e autoconfiança na capacidade de resoluçao de vicissitudes -, permitem a expressao de uma figura icônica de resiliência, com ativaçao de defesas maduras frente a crises vitais ou acidentais. O estudo permitiu discutir aspectos da realidade contemporânea do desenvolvimento humano e proceder à observaçao de diversos mecanismos de funcionamento psíquico, além da interaçao entre variantes intrínsecas e extrínsecas moduladoras da expressao de resiliência frente às dificuldades. Este artigo visa a contribuir para o estudo da teoria psicodinâmica e deve interessar a profissionais da medicina e da psicologia.

Descritores: Ciclo vital; Daenerys; Game of thrones; Período de latência (psicologia); Projeçao; Resiliência psicológica.

Abstract

This article analyzes the psychological aspects of character Daenerys Targaryen, from Game of Thrones' series, seeking essentially to evaluate her cognitive, social and behavioral evolution, as well as the conflicts experienced to each stage of her life cycle and related adversity coping mechanisms. Through subjective interpretation of metaphoric symbols mentioned in the narrative, the literal reading of the story is extrapolated in order to also comprehend representations of the character's unconscious domain. Daenerys goes through a troubled childhood due to her parents' death, fleeing from her home city, exile and mistreatment committed by her brother. Furthermore, events like marriage and early erotization are imposed to her, which disrespect her psychic development timing, causing shortening of her life cycle's stages, and destabilization of the latency phase process and her pubertal development. Nevertheless, the experiences she goes through in this period, such as pregnancy and emancipation, associated to innate variants of her personality - docile temperament, high cognition and self-confidence in the ability of resolving difficulties -, allow the expression of a resilient iconic figure, with the activation of mature defenses when facing vital or accidental crises. The study allows transpositions to contemporaneous reality of human development and observation of several mechanisms of psychic functions, besides the interaction between intrinsic and extrinsic variants, which modulate the expression of resilience when confronting distress. It contributes to the study of psychodynamic theory and may be of interest to doctors and psychologists, especially those directly involved in psychic development.

Keywords: Life Cycle; Daenerys; Game of Thrones; Latency Period (Psychology); Projection; Psychological resilience.

 

 

INTRODUÇAO

A história das narrativas ficcionais é tao vasta quanto a quantidade de funçoes que elas desempenharam ao longo da evoluçao humana. Sabe-se, entretanto, que, desde o período de transmissao oral até a contemporaneidade, os propósitos do entretenimento e da transmissao de uma mensagem sobre a vida se têm perpetuado. Com o incremento tecnológico dos últimos séculos e a emergência da cinematografia, no entanto, o mercado das artes audiovisuais tem se tornado crescentemente competitivo, e disso resulta uma necessidade constante de renovaçao dos padroes estilísticos e conceituais envolvidos na construçao de personagens cativantes e com potencial para conquistar o público. A arte audiovisual firma, nesse aspecto, uma aliança importante com a psicologia, visando à construçao de personagens verossímeis e psicologicamente complexas1.

Daenerys Targaryen, da série Game of thrones2, é um exemplo dessa interaçao, cuja compreensao contribui para o estudo da teoria psicodinâmica. Seu ciclo vital conta com inúmeros momentos de crises vitais ou acidentais, tais quais a morte dos pais, o exílio e os maus-tratos cometidos por seu irmao ainda durante a infância, além da imposiçao de um casamento e de erotizaçao precoces, que desrespeitam seu tempo de amadurecimento psíquico. Aspectos inatos da sua personalidade e fatores ambientais, porém, sao responsáveis pela resiliência que ela apresenta diante de tais adversidades.

O mundo de Westeros3, no qual se desenvolve a narrativa, propoe trazer, pois, toda a riqueza subjetiva para uma zona de plena visibilidade. No que tange a isso, os autores do artigo compartilham a visao de Sigmund Freud4 de que a esfera consciente da mente humana é análoga à ponta de um iceberg visível da superfície da água, a qual esconde e mantém relaçoes de dependência com toda a estrutura inconsciente que permanece escondida4, cabendo-lhes, portanto, a funçao transformadora de denunciar os pormenores da esfera inconsciente que se refletem nos diálogos, atitudes e comportamentos da personagem. Sabe-se também que a personagem é fictícia e, portanto, produto de uma mente humana, a qual projeta seus sentimentos e angústias pessoais na narrativa; desse modo, existem incidentes e passagens com representaçao metafórica e figuras com simbolismo próprio que precisam ser apreciados de maneira subjetiva por meio de abstraçoes à luz da psicologia humana. Por último, salienta-se que, para fins metodológicos, optou-se por analisar apenas as duas primeiras temporadas da série, junto com os respectivos volumes da saga "As crônicas de gelo e fogo"3, de modo que a variedade de acontecimentos pudesse ser avaliada com maior profundidade. O motivo pelo qual se realizou a análise combinada dos livros e da série é mostrar a complementaridade entre eles na apresentaçao da personagem: enquanto esta possui rica caracterizaçao da personalidade de Daenerys, aqueles esclarecem especialmente sua idade, elemento essencial para estudo da cronologia das fases de seu ciclo vital. Isso permite também importante reflexao acerca da erotizaçao precoce que ela sofre, a qual, entretanto - possivelmente por busca de enquadramento aos padroes morais e estéticos da televisao -, permanece oculta na série.

O objetivo deste trabalho é, assim, realizar uma apreciaçao sensível das diferentes etapas do ciclo vital da personagem, perpassando especialmente a adolescência e a maternidade e estabelecendo paralelo com as teorias psicanalíticas existentes. Ademais, sao abordados tanto defesas imaturas quanto aspectos variados de resiliência apresentados por ela no enfrentamento de adversidades e, também, um processo de erotizaçao da juventude, o qual, embora descrito em um contexto de ficçao medieval, pode ser transposto à realidade atual, pois constitui uma característica predominante da era pós-moderna e uma preocupaçao iminente como fator desencadeante de psicopatologia. O entendimento da fantasia, constitutiva de identidades e criadora de espaços psíquicos tao reais e potentes quanto a realidade da vida, é, assim, foco primordial desta análise, que propicia ainda discussao em torno da dimensao psicológica do ser humano, de maneira a encorajar condutas éticas e reflexivas de empatia e beneficência, indispensáveis à relaçao do médico com seu paciente.


CASAMENTO COM KHAL DROGO: UMA VISAO SOBRE A EROTIZAÇAO DA JUVENTUDE E A DESESTABILIZAÇAO DO PROCESSO DE LATENCIA

A narraçao se inicia no momento em que a personagem completou 13 anos, sendo que o leitor somente toma consciência de sua vida passada a partir de recortes e feedbacks. Daenerys é exposta a condiçoes que tornam necessário um amadurecimento precoce e vive os conflitos típicos da ambivalência entre a adolescente e a mulher que existem dentro de si. Embora na série de televisao a idade nao seja abordada, o livro deixa claro que ela tem 13 anos ao ser vendida para Drogo, líder de um grupo nômade com quem é obrigada a casarse com vistas a conseguir um exército para o irmao.

Sabe-se que o entendimento da infância é temporal e respeita-se o fato de a saga tratar da época do medievo, em que os casamentos arranjados eram comuns e as jovens mulheres eram expostas a condiçoes atualmente consideradas desrespeitosas. Os autores do trabalho compreendem e admiram o empenho de George Martin em produzir uma obra realista e verossímil e nao visam a mover acusaçoes contra a série, nem mesmo a julgar moralmente os atos e comportamentos das personagens, removendo-lhes de seu contexto histórico e sociocultural e cometendo anacronismos típicos. Conhecendo-se, entretanto, as características e a cronologia de cada fase do ciclo vital, almeja-se neste tópico apenas reportar a maneira como foram erigidas exigências externas incompatíveis com a etapa de desenvolvimento psíquico analisada na personagem, considerando aspectos cognitivos, psicossociais e afetivos.

Aos 13 anos, a personagem ainda está, teoricamente, em processo de desenvolvimento puberal, nao se encontrando emocionalmente preparada para lidar com as dificuldades e responsabilidades do matrimônio e da maternidade que dela se exigem. Seu funcionamento psicológico apresenta características infantis, tais quais a submissao e a dependência em relaçao ao irmao Viserys, única figura "paterna" que conhece e provavelmente alvo das suas idealizaçoes edípicas, assim como desconforto, medo e insegurança em relaçao à prática sexual com Drogo, o que é esperado em um período de transiçao para a adolescência. É interessante lembrar que tais idealizaçoes edípicas sao reforçadas pela cultura do incesto prevalente durante a evoluçao da dinastia Targaryen, e que, assim, a personagem possivelmente vislumbrasse perpetuar seus genes através de um casamento consanguíneo com Viserys, mais um motivo pelo qual o matrimônio com Drogo irrompe nela necessidade abrupta de abandono das fantasias infantis e de rápida progressao do ciclo vital.

Por esse motivo, pode-se dizer que a transiçao prematura da personagem à fase adulta, como imposta por Viserys por meio da sua oferenda, consiste em um desrespeito ao tempo necessário de amadurecimento, o que nao é saudável. Ainda que o livro trate de uma sociedade medieval, essa referência é válida para os dias atuais, em que, nas famílias, a sensaçao de aceleraçao do cotidiano e o aumento da expectativa de vida levaram a um comum encurtamento das fases do ciclo, o qual, mesmo ocorrendo por mecanismos distintos, é igualmente predisponente ao surgimento de psicopatologia.

A filosofia atual do mundo de aceleraçao da vida e, ao mesmo tempo, de manutençao do estado de vitalidade invadem de modo relevante o desenvolvimento. Assim sendo, as crianças devem crescer com rapidez, e os adultos nao podem suportar o processo natural do envelhecimento. Ficam comprometidos os pilares de identificaçao do processamento da latência. Os pais passam a ser modelos caricatos de jovens para as crianças, e estas, por sua vez, passam a representar um papel igualmente caricato de um pequeno adulto (p. 152)5.

Além disso, a personagem é amplamente erotizada na tentativa de atrair a atençao do Khal e de realizálo sexualmente para garantir maior viabilidade a Viserys cumprir seu plano de reconquista do Trono de Ferro. A feminilidade é imposta coercivamente sobre a garota, que ainda se sente menina, e lhe gera uma experiência sexual claramente traumática, podendo-se comparar os possíveis danos psíquicos àqueles da exploraçao sexual, que podem variar desde o aparecimento de fobias, atraso escolar e enurese em curto prazo até efeitos crônicos de modificaçao da personalidade, como sentimento de culpa, depressao, baixa autoestima, timidez, agressividade, medo, embotamento afetivo, isolamento, sexualidade exacerbada6, dificuldade em confiar nos outros, além de alteraçoes de sono, dores abdominais, entre outros.

Também essa realidade guarda relaçao com mudanças contemporâneas que têm sido estudadas à luz da psicologia, as quais consistem em semelhante erotizaçao da infância e da juventude, que, entretanto, é estimulada por apelos publicitários e midiáticos e se instala de maneira mais sutil e subliminar. Há uma pressao social "em direçao a práticas precoces, com frequência superestimuladas pelo culto à sexualidade de nossa cultura"7. O constante acesso da criança à televisao pode colocar em risco seu desenvolvimento emocional, por exemplo, pois, caso seja exposta a conteúdo distorcido, tende a absorvê-lo por identificaçao projetiva, passando a organizar sua realidade psíquica com base nas imagens que vê mais repetidamente, especialmente nas propagandas. Dessa maneira, a erotizaçao explícita e constante pode se manifestar no momento das brincadeiras e no conceito de realidade que a criança introjeta8, tendo por consequências erotizaçao precoce e desestabilizaçao psíquica ocasionada pela desorganizaçao das etapas do ciclo vital.


ADOLESCENCIA E NECESSIDADE DE PERTENCIMENTO AO GRUPO

A época do casamento, sao visíveis características psíquicas da adolescência. "O adolescente, do ponto de vista da psicanálise, é um sujeito em vias de transformaçao, imerso em um processo profundo de revisao de seu mundo interno e de suas heranças infantis, visando à adaptaçao ao novo corpo, às novas pulsoes, decorrentes da puberdade" (p. 128)9.

Targaryen encontra-se em uma fase de descoberta sexual e, a partir da característica idealizaçao do Khal, passa a empenhar-se no aprendizado de práticas sexuais que o pudessem satisfazer. Por meio de experiências homossexuais com suas amas, a jovem adquire um maior contato com seu próprio corpo e com as sensaçoes que percebe em si.

Sao ainda típicas da juventude as incursoes pelo mundo adulto, na busca por autonomia e identidade própria.

O adolescente na família segue o padrao de latência, aceitando o modelo dos pais como o seu modelo de vida, com experiências sexuais mínimas, reproduzindo o esquema familiar que os pais lhe apresentam. O adolescente no mundo adulto seriam as incursoes pseudomaduras em que o jovem age "como se" fosse um adulto, sendo que a força motivadora nao seria o amadurecimento e a definiçao de objetivos, mas a entrada rápida e forçada na condiçao adulta para mostrar aos pais como se é um adulto (p. 146)9.

No caso da garota, órfa, a única figura familiar que assumiu imagem paterna foi a do irmao. É ao longo do conturbado processo de transiçao criança-adolescente-mulher que a personagem começa a afrontá-lo e a despender grande parte de seu tempo em demonstraçoes de maturidade e independência, deixando de reproduzir o esquema familiar que aprendera. Exemplo disso é que, embora tenha sido constantemente advertida por Viserys sobre sua condiçao de "princesa Targaryen", o fenômeno de compartilhamento de experiências com o grupo e as relaçoes de empatia que ela mantém, e que resultam na primeira possibilidade de autoconhecimento, sao tao característicos da fase que, por vezes, a personagem diz que "nao é uma rainha, é uma Khaleesi" e passa a reconhecer-se e a agir de acordo com a cultura dothraki, renegando temporariamente vários aspectos da cultura Targaryen e entrando em constantes atritos com o irmao. Esse processo de identificaçao bastante particular no ciclo vital é reconhecido como normal. A variante patológica seria se o adolescente se mantivesse constantemente em seu universo interior e em suas soluçoes narcísicas e nao buscasse socializar suas experiências ou reconhecer-se dentro do grupo9.


TRANSFORMAÇOES PSIQUICAS DURANTE A GESTAÇAO E MECANISMOS DE PROJEÇAO DA MAE SOBRE O "GARANHAO QUE MONTA O MUNDO"

"No início da gestaçao, surge o sentimento de ter-se tornado finalmente 'mulher'. A gestante está inebriada com a percepçao de algo semelhante a poder, capacidade, realizaçao; já nao é mais uma menina, mas uma mulher. Assim, no primeiro trimestre, apesar de todos os temores, sente-se plena e orgulhosa" (p. 30)10. É exatamente essa característica que se observa na pequena Khaleesi quando ela engravida de Drogo. Do ponto de vista psicológico, a mulher tem, em todos os períodos de sua vida, manifestaçoes de um instinto de maternidade que permanecem na interface entre os comportamentos inatos e aqueles adquiridos pela convivência social. A personagem, que sofria grande pressao do irmao para que engravidasse, reage à notícia com tremenda felicidade e orgulho, direcionando seu foco no planejamento do futuro do filho. A cultura dothraki reforça esses sentimentos por cultuar e valorizar a mulher pela sua fertilidade. Há uma crença de transferência hereditária de vigor e, por ela ser mulher do Khal, espera-se que gere um "garanhao" que lidere o Khalasar, de modo que a pequena Targaryen, nascida para ser rainha, recebe, agora como Khaleesi, pela primeira vez grande quantidade de atençao e respeito social como sempre sonhou, vivenciando uma experiência única e encorajadora que culminará em transformaçoes psíquicas essenciais.

Também por parte de Drogo é notável um sentimento de conquista quando da descoberta de que será pai. Esse sentimento resulta de uma sensaçao de triunfo sobre o complexo edípico: o Khal, que já havia se afirmado perante a sociedade e conquistado o respeito de enorme quantidade de guerreiros dothraki, agora se vê vitorioso diante das batalhas internas que travou em estágios prévios de seu ciclo vital, quando, na infância, competia com o pai pelo carinho e atençao da mae10.

Enxerga-se no casal uma idealizaçao imensa da criança, que é comum no início da gestaçao, quando os pais ainda estao eufóricos e deslumbrados pela vivência de prazeres idílicos. Há, na saga, relato de um ritual importante em que Daenerys, cumprindo as tradiçoes do local, ingere um coraçao inteiro de cavalo para nutrir o feto e garantir desde cedo que aquela gestaçao resultará no nascimento de um guerreiro dothraki forte e ambicioso para liderar o Khalasar. Ademais, ambos os pais referem-se ao bebê como o "Garanhao que Monta o Mundo", edificando uma fantasia de força e poder para sua prole. Essa é uma fase normal da gestaçao em que "a grávida se sente com 'o rei na barriga'. O bebê pode vir a ser o Messias, o presidente da república, um ídolo, etc." (p. 30)10.

Entretanto, "[...] pessoas que estao insatisfeitas com sua vida, acabam por projetar nos filhos aquilo que, por este ou aquele motivo, nao conseguiram alcançar em seus objetivos. Isso é feito sem a mínima consciência, [...] visto que é resultado de desejos reprimidos e que inconscientemente influenciam os pais a tal atitude" (p. 4)11. É o caso de Daenerys, cuja família beira à extinçao, tendo nela e no irmao os únicos sobreviventes. Por suas frustraçoes na reconquista do trono e porque, em Westeros, o poder é condicionado pela hereditariedade, Targaryen cria sobre o feto uma fantasia de perpetuaçao gênica e de sobrevivência. Por esses motivos, o período de idealizaçao fetal, que se conhece por natural e saudável, torna-se, no caso da Khaleesi, uma etapa difícil de ser superada ou vivida saudável e equilibradamente, visto que ela fica predisposta à ativaçao de mecanismos obsessivos e de fenômenos potencialmente patogênicos de projeçao sobre o bebê, ainda que isso permaneça na sua esfera inconsciente.

Essas fantasias de projeçao e perpetuaçao gênica se dao no sentido de que o feto passa a ser reconhecido como aquele que reconquistará o trono pertencente à sua família. A personagem inclusive o nomeia "Rhaego", em homenagem a seu irmao Rhaegar, herdeiro legítimo do trono, assassinado durante a Rebeliao de Robert, sinalizando sua intençao de que ele participe da reconquista dos Sete Reinos e da vingança àqueles que aniquilaram sua família. Durante episódios posteriores, a gravidez continua fortalecendo nela as manifestaçoes de seu id, que deseja vingança e projeta seus sonhos sobre o feto, e ela, persuasiva, enfim convence o Khal a conquistar o trono para presentear o filho.

Já em termos de patogenia, entende-se que a projeçao pré-natal de uma criança que nasce com características idealizadas e que cumpre, ao longo de sua vida, os sonhos que permaneceram frustrados na mae confronta-se com o desconhecimento das reais características físicas, cognitivas e temperamentais da criança que irá nascer, de maneira que o resultado pode ser uma decepçao para os pais e uma frustraçao para a própria criança. "Isso tudo tende a causar a infelicidade dos filhos no futuro, quando se lhes tornar consciente o que realmente os influenciou e quando souberem que aquilo nao os realiza, estabelecendo-se uma liberdade que amplia a sua consciência para nao viver as projeçoes dos pais" (p. 5)11.

Por outro lado, registra-se que todo o processo de transformaçao psicológica resultante do casamento e da gestaçao, somado ao reconhecimento pelo marido e pela sociedade, faz com que, como se espera de uma gravidez normal, ela se sinta transformada em uma verdadeira mulher e supere, de certa forma, os conflitos da transiçao das fases do ciclo citados anteriormente. Esse processo lhe confere mais vigor e participa da emancipaçao sentida em seu comportamento: a jovem, que até entao jamais contrariara Viserys, passa a confrontá-lo. O auge dessa transformaçao se dá quando, após ser agredida fisicamente pelo irmao, em vez de atender às súplicas dele e impedir que Drogo, irritado, derrame ouro derretido na sua cabeça e o mate, reage friamente ao evento declarando que "Ele nao era um dragao. O fogo nao pode matar um dragao"1, como miticamente estabelecido na época.

A gestaçao da Khaleesi, no entanto, nao é concluída com sucesso, e o filho nasce com deformidades físicas terríveis, falecendo logo após o parto, um desastre na sua vida que vem acompanhado da morte do marido e do abandono de seu exército, situaçoes que lhe impoem condiçao de extrema tristeza, angústia e luto, porque todos os seus projetos, fantasias e idealizaçoes sao abandonados de maneira abrupta. O manejo dos conflitos psicológicos em uma situaçao como esta e a posterior recuperaçao da personagem ocorrem por meio de importante ritual de passagem e renovaçao, no qual ela mergulha no fogo e sai dele ilesa, episódio rico em metáforas que denotam mecanismos de resiliência utilizados no enfrentamento de adversidades.


DAENERYS E A FIGURA DE FENIX: RESILIENCIA NO ENFRENTAMENTO DE DIFICULDADES E PERSPECTIVAS PSICOTERAPEUTICAS

Daenerys é conhecida por ser uma personagem em constante processo de reciclagem. Sua vida conta com a imposiçao de enorme gama de adversidades. Mesmo seu primeiro suspiro traz história de dor e dificuldade, pois a personagem vem ao mundo justamente na época em que seu pai, Rei Aerys II, está perdendo a guerra para a Rebeliao de Robert e na iminência de ser destituído do trono. O momento do nascimento se dá em meio a uma tempestade que destruía a frota Targaryen, e a rainha Rhaella morre durante o parto, dando à luz uma criança órfa, episódio que rende à garota o título de "Nascida da Tormenta" e que é provido de enorme simbolismo, servindo de prenúncio para a vida de lutos e reviravoltas que ela vivenciará.

Ao longo da infância, a menina é constantemente perseguida pelas tropas de Robert, que almejam a extinçao definitiva da família Targaryen, e permanece exilada, conhecendo apenas a companhia do irmao Viserys, este um guardiao cruel, propenso a mudanças repentinas de humor e comportamentos agressivos. Ainda na adolescência, é oferecida para casar-se com Drogo, e, embora sejam claras as manifestaçoes de descontentamento com o casamento arranjado, o irmao reage com frieza e afirma que nada estragaria seus planos de reconquista do Trono de Ferro e que "permitiria que toda a sua tribo a 'fodesse' - todos os 40 mil homens e seus cavalos -, se fosse necessário"2, para conseguir um exército. Ainda aos 13 anos, a garota sofre coerçao social para que cumpra suas obrigaçoes matrimoniais, e o Khal, acostumado com os hábitos selvagens do cla, nao é empático diante do seu medo e insegurança, praticando sexo de maneira brutal e dolorosa para a moça.

Diante de tantas adversidades e crueldade e da privaçao do direito a família e amigos que lhe permitam um desenvolvimento normal, a psicologia tradicional esperaria uma criança com enorme quantidade de traumas e desempenho social e cognitivo comprometido. No entanto, Dany, durante o contato com suas amas, aprende a amar Drogo e o conquista, tornando-se esposa dedicada e amorosa. Também é afetuosa e misericordiosa com seus subordinados e inclusive dá liberdade aos escravos que os dothraki planejavam assassinar, adquirindo o título de "Destruidora de Correntes". Essa capacidade de regeneraçao é provavelmente a particularidade de seu caráter que mais atrai a admiraçao dos espectadores e que lhe rende uma enorme quantidade de fas.

O conceito de resiliência tem sido estudado desde 1970 e enquadra-se em uma nova vertente chamada "psicologia positiva", a qual condena a prática histórica de focalizaçao exclusiva das patologias e busca especialmente entender os aspectos "virtuosos" da mente12. Essa inclinaçao é vista como uma "tentativa de levar os psicólogos contemporâneos a adotarem uma visao mais aberta e apreciativa dos potenciais, das motivaçoes e das capacidades humanas" (p. 216)13.

Estudos realizados com crianças que tinham quatro ou mais fatores de risco para seu desenvolvimento psicológico, educacional e social contaram com inúmeras amostras e em todas elas houve referência de grande percentual amostral que nao apresentava distúrbios de aprendizagem ou comportamento, sendo essas crianças as chamadas "resilientes"14. É o que parece ser o caso da Khaleesi, cujo desempenho cognitivo, afetivo ou social se manteve relativamente ileso apesar das dificuldades.

Desde que se iniciaram tais pesquisas, aceita-se a existência de um componente inato de resiliência, o qual é compatível com a personagem, cuja força parece advir em parte dos genes e do próprio sangue, visao reiterada pela constante abordagem da garota como herdeira do trono. Daenerys tem um sentimento constante de confiança de que os obstáculos possam ser superados, principal agente para o coping de indivíduos resilientes13.

Após a morte do filho e do marido, a personagem conta com um ritual de passagem a partir do qual se renova emocionalmente. Ela entra na pira funerária de Drogo, carregando seus três ovos de dragao para dentro do fogo e, no momento em que ele se apaga, reaparece viva e sem machucados, carregando agora três dragoes e afirmando que ela, diferentemente do irmao queimado com ouro fundido, é um verdadeiro dragao Targaryen. Essa passagem nao pode ser compreendida literalmente à luz da psicologia, porém traz referência metafórica interessante a um elemento hereditário (expresso sob o símbolo do sobrenome Targaryen) de transmissao de vigor, bem como uma provável referência à figura da Fênix.

Fênix é um pássaro que, segundo a mitologia egípcia, autodestrói-se a cada ciclo e renasce de suas próprias cinzas, simbolizando esperança e renovaçao15. A sua semelhança, no momento em que Khaleesi se coloca sob as chamas e sai delas ilesa, ela, de certa forma, renasce das cinzas e deixa para trás todas as dificuldades, renovando-se na luta por seus anseios, tomando rumos distintos e contando com seguidores também distintos. Essa referência metafórica reforça o entendimento de um componente psicológico intrínseco (um "algo interno") que atua como mecanismo de adaptaçao, e essa relaçao entre as figuras de Daenerys e da Fênix se mantém nos episódios seguintes, em que ela sobrevive ao Deserto Vermelho e passa por outras situaçoes de dificuldade, tais quais o assassinato de suas amas e o roubo de seus três dragoes, reagindo com igual resiliência na superaçao dos lutos.

Atualmente se reconhece, porém, que a resiliência nao é exclusivamente inata, mas um construto psicológico que resulta da interaçao dos componentes inatos com os socioambientais, motivo pelo qual se tem abandonado o termo correspondente "invulnerabilidade"14. Embora resiliente, Daenerys permanece responsiva aos abalos ambientais, com desenvolvimento de traumas e obsessoes incompatíveis com um conceito utópico de "invulnerabilidade". Diante do desespero de ter perdido seus dragoes, por exemplo, a personagem manifesta que "iria à busca de seus filhos" e mantém-se afixada à ideia mesmo após ser contrariada. Esse apego aos dragoes ultrapassa o simples título que lhe foi ministrado de "Mae dos Dragoes", pois pode aparecer como mecanismo patológico de compensaçao pelo filho morto: a personagem, cujas idealizaçoes do período gestacional imaginavam um filho que retomaria o Trono de Ferro, agora objetifica seus afetos e projeta sobre os dragoes sua esperança de retomá-lo.

A resiliência, assim, "nao pode ser vista como um atributo fixo do indivíduo", pois "se as circunstâncias se alteram, a resiliência se altera" (p. 317)16. A pesquisa anteriormente citada com crianças em situaçoes de risco para sua estabilidade psicológica e cognitiva reforçou o entendimento da influência ambiental na constituiçao da resiliência ao demonstrar aspectos tanto inatos quanto circunstanciais prevalentes nas crianças resilientes, sendo eles "temperamento das crianças/jovens (percebidos como afetivos e receptivos); melhor desenvolvimento intelectual; maior nível de autoestima; maior grau de autocontrole; famílias menos numerosas e menor incidência de conflitos nas famílias" (p. 78-79)12. No caso de Daenerys, já eram presentes desde o início da série alguns desses elementos (temperamento, autocontrole e desenvolvimento intelectual positivos); porém, ela permanecia de início bastante apática até o momento em que começa a ter sucesso na interaçao social e conjugal , conquistando também melhora na autoestima, fator ambiental que atua como agente transformador e modula positivamente a expressao de sua resiliência, tornando-a mais capaz de enfrentar dificuldades.

Esse abandono do conceito estático de invulnerabilidade e aceitaçao de mecanismos ambientais de modulaçao da resiliência é relativamente recente e propoe uma visao psicodinâmica das respostas individuais, que amplia os horizontes das práticas psicoterápicas, pois abre espaço para que sejam trabalhadas condiçoes externas ao sujeito com impacto potencial no direcionamento para uma resposta saudável na superaçao de crises vitais e acidentais, com reduçao dos traumas produzidos.


CONSIDERAÇOES FINAIS

O presente trabalho expoe a trajetória de Daenerys Targaryen, personagem cujo ciclo vital foi apressado pela imposiçao de desafios além daqueles esperados para sua idade e pela ocorrência de inúmeras crises acidentais. O processo de adolescência, com compartilhamento de experiências narcísicas, autoconhecimento e maturaçao sexual, assim como a gestaçao, a elevaçao da autoestima, o desejo de emancipaçao e o reconhecimento de suas virtudes pelo grupo sao, porém, agentes transformadores que permitem, associados a fatores inatos, a superaçao das adversidades e a expressao de uma figura icônica de vigor e resiliência.

A compreensao dos elementos de um ciclo vital saudável, das transformaçoes psíquicas potenciais ao longo das suas fases e dos componentes ambientais moduladores da resiliência abre os horizontes da clínica psicoterápica, especialmente no tratamento de indivíduos que vivenciam traumas e adversidades. Torna-se possível o direcionamento para respostas saudáveis de superaçao, partindo-se tanto da compreensao e elaboraçao dos conflitos, da estimulaçao direta do paciente, quanto ao manejo das condiçoes externas ao sujeito, com criaçao de situaçao ambiental favorável à expressao de resiliência.


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1. Faculdade de Medicina (Famed). Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil
2. Faculdade de Medicina (Famed). Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil
3. Faculdade de Medicina (Famed). Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil
4. Doutora em Psiquiatria (UFRGS). Professora adjunta, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Famed, UFRGS. Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência, Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Porto Alegre, RS, Brasil

Instituiçao: Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal. Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência, Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Porto Alegre, RS, Brasil.

Correspondência
Murilo Martini
Rua Vasco da Gama, 1.070, número 301
90420-110 Porto Alegre, RS, Brasil
murilo.martini@ufrgs.br

Submetido em: 05/05/2015
Aceito em: 12/06/2015

 

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