Rev. bras. psicoter. 2016; 18(1):55-67
Martini M, Fonseca RC, Garbin HI, Bassols AMS. Compreensao psicodinâmica do ciclo vital de Daenerys Targaryen, personagem da série Game of Thrones. Rev. bras. psicoter. 2016;18(1):55-67
Artigos Originais
Compreensao psicodinâmica do ciclo vital de Daenerys Targaryen, personagem da série Game of Thrones
Psychodynamic understanding of "Daenerys Targaryen's" life cycle, character from the series "Game of Thrones"
Murilo Martini1; Rodrigo Chiavaro da Fonseca2; Henrique Iahnke Garbin3; Ana Margareth Siqueira Bassols4
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A história das narrativas ficcionais é tao vasta quanto a quantidade de funçoes que elas desempenharam ao longo da evoluçao humana. Sabe-se, entretanto, que, desde o período de transmissao oral até a contemporaneidade, os propósitos do entretenimento e da transmissao de uma mensagem sobre a vida se têm perpetuado. Com o incremento tecnológico dos últimos séculos e a emergência da cinematografia, no entanto, o mercado das artes audiovisuais tem se tornado crescentemente competitivo, e disso resulta uma necessidade constante de renovaçao dos padroes estilísticos e conceituais envolvidos na construçao de personagens cativantes e com potencial para conquistar o público. A arte audiovisual firma, nesse aspecto, uma aliança importante com a psicologia, visando à construçao de personagens verossímeis e psicologicamente complexas1.
Daenerys Targaryen, da série Game of thrones2, é um exemplo dessa interaçao, cuja compreensao contribui para o estudo da teoria psicodinâmica. Seu ciclo vital conta com inúmeros momentos de crises vitais ou acidentais, tais quais a morte dos pais, o exílio e os maus-tratos cometidos por seu irmao ainda durante a infância, além da imposiçao de um casamento e de erotizaçao precoces, que desrespeitam seu tempo de amadurecimento psíquico. Aspectos inatos da sua personalidade e fatores ambientais, porém, sao responsáveis pela resiliência que ela apresenta diante de tais adversidades.
O mundo de Westeros3, no qual se desenvolve a narrativa, propoe trazer, pois, toda a riqueza subjetiva para uma zona de plena visibilidade. No que tange a isso, os autores do artigo compartilham a visao de Sigmund Freud4 de que a esfera consciente da mente humana é análoga à ponta de um iceberg visível da superfície da água, a qual esconde e mantém relaçoes de dependência com toda a estrutura inconsciente que permanece escondida4, cabendo-lhes, portanto, a funçao transformadora de denunciar os pormenores da esfera inconsciente que se refletem nos diálogos, atitudes e comportamentos da personagem. Sabe-se também que a personagem é fictícia e, portanto, produto de uma mente humana, a qual projeta seus sentimentos e angústias pessoais na narrativa; desse modo, existem incidentes e passagens com representaçao metafórica e figuras com simbolismo próprio que precisam ser apreciados de maneira subjetiva por meio de abstraçoes à luz da psicologia humana. Por último, salienta-se que, para fins metodológicos, optou-se por analisar apenas as duas primeiras temporadas da série, junto com os respectivos volumes da saga "As crônicas de gelo e fogo"3, de modo que a variedade de acontecimentos pudesse ser avaliada com maior profundidade. O motivo pelo qual se realizou a análise combinada dos livros e da série é mostrar a complementaridade entre eles na apresentaçao da personagem: enquanto esta possui rica caracterizaçao da personalidade de Daenerys, aqueles esclarecem especialmente sua idade, elemento essencial para estudo da cronologia das fases de seu ciclo vital. Isso permite também importante reflexao acerca da erotizaçao precoce que ela sofre, a qual, entretanto - possivelmente por busca de enquadramento aos padroes morais e estéticos da televisao -, permanece oculta na série.
O objetivo deste trabalho é, assim, realizar uma apreciaçao sensível das diferentes etapas do ciclo vital da personagem, perpassando especialmente a adolescência e a maternidade e estabelecendo paralelo com as teorias psicanalíticas existentes. Ademais, sao abordados tanto defesas imaturas quanto aspectos variados de resiliência apresentados por ela no enfrentamento de adversidades e, também, um processo de erotizaçao da juventude, o qual, embora descrito em um contexto de ficçao medieval, pode ser transposto à realidade atual, pois constitui uma característica predominante da era pós-moderna e uma preocupaçao iminente como fator desencadeante de psicopatologia. O entendimento da fantasia, constitutiva de identidades e criadora de espaços psíquicos tao reais e potentes quanto a realidade da vida, é, assim, foco primordial desta análise, que propicia ainda discussao em torno da dimensao psicológica do ser humano, de maneira a encorajar condutas éticas e reflexivas de empatia e beneficência, indispensáveis à relaçao do médico com seu paciente.
CASAMENTO COM KHAL DROGO: UMA VISAO SOBRE A EROTIZAÇAO DA JUVENTUDE E A DESESTABILIZAÇAO DO PROCESSO DE LATENCIA
A narraçao se inicia no momento em que a personagem completou 13 anos, sendo que o leitor somente toma consciência de sua vida passada a partir de recortes e feedbacks. Daenerys é exposta a condiçoes que tornam necessário um amadurecimento precoce e vive os conflitos típicos da ambivalência entre a adolescente e a mulher que existem dentro de si. Embora na série de televisao a idade nao seja abordada, o livro deixa claro que ela tem 13 anos ao ser vendida para Drogo, líder de um grupo nômade com quem é obrigada a casarse com vistas a conseguir um exército para o irmao.
Sabe-se que o entendimento da infância é temporal e respeita-se o fato de a saga tratar da época do medievo, em que os casamentos arranjados eram comuns e as jovens mulheres eram expostas a condiçoes atualmente consideradas desrespeitosas. Os autores do trabalho compreendem e admiram o empenho de George Martin em produzir uma obra realista e verossímil e nao visam a mover acusaçoes contra a série, nem mesmo a julgar moralmente os atos e comportamentos das personagens, removendo-lhes de seu contexto histórico e sociocultural e cometendo anacronismos típicos. Conhecendo-se, entretanto, as características e a cronologia de cada fase do ciclo vital, almeja-se neste tópico apenas reportar a maneira como foram erigidas exigências externas incompatíveis com a etapa de desenvolvimento psíquico analisada na personagem, considerando aspectos cognitivos, psicossociais e afetivos.
Aos 13 anos, a personagem ainda está, teoricamente, em processo de desenvolvimento puberal, nao se encontrando emocionalmente preparada para lidar com as dificuldades e responsabilidades do matrimônio e da maternidade que dela se exigem. Seu funcionamento psicológico apresenta características infantis, tais quais a submissao e a dependência em relaçao ao irmao Viserys, única figura "paterna" que conhece e provavelmente alvo das suas idealizaçoes edípicas, assim como desconforto, medo e insegurança em relaçao à prática sexual com Drogo, o que é esperado em um período de transiçao para a adolescência. É interessante lembrar que tais idealizaçoes edípicas sao reforçadas pela cultura do incesto prevalente durante a evoluçao da dinastia Targaryen, e que, assim, a personagem possivelmente vislumbrasse perpetuar seus genes através de um casamento consanguíneo com Viserys, mais um motivo pelo qual o matrimônio com Drogo irrompe nela necessidade abrupta de abandono das fantasias infantis e de rápida progressao do ciclo vital.
Por esse motivo, pode-se dizer que a transiçao prematura da personagem à fase adulta, como imposta por Viserys por meio da sua oferenda, consiste em um desrespeito ao tempo necessário de amadurecimento, o que nao é saudável. Ainda que o livro trate de uma sociedade medieval, essa referência é válida para os dias atuais, em que, nas famílias, a sensaçao de aceleraçao do cotidiano e o aumento da expectativa de vida levaram a um comum encurtamento das fases do ciclo, o qual, mesmo ocorrendo por mecanismos distintos, é igualmente predisponente ao surgimento de psicopatologia.
A filosofia atual do mundo de aceleraçao da vida e, ao mesmo tempo, de manutençao do estado de vitalidade invadem de modo relevante o desenvolvimento. Assim sendo, as crianças devem crescer com rapidez, e os adultos nao podem suportar o processo natural do envelhecimento. Ficam comprometidos os pilares de identificaçao do processamento da latência. Os pais passam a ser modelos caricatos de jovens para as crianças, e estas, por sua vez, passam a representar um papel igualmente caricato de um pequeno adulto (p. 152)5.
O adolescente na família segue o padrao de latência, aceitando o modelo dos pais como o seu modelo de vida, com experiências sexuais mínimas, reproduzindo o esquema familiar que os pais lhe apresentam. O adolescente no mundo adulto seriam as incursoes pseudomaduras em que o jovem age "como se" fosse um adulto, sendo que a força motivadora nao seria o amadurecimento e a definiçao de objetivos, mas a entrada rápida e forçada na condiçao adulta para mostrar aos pais como se é um adulto (p. 146)9.
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