ISSN 1516-8530 Versão Impressa
ISSN 2318-0404 Versão Online

Revista Brasileira de Psicoteratia

Submissão Online Revisar Artigo

Rev. bras. psicoter. 2016; 18(1):40-54



Artigos Originais

Psicoterapia psicanalítica de casais e famílias: caracterizaçao da clientela

Couple and family psychoanalytic psychotherapy: characterization of clients

Tamires Pires1; Daniela Berger2; Guilherme Pacheco Fiorini3; Marina Bento Gastaud4

Resumo

Este estudo objetivou investigar o perfil de casais e famílias que procuram atendimento em psicoterapia psicanalítica, através de pesquisa quantitativa retrospectiva com prontuários de pacientes ambulatoriais de Porto Alegre/RS. Na terapia de casais, a maior parte dos pacientes buscou tratamento por iniciativa própria, alegando dificuldades de comunicaçao. Na psicoterapia familiar, houve predomínio de famílias monoparentais, constituídas por mae + filho(s); a maioria buscou psicoterapia recomendada por psicólogo, sendo o motivo de consulta predominante a busca de orientaçao quanto ao manejo com os filhos. A estrutura familiar inconsciente neurótica foi o diagnóstico mais prevalente e a renda familiar predominante oscilou de 2 a 6 salários mínimos, tanto para casais quanto para famílias. A maior parte dos casais e famílias nao aderiu à psicoterapia. Espera-se que estes dados auxiliem na capacitaçao dos profissionais, no desenvolvimento de novos ambulatórios e na divulgaçao dessa modalidade de atendimento, atraindo a populaçao que ainda se encontra desassistida.

Descritores: Terapia psicanalítica; Terapia familiar; Terapia conjugal; Pacientes ambulatoriais. Relaçoes familiares.

Abstract

This study aimed to investigate the profile of couples and families seeking care in psychoanalytic psychotherapy through retrospective quantitative research with outpatient records in Porto Alegre/Brazil. In couples' therapy, most patients sought treatment on their own initiative, claiming difficulties in communication. In family psychotherapy, there was a predominance of single-parent families consisting of mother + child/children; most sought psychotherapy referred by a psychologist, seeking guidance for dealing with their children. Neurotic unconscious family structure was the diagnosis that obtained the highest index and the most prevalent family income ranged from 2 to 6 Brazilian minimum wages for both couple and family psychotherapy. Most couples and families who sought treatment did not adhere to psychotherapy. It is hoped that these data will help to train more competent professionals, to develop new clinics, and to propagate this type of service, attracting the population that is still unassisted.

Keywords: Psychoanalytic Therapy; Family Therapy; Marital Therapy; Outpatients; Family Relations.

 

 

INTRODUÇAO

O interesse sistemático pela família e pelo casal como objeto de indagaçao psicanalítica e de intervençao terapêutica parece ser relativamente recente na história da psicanálise: final dos anos 1940 e início dos anos 19501. Foi nesse momento que diversos psicanalistas e psiquiatras nos Estados Unidos (Lidz, Jackson, Framo, Ackerman e outros) e na Argentina (Rivière), conscientes da insuficiência dos tratamentos psicanalíticos clássicos com pacientes crianças e com aqueles que padeciam de patologias graves (como esquizofrenia e estados fronteiriços), começaram a sentir a necessidade de incorporar a família no processo terapêutico. Nos casos de patologia grave, a terapia de família é um instrumento muito útil e, às vezes, indispensável para poder ajudar o paciente1.

Na Argentina, o enfoque familiar teve como pioneiro o psicanalista Enrique Pichon Rivière2,3. O autor marcou o pensamento psicanalítico familiar ao introduzir sua teoria do vínculo e dos grupos. Na mesma época, na Inglaterra, Bowlby publicou um artigo no qual descrevia entrevistas familiares como auxiliares das sessoes individuais na Tavistock Clinic4. Ainda na Inglaterra, Wilfred Bion5,6 lançou seus trabalhos clássicos sobre grupos, aprimorando seus conceitos teóricos acerca dos níveis primitivos do funcionamento grupal.

Os conceitos desenvolvidos por Donald Winnicott - preocupaçao materna primária7 e objetos, fenômenos e espaços transicionais8 - contribuem para inserir notavelmente a teoria intersubjetiva do psiquismo na clínica psicanalítica. Ao longo de toda sua obra, Winnicott salientou a importância do ambiente real, diminuindo, portanto, a ênfase quase exclusiva que a teoria psicanalítica vinha dando ao mundo interno/intrapsíquico. Em psicanálise, o conceito de intersubjetividade surgiu da teorizaçao sobre a criaçao conjunta e combinada das subjetividades do par terapêutico, ao contrário da concepçao clássica (intrapsíquica), sendo determinada pelos fenômenos interativos e relacionais do momento9. A imprevisível interaçao entre essas duas mentes (terapeuta/paciente) promove o surgimento de algo que antes nao existia.

Isidoro Berenstein e Janine Puget, psicanalistas argentinos, a partir dos anos 1970, se dedicaram a construir uma teoria que ampliasse e fundamentasse os conceitos clássicos da psicanálise contextualizando de forma teórico-clínica o espaço dos vínculos9. Em 1970, foi realizado o primeiro Congresso de Psicopatologia do Grupo Familiar. Nesse contexto, Berenstein apresentou o modelo de Estrutura Familiar Inconsciente.

Posteriormente, Berenstein publicou o livro Familia y enfermedad mental10, desenvolvendo conceitos a respeito do modelo proposto. Nesse livro, o autor explicitou que as bases teóricas utilizadas para a construçao de seu pensamento estao na psicanálise freudiana e no estruturalismo desenvolvido na antropologia por Lévi-Strauss, que analisa as estruturas sociais, as regras de comunicaçao social inconsciente e a estrutura dos mitos.

Família pode ser definida como "um conjunto de sujeitos onde todos e cada um deles sao diferentes entre si, dentro dessa semelhança que marca o pertencer a um parentesco" (p. 85)11. A família contém três ordens de relaçao definidas na estrutura elementar de parentesco: a relaçao de consanguinidade, a relaçao de aliança e a relaçao de filiaçao12.

Para Berenstein, psicanalisar uma família é entrar em contato com o sistema de eleiçoes objetais, de nomes próprios, de acordos, pactos e normas inconscientes do casal e da família12. É oferecer um contexto para o desenvolvimento do processo terapêutico em que o analista - através de sua atitude analiticamente ativa - possa compreender os significados circulantes e interpretá-los. O ato verbal, que é a interpretaçao, produz novas semantizaçoes que geram outras modalidades de relaçoes familiares, as quais sao transmitidas por meio de códigos verbais e nao verbais.

É relevante mencionar que, neste estudo, os termos psicoterapia psicanalítica de casais e famílias e psicoterapia psicanalítica vincular serao usados como equivalentes, designando a mesma modalidade de psicoterapia derivada da psicanálise. O termo vínculo é aqui entendido como "um conjunto de funcionamentos, interinfluências e determinaçoes psíquicas, gerado por investimentos recíprocos de dois ou mais sujeitos cujos psiquismos sao abertos" (p. 21)13.

Dentre as pesquisas sobre psicoterapia de família e de casal, a maior parte se refere à teoria sistêmica, existindo lacunas na literatura nacional a respeito da psicoterapia psicanalítica familiar e de casal. Na década de 1960, iniciou-se um processo de separaçao entre os enfoques familiares sistêmicos e psicanalíticos; o movimento sistêmico de terapia familiar se expandiu rapidamente e, em alguns países, terapia de família chegou a ser sinônimo de terapia sistêmica. Entretanto, há um interesse crescente da psicanálise vincular e sua técnica interventiva em casais e famílias, expansao esta que nao está sendo acompanhada por estudos empíricos.

Diante desse contexto, o presente estudo teve como objetivo investigar o perfil de casais e famílias que buscam atendimento em terapia psicanalítica em ambulatório de saúde mental de Porto Alegre. A tentativa de pesquisar atendimentos familiares e de casal em ambulatório psicanalítico mostra-se inovadora e de grande relevância frente à escassez de pesquisas nesse campo de atuaçao e teorizaçao.


MÉTODO

Para a realizaçao desta pesquisa foram analisados os dados dos prontuários dos pacientes atendidos em ambulatório de saúde mental da cidade de Porto Alegre.

Tipo de Estudo

A pesquisa foi quantitativa, retrospectiva e documental.

Local

A coleta foi realizada no ambulatório do Contemporâneo: Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade (CIPT), uma clínica-escola de pós-graduaçao em psicanálise de Porto Alegre. O CIPT foi o primeiro ambulatório a oferecer psicoterapia psicanalítica de casais e famílias da regiao, sendo referência nessa modalidade de tratamento até hoje. A instituiçao oferece curso de pós-graduaçao em psicoterapia psicanalítica de casais e famílias para psicólogos e psiquiatras e conta com um ambulatório de atendimento nessas especialidades. No ambulatório do CIPT, os pacientes passam por uma entrevista inicial conduzida por um psicólogo especializado em triagens, antes de serem encaminhados para os atendimentos.

Participantes

A amostra desta pesquisa foi composta por todos os pacientes que procuraram psicoterapia psicanalítica vincular (psicoterapia de casal e/ou família) no CIPT entre maio de 2009 e outubro de 2012 e concordaram que os dados relativos aos seus atendimentos fossem utilizados para fins de ensino e pesquisa, assinando termo de consentimento livre e esclarecido.

Definiçao de Termos

Motivo de consulta: os registros dos motivos de consulta foram realizados pelos profissionais responsáveis pelas triagens com base no relato dos pacientes. Após registrarem textualmente a queixa dos pacientes, os triadores categorizaram os motivos de consulta com base nas seguintes opçoes:

1. Doença psiquiátrica em um dos membros da família

2. Problemas decorrentes de recasamentos

3. Conduta ou discurso agressivo

4. Elaborar/trabalhar a separaçao

5. Avaliar se seguem casados/dúvida quanto à separaçao

6. Conflitos do casal com a família de origem

7. Omissao, abuso, negligência dos pais com os filhos

8. Busca de orientaçoes sobre o manejo com filhos

9. Dificuldades de comunicaçao

Essas categorias foram criadas por juízes especialistas em psicoterapia, por meio de pesquisa prévia realizada com os prontuários dos pacientes vinculares. Os juízes leram os prontuários e agruparam as queixas mediante análise de conteúdo, criando as categorias citadas. A partir dessa classificaçao, as categorias geradas passaram a constar nos prontuários de triagem a partir de maio de 2009.

Tipo de término de atendimento: os registros desta variável foram obtidos por meio da Nota de Alta preenchida pelo terapeuta que atendeu o caso no momento em que o paciente deixou a instituiçao, com base nas categorias14:

1. Nao aderência: o atendimento é interrompido na fase de avaliaçao, ou seja, antes que os objetivos estabelecidos para o tratamento estejam claros para ambos os participantes.

2. Abandono: o tratamento é encerrado antes que os objetivos estabelecidos no contrato tenham sido atingidos, independentemente dos motivos que levaram o paciente ou o terapeuta a interrompê-lo e independentemente da decisao ter sido uni ou bilateral. O período de avaliaçao deve ter sido concluído para o paciente ser considerado abandonante.

3. Alta: o tratamento é encerrado quando os objetivos estabelecidos no contrato foram atingidos.

Diagnóstico: após a triagem, os entrevistadores fornecem uma hipótese diagnóstica para os pacientes com base na proposiçao de Berenstein de Estrutura Familiar Inconsciente (EFI)10. Esse termo foi proposto para caracterizar as distintas estruturas familiares. Embora englobe uma compreensao dinâmica dos vínculos percebida atualmente como ultrapassada (pois faz uma diferenciaçao rígida de papéis masculinos e femininos na formaçao do casal), a classificaçao de Berenstein ainda se mantém como a mais fortemente utilizada nos meios psicanalíticos, sendo por isso adotada na presente investigaçao. Com o objetivo de nomear os possíveis graus de estrutura, Berenstein10,12 utilizou as seguintes categorias para denominar os vínculos: A) Normal, B) Neurótico, C) Perverso e D) Psicótico.

Grau A: A lei que define o novo conjunto conjugal é marcada por significaçoes originais do casal, distintas das famílias de origem. A relaçao predominante é de afetos derivados do amor genital e da ternura, associados a relaçoes de maior complexidade e representadas pela prevalência da palavra. Esse grau da EFI afasta-se da repetiçao, da endogamia e do incesto. Associa-se com fenômenos crescentes de discriminaçao entre os distintos integrantes do casal, possibilitando o surgimento das diferenças geracionais e da diferença entre sexos.

Grau B: O vínculo de casal se constitui com integrantes que ocupam seus respectivos lugares e posiçoes na estrutura vincular. A exogamia é aceita, mas de forma débil, o que os leva a manterem de forma latente uma relaçao dependente com a família de origem. Nesta configuraçao ocorrem certas inibiçoes, especialmente na genitalidade. Dada a intensa ligaçao infantil com seus próprios pais, o casal passa a exercer o papel de "pais", esvaziando o aspecto genital e maduro do vínculo. Os afetos circulantes na relaçao conjugal sao de ciúmes, rivalidade e competiçao.

Grau C: O vínculo de casal se constitui em posiçao de ambiguidade. A lei exogâmica circula, mas somente na aparência ou de forma contraditória. Há outra lei, vinda da família de origem, circulando simultaneamente e clandestinamente, tornando insustentável a abertura a novos modelos. A mentira cumpre a funçao de manter duas ordens sem renunciar a nenhuma. O vínculo de casal só se forma se puder se manter o vínculo com a família de origem. Ocorre diferença geracional, mas nao de sexos nem de vínculos endogâmicos e exogâmicos. Por isso, a regra do tabu do incesto pode ser burlada. Há ameaças permanentes de castraçao ao outro. O modo de funcionamento predominante é o da atuaçao, ao invés da palavra. O pacto que une esse tipo de estrutura é o perverso, pesando mais o segredo e a clandestinidade. O segredo e a mentira estao relacionados com a criaçao de uma zona de intimidade própria a um vínculo. Um segredo compartilhado une ou funde, mas também pode se transformar em uniao desastrosa, quando dele se gera um círculo vicioso de culpa e castigo.

Grau D: O vínculo de casal se caracteriza por uma debilidade extrema e, continuamente, surgem agressividades indiscriminadas entre os integrantes. Neste tipo de estrutura, ambos permanecem ligados às suas famílias de origem. Um nao aceitando o outro como cônjuge, apenas como genitor e como apêndice da relaçao permanente com a família de origem. A presença dos filhos pode nao ser aceita ou reconhecida por um dos genitores. Os afetos circulantes no vínculo matrimonial sao de extrema violência, agressao e hostilidade contrapostas à idealizaçao. A relaçao do casal nao adquire complexidade com o nascimento dos filhos, que sao semantizados como pertencentes à família de origem e os modelos identificatórios permitidos sao os provenientes dela. O vínculo dos filhos com um dos progenitores pode apresentar-se caracterizado por afeto, adesao e idealizaçao, enquanto que, com o outro, por hostilidade, rechaço, desvalorizaçao e exclusao. Ocorre a primazia do endogâmico sobre o exogâmico, com borramento das diferenças geracionais e de sexo.

Embora a teoria da Estrutura Familiar Inconsciente pautar-se originalmente em papéis rígidos e predefinidos dentro do contexto familiar e contemplar uma teorizaçao desatualizada de família, postula-se atualmente que os elementos básicos dessa teoria sao passíveis de ser aplicáveis em famílias monoparentais e casais homossexuais. Mantém-se o eixo da teorizaçao, atualizando-a para as novas configuraçoes familiares.

Aspectos éticos

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, vinculado à Comissao Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Todos os pacientes incluídos na amostra assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.

Análise dos dados

As variáveis de interesse foram analisadas em termos de frequência e porcentagem, uma vez que se trata de uma pesquisa de levantamento, por meio do programa estatístico SPSS (Statistical Program for Social Sciences), versao 18.0.


RESULTADOS

No período de 39 meses (maio de 2009 a outubro de 2012), 133 casais/famílias buscaram ou foram encaminhados para psicoterapia psicanalítica vincular no ambulatório. Destes, 126 aceitaram participar da pesquisa, assinando termo de consentimento.

A tabela 1 ilustra as características dos casais que buscaram psicoterapia; 55 casais buscaram psicoterapia psicanalítica, dos quais 2 moravam com ambos os pais e 3 com a mae; 20 casais moravam com filhos crianças e 7 moravam com filhos adultos no momento da triagem. Os demais moravam sozinhos.




A tabela 2 compreende os dados relativos ao final do atendimento das psicoterapias de casal na amostra. Dos 55 casais pesquisados, 47 já haviam terminado seus atendimentos no momento da análise dos dados. Os quatro casais que tiveram alta ficaram em tratamento por 5, 7, 9 e 16 meses, todos alegando ter atingido os objetivos propostos.




A tabela 3 ilustra as características das 71 famílias que buscaram psicoterapia.




A tabela 4 compreende os dados relativos ao final do atendimento das psicoterapias familiares na presente amostra. Das 71 famílias pesquisadas, 63 já haviam terminado seus atendimentos no momento da análise dos dados. As cinco famílias que tiveram alta ficaram em tratamento por 2, 3, 3, 4 e 5 meses, atingindo os objetivos propostos para o tratamento.




DISCUSSAO

A maioria dos casais busca tratamento por iniciativa própria, possivelmente reconhecendo dificuldades e estando ciente da possibilidade de resolvê-las. O motivo de consulta predominante diz respeito às dificuldades de comunicaçao entre os casais. Severo15 descreve essa dificuldade quando, frequentemente, um integrante entende algo diferente do que foi dito pelo outro, provocando um mal-estar e até mesmo uma fúria que desencadeia a discussao pela falta de tolerância com a diferença de significaçao. Do ponto de vista técnico, a forma de interpretaçao clássica (individual) nao favorece e, pelo contrário, pode exacerbar a destrutividade e a incompreensao, podendo um compreender o oposto do que o outro desejaria comunicar15. Analisar uma situaçao vincular aparentemente repetitiva e sem saída permite a compreensao das causas que a determinaram, possibilitando uma transformaçao vincular.

Percebe-se maior prevalência de casais heterossexuais na procura por tratamentos vinculares. Embora ainda haja pouca procura por casais homossexuais, a literatura16 aponta que esta é uma demanda crescente para o tratamento e os profissionais precisam se capacitar para atendê-la. A pouca procura de casais homossexuais pode estar associada à ideia de que o terapeuta psicanalítico classicamente considera a homossexualidade como associada a alguma psicopatologia. Em 1935, Freud escreveu em uma correspondência à mae de uma homossexual que nada existe na homossexualidade de que se deva ter vergonha, nao é nem um vício nem um aviltamento, e a psicanálise seria incapaz de qualificá-la como doença17. Os discípulos de Freud se mostraram, por sua vez, de uma intolerância extrema para com a homossexualidade. Foi preciso esperar os anos 1970 e os grandes movimentos de liberaçao sexual para que a homossexualidade passasse a ser vista nao como uma doença, mas como prática sexual legítima, marcada, aliás, pela diversidade.

Quanto ao tipo de atendimento familiar, predomina a procura de famílias monoparentais, constituídas por Mae + Filho(s). Percebe-se que a figura materna geralmente encontra-se envolvida nos tratamentos familiares. Ao analisar historicamente a evoluçao da família moderna, Roudinesco16 aponta que, em 1970, houve a supressao da expressao "chefe de família", surgindo os termos "monoparentalidade" e "coparentalidade", dando margem à denominaçao de novas configuraçoes familiares.

Com relaçao à fonte de encaminhamento, a maioria das famílias buscou psicoterapia devido à orientaçao profissional de um psicólogo. O motivo de consulta predominante diz respeito à busca de orientaçao quanto ao manejo com os filhos. Esses dados indicam, possivelmente, que integrantes atendidos em psicoterapia individual sao encaminhados para tratamento de família quando se percebe que o enquadre individual nao abarca determinadas problemáticas, já que o ambiente impoe sua presença. Cabe aqui citar como exemplos pacientes com dependência química, situaçoes de abuso, atuaçoes, desmentidas, quadros psicóticos (dentre outros), os quais se beneficiam de intervençoes individuais combinadas à psicoterapia vincular.

Piva18 acrescenta que, gradativamente, foi se dando um espaço maior para os pais no atendimento de crianças e nos atendimentos de pacientes gravemente perturbados, e disso decorreu uma ampliaçao do campo teórico da psicanálise com a teorizaçao sobre o vínculo com o outro, e da psicanálise do casal e da família. O psicólogo individual também realiza o encaminhamento vincular quando percebe o potencial de saúde existente no vínculo familiar e encoraja seus pacientes a investir nesse potencial.

Quanto ao diagnóstico dos casais e famílias, baseado na Estrutura Familiar Inconsciente, o Grau B - Neurótico obteve o maior índice. Esse diagnóstico nos leva a inferir que os vínculos mais prejudicados ainda nao buscam atendimento na mesma medida. Dessa forma, algumas medidas devem ser pensadas para atrair os pacientes mais graves para esse tipo de tratamento. É notável, também, que o Grau C - Perverso foi bastante diagnosticado nesta amostra. O paciente perverso raramente busca atendimento individual. Mesmo que individualmente os integrantes da família nao sejam perversos, o vínculo perverso acaba buscando refúgio no tratamento vincular.

A renda familiar mais prevalente oscilou de 2 a 6 salários mínimos, tanto para psicoterapia de casais quanto para famílias. Esse dado revela o baixo poder aquisitivo dessas famílias e o esforço desempenhado para a realizaçao do tratamento vincular. Pode-se pensar, nessas situaçoes, que ocorre a valorizaçao do vínculo familiar, buscando recursos para investir no potencial de saúde e na construçao de novas relaçoes intersubjetivas. Nesse sentido, os profissionais precisam se adaptar às necessidades financeiras dos pacientes por meio de flexibilizaçoes nos manejos técnicos, como tratamentos mais breves, ajuda focal, menor frequência semanal etc.

Muitos casais e famílias que buscam tratamento nao permanecem em tratamento. As taxas de abandono também sao altas na terapia individual19, evidenciando um problema recorrente nos tratamentos psicoterápicos. As altas taxas de abandono de psicoterapia em tratamentos de casal e família nos levam a questionar o lugar em que o terapeuta é colocado nos enquadres vinculares: pode ser visto como aquele que consegue fazer contençao dos sentimentos dos integrantes e aquele que organiza o vínculo (com maior possibilidade de aderência ao tratamento) ou como inimigo, aliado do outro integrante do vínculo e contra o próprio sujeito, como intruso no vínculo ou como alguém que pode deteriorar a ligaçao dos integrantes (com maior possibilidade de abandono de tratamento). Por isso, Berenstein e Puget20 reforçam a importância das primeiras entrevistas, que consistem no marco espaço-temporal possível para que o terapeuta passe de um estado inicial de "lugar nenhum", de "nao eu" e "nao tu", à constituiçao gradativa de um "terceiro". Isso define a passagem das primeiras entrevistas ao tratamento. Quando as primeiras entrevistas nao se transformam em tratamento, pode-se pensar em algumas questoes: a possibilidade de modificaçao é percebida como ameaça intolerável à manutençao do vínculo? Foi oferecido o marco adequado para lidar diferentemente com a situaçao? Será que o mero fato de vir à entrevista e viabilizar um projeto terapêutico é suficiente para iniciar um tratamento? Explorar essas questoes em cada caso é de fundamental relevância técnica para os terapeutas vinculares20.

Apesar dos altos índices de abandono, constatou-se que uma porcentagem considerável de casais e famílias permaneceram em tratamento por mais de dois meses. No entanto, nao é possível formular regras generalizáveis que de algum modo pautem os finais, sempre singulares e diferenciados, dos tratamentos vinculares21. Assim, Rojas21 propoe pensar o final de um tratamento familiar em conexao com a possibilidade de fluxo auto-organizador na família e em seus integrantes, habilitando a autonomia de cada sujeito, compreendida no sentido da interdependência.

O estudo nao verificou possíveis associaçoes entre variáveis, objetivando apenas descrever a clientela. Estudos futuros que demonstrem como os fatores se relacionam podem auxiliar na compreensao de tratamentos vinculares. Os dados coletados sao secundários, através dos prontuários. Dessa forma, a documentaçao dos dados estava sujeita à interpretaçao de quem os preencheu, sendo que em alguns casos a informaçao estava em branco. Ressalta-se a importância dos registros nos settings privados e institucionais, os quais possibilitam nao apenas a pesquisa, como também a continuidade e transdisciplinaridade dos atendimentos. Apesar das limitaçoes, a amostra pequena denuncia a novidade desse tipo de atendimento na modalidade psicanalítica e a resistência dos pacientes e terapeutas em recorrer a ela.


CONCLUSAO

Espera-se que este estudo descritivo seja útil para: a) ajudar na capacitaçao dos profissionais para este tipo de atendimento vincular, b) adequar os cursos de formaçao à demanda real e atual de pacientes e c) estabelecer medidas para ampliar o acesso a tratamentos vinculares.

Faz-se necessária a criaçao de novos ambulatórios, bem como o estabelecimento de técnicas de divulgaçao desta modalidade de tratamento para a populaçao em geral, objetivando atrair a populaçao menos prevalente, que ainda se encontra desassistida. Por fim, sugere-se que as medidas de saúde pública englobem assistência psicanalítica a casais e famílias, nao apenas a pacientes individuais, tendo em vista seu potencial benefício de ajudar mais pacientes simultaneamente com os mesmos recursos (financeiros, pessoais, temporais e espaciais).


REFERENCIAS

1. Losso R. Psicoanálisis de la familia: recorridos teórico-clínicos. Buenos Aires: Distribuidora Lumen; 2001.

2. Pichon-Rivière E. Teoria do vínculo. Sao Paulo: Martins Fontes; 1998.

3. Pichon-Rivière E. O processo grupal. Sao Paulo: Martins Fontes; 2005.

4. Bowlby J. Maternal care and mental health. New York: Schocken; 1951.

5. Bion WR. Experiences in groups. Human Relations. 1948;1:314-20.

6. Bion WR, Rickman J. Intra-group tensions in therapy: their study as a task of the group. Lancet. 1943,2:678-81.

7. Winnicott DW. Psiconeuroses oculares na infância (1944). In: Winnicott DW. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago; 2000. p. 149-155.

8. Winnicott DW. Objetos e fenômenos transicionais (1951). In: Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago; 1975. p. 13-44.

9. Piva A, Ponsi A, Saldanha C, Gomes E, Martini J, Dariano J, Ferraro K, Da Silva ML, Spizirri R. Origens do conceito de intersubjetividade: uma trajetória entre a filosofia e a psicanálise contemporânea. Contemporânea: Psicanálise e Transdisciplinaridade. 2010;9:71-91.

10. Berenstein I. Familia y enfermedad mental. Buenos Aires: Paidós; 1976.

11. Berenstein I. Del ser al hacer: curso sobre vincularidad. Buenos Aires: Paidós; 2007.

12. Berenstein I. Psicoanalizar una familia. Buenos Aires: Paidós; 1996.

13. Spivacow M. Clínica psicoanalítica com parejas: entre la teoria y la intervención. Buenos Aires: Lugar; 2008.

14. Gastaud M, Nunes ML. Abandono de tratamento na psicoterapia psicanalítica: em busca de definiçao. Jornal Brasileiro de Psiquiatria. 2010;59(3):247-254.

15. Severo AF. Encontros & desencontros: a complexidade da vida a dois. Sao Paulo: Casa do Psicólogo; 2010.

16. Roudinesco E. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2003.

17. Freud EL. Sigmund Freud: correspondência de amor e outras cartas 1873-1939. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 1982.

18. Piva A. Transmissao transgeracional e a clínica vincular. Sao Paulo: Casa do Psicólogo; 2006.

19. Hauck S, Kruel L, Sordi A, Sbardellotto G, Cervieri A, Moschetti L, Schestatsky S, Ceitlin LH. Fatores associados a abandono precoce do tratamento em psicoterapia de orientaçao analítica. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. 2007;29(3):265-273.

20. Berenstein I, Puget J. Lo vincular: clínica y técnica psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós; 2007.

21. Rojas MC. Dispositivo analítico familiar: finales de análisis. Revista de Psicoanálisis de las Configuraciones Vinculares. 2004;2:195-213.










1. Faculdade de medicina (Famed). Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil
2. Psicóloga, especialista em psicoterapia psicanalítica de adultos e psicanálise das configuraçoes vinculares (Contemporâneo - Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade)
3. Faculdade de medicina (Famed). Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil
4. Psicóloga, especialista em psicoterapia psicanalítica de crianças e adolescentes, mestre em Psicologia Clínica (PUCRS), doutora em Ciências Médicas: Psiquiatria (UFRGS). (Pós-doutoranda em Psicologia Clínica (Unisinos), professora e ex-coordenadora do Departamento de Pesquisa do Contemporâneo - Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade)

Instituiçao: Contemporâneo: Instituto de Psicanálise e Transdisciplinaridade.

Correspondência
Daniela Berger
Av. Plínio Brasil Milano, 143, sala 604, bairro Auxiliadora
90520-002 Porto Alegre, RS, Brasil
daniela-berger@hotmail.com

Submetido em: 05/05/2015
Aceito em: 12/06/2015

 

artigo anterior voltar ao topo próximo artigo
     
artigo anterior voltar ao topo próximo artigo