Rev. bras. psicoter. 2016; 18(1):23-39
Santeiro TV, Rossato L, Rocha GMA. Psicoterapeutas e processos psicoterapêuticos no cinema: diálogos psicanalíticos sobre formaçao profissional. Rev. bras. psicoter. 2016;18(1):23-39
Artigos Originais
Psicoterapeutas e processos psicoterapêuticos no cinema: diálogos psicanalíticos sobre formaçao profissional
Psychotherapists and psychotherapeutic processes in Cinema: psychoanalytical dialogues about professional training
Tales Vilela Santeiro1; Lucas Rossato2; Glaucia Mitsuko Ataka da Rocha3
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
O cinematógrafo surgiu como uma máquina que conseguia dar vida e forma ao que antes eram imagens inanimadas. Inicialmente gerou grande espanto nos espectadores, que, ao assistirem ao pequeno filme exposto pelos irmaos Lumière, em um café em Paris, acreditaram que a locomotiva projetada fosse adentrar o estabelecimento e cair sobre eles1. O que àquela época gerou espanto e foi motivo de incompreensao, nos dias atuais permanece atraindo aglomerados de pessoas às salas de cinema, que procuram interagir com essa forma de linguagem artística, adotando-a nao somente como um recurso de lazer, mas também como um meio que propicia reflexoes e pode ser convertido em peça didática, em processos de formaçao de diversos profissionais, inclusive de psicoterapeutas2,3.
No Brasil, a Psicologia Clínica se destaca como sendo uma das grandes áreas de atuaçao dos psicólogos4. No âmbito das atividades clínicas, as práticas psicoterapêuticas sao uma das possibilidades desempenhadas por esses profissionais e talvez seja a mais conhecida delas, ao ponto de, nas experiências profissionais dos autores, ser comum verificar em diálogos com estudantes de Psicologia, a expectativa de um dia serem "clínicos". Assinala-se que a Psicologia Clínica engloba a psicoterapia como uma das suas áreas mais importantes, porém nao se limita a ela, sendo o psicodiagnóstico, as orientaçoes clínicas, o trabalho com grupos, entre outros, formas correlatas de atuaçao5,6. Também cabe frisar que, no país, atividades de psicoterapia sao desenvolvidas por médicos, em especial por psiquiatras.
As psicoterapias têm suas raízes históricas na cura pela fé e nas religioes, na medicina antiga e no hipnotismo, mas começou a ser utilizada para tratamento de doenças nervosas e mentais no final do século XIX, porém limitada ao trabalho de psiquiatras7,8,9. No século XX e nos dias atuais, além dos psicólogos e médicos, enfermeiros e assistentes sociais a têm praticado. Historicamente, o modelo de atuaçao em psicoterapia caracteriza-se, assim, como multiprofissional10. No Brasil, na América Latina e em diversos países da Europa há tendências e movimentos em direçao à regulaçao das psicoterapias como um campo que extravasa a Psicologia11.
Do seu surgimento até os dias atuais, a psicoterapia apresentou-se como uma alternativa para prestar cuidados à saúde mental das pessoas. Ela se caracteriza por ser um método de tratamento no qual o profissional psicoterapeuta, utilizando de técnicas específicas, como a comunicaçao verbal e a relaçao terapêutica, realiza intervençoes a fim de auxiliar o paciente a superar dificuldades de ordem emocional, cognitiva e comportamental7.
O surgimento das psicoterapias enquanto prática de atuaçao profissional consolidada em conhecimentos científicos9 despertou o interesse da indústria cinematográfica, logo as aproximaçoes entre estas e o cinema foram inevitáveis. Assim, a imagem dos psicoterapeutas passou a ser retratada em obras fílmicas, bem como leituras dessas produçoes passaram a integrar debates promovidos por clínicos e profissionais que lidam com cuidados à saúde mental das pessoas, nas mais diversas realidades e orientaçoes teóricas12,14,15,16,17,18. A presença do psicoterapeuta enquanto agente mediador de conflitos passou a desencadear as mais variadas interpretaçoes sobre a prática profissional, o que se alternava conforme o conhecimento que as pessoas e os produtores de filmes tinham e têm sobre ela19. Assim, a psicoterapia tem sido uma das principais formas de exposiçao dos profissionais e dos processos de cuidados à saúde mental no cinema19,17.
Os produtores de filmes parecem apostar nesse tipo de obra como forma de alimentar e sanar curiosidades tidas pelo público, estudioso de psicoterapia ou nao, sobre questoes envolvendo o funcionamento psicológico humano, no que ele tem de saudável e de adoecido, e sobre tratamento e superaçao de adoecimentos emocionais. Ao fazê-lo, também visam ao maior número de vendas possível, por fatores ligados às questoes econômicas envolvidas na produçao cinematográfica, que, como ocorre em quaisquer outras áreas da indústria, carece de retorno financeiro. Tendo em consideraçao esses aspectos, é importante ponderar que, em filmes comerciais/ficcionais, os processos psicoterapêuticos e seus profissionais sofrem maior probabilidade de serem apresentados de forma equivocada pela indústria cinematográfica, de modo que sejam distorcidos e até ridicularizados.
Sendo assim, compreende-se que os meios de comunicaçao de massa, como é o caso do cinema, sejam considerados e observados como ferramentas de difusao de conteúdos importantes ao processo de ensino e formaçao de psicoterapeutas. Neste texto, embora seja sabido que a psicoterapia nao seja prática profissional exclusiva do psicólogo, o olhar é limitado pela própria formaçao dos autores. Além disso, como no Brasil as psicoterapias ainda permanecem praticadas e reconhecidas pelo grande público como papel desempenhado por psicólogos, mesmo que em filmes estrangeiros os psicoterapeutas sejam identificados como vinculados a outras profissoes (usualmente medicina e assistência social), as discussoes pretendidas serao direcionadas especialmente ao público-leitor que segue a orientaçao psicanalítica em seus estudos e atuaçao.
Em relaçao à orientaçao teórica psicanalítica, os aspectos relativos às fronteiras profissionais existentes no âmbito da atuaçao do psicoterapeuta sao fundamentais de serem considerados no texto. Elas podem apenas ser transpostas (cruzamento), e/ou, ainda, podem ser violadas e essa concepçao, por sua vez, alinha-se à compreensao que se tem sobre setting psicoterapêutico.
Os cruzamentos e as violaçoes de fronteiras sao fenômenos que envolvem as figuras do psicoterapeuta e do paciente, contudo a atençao e o cuidado pertinentes sao de responsabilidade do profissional20. Eles podem influenciar de maneira positiva e negativa o processo psicoterapêutico e as relaçoes profissionais entre os envolvidos21,22, sendo que diferenças qualitativas distinguem uma ocorrência da outra, dada a matériaprima localizar-se em contexto específico e único, o setting23.
Cruzamentos de fronteira referem-se às rupturas benignas ao processo psicoterapêutico, ocorrem de forma isolada e sao discutíveis pelo par terapeuta-paciente; pela via do diálogo a ocorrência deles pode levar a compreensoes importantes acerca do psicodinamismo da relaçao psicoterapêutica e de seus atores. Atrasos esporádicos, em referência ao tempo das sessoes e aos pagamentos de honorários, autorrevelaçoes esporádicas e contextualizadas por parte do psicoterapeuta, seriam alguns exemplos de cruzamentos de fronteira20.
Em sentido complementar, violaçoes de fronteira envolvem transgressoes que sao prejudiciais ao processo de psicoterapia e em especial ao paciente, podendo ser sexuais ou nao; sao repetitivas e o terapeuta costuma desencorajar o diálogo sobre elas. Entre as principais formas de violaçao de fronteiras encontram-se as violaçoes sexuais, de tempo, de local de realizaçao dos atendimentos, o recebimento de presentes, ou o nao recebimento de honorários referentes às sessoes oferecidas20.
A neutralidade, a abstinência e o anonimato sao tidos como importantes fatores a serem considerados no exercício profissional23. A neutralidade designa condutas do terapeuta que buscam assegurar um comportamento amistoso, ético, tolerante e benevolente, capaz de suportar frustraçoes que venham a surgir durante sua atuaçao profissional, procurando resguardar o ambiente e a figura do terapeuta (setting). Esse posicionamento nao requer que o profissional seja distante e frio em relaçao ao que lhe é apresentado pelo paciente, contudo pode ser considerado como um facilitador para que o psicoterapeuta consiga estabelecer certo distanciamento em relaçao a açoes que possam vir a interferir de maneira negativa na sua relaçao com o paciente (cruzamento e/ou cruzamentos de fronteiras profissionais).
O anonimato, por sua vez, contribui para a manutençao da neutralidade no setting terapêutico23. Embora em experiências cotidianas o terapeuta demonstre muito de seu modo de ser nas roupas que veste, no modo como decora seu ambiente de trabalho, na maneira de falar etc., outros fatores que sao possíveis de serem controlados devem ser considerados durante o atendimento ao paciente, como manter sigilo sobre problemas e vida pessoal, responder as curiosidades despertadas pelo paciente, entre outros. Por fim, a abstinência, também se referindo a um aspecto que constitui o setting, refere-se à postura do profissional, que implica evitar que o paciente encontre satisfaçoes substitutivas para seus sintomas, porque clínico procura manter-se anônimo e neutro23.
Desse modo, o objetivo geral deste trabalho foi realizar pesquisa documental em obras cinematográficas, procurando observar as formas de representaçao de psicoterapeutas e de processos de psicoterapia, considerando, ainda, questoes atinentes às fronteiras profissionais.
MÉTODO
A seleçao de amostra, os critérios de inclusao de filmes e os procedimentos adotados para analisá-los seguiram os seguintes passos:
Inicialmente realizou-se busca de títulos de filmes em bases de dados on-line especializadas, como Adoro Cinema, Cine Pop, Netflix, e através da ferramenta de busca on-line Google, cruzando os verbetes terapeuta, psicoterapeuta, psicologia, psicologia clínica e psicoterapia com filme e cinema; nesse momento realizou-se a leitura das sinopses disponíveis, procurando evidências de representaçoes de psicoterapeutas e de processos de psicoterapia.
Alguns critérios foram adotados para inclusao de títulos: películas produzidas e lançadas entre 2001 e 2014, com legendagem em português, que contivessem cenas do profissional psicoterapeuta desempenhando atividades de psicoterapia e/ou do próprio processo psicoterapêutico. Na busca inicial foram encontrados 47 títulos.
Assistência a títulos encontrados na busca inicial. Dos 47 filmes levantados inicialmente, nove nao foram acessíveis, como, por exemplo, Amor e traiçao28, e 11 foram excluídos da amostra por nao apresentarem psicoterapeutas ou porque nao havia encenaçao de processos psicoterapêuticos, como é o caso de O discurso do rei29. Sendo assim, a amostra final resultou em 27 obras, sendo que esse refinamento foi consensualmente obtido pelos autores, o que nao implica dizer que o levantamento de títulos foi exaustivo e que contempla "todos" os filmes que possam ter retratado psicoterapeutas, no período focalizado.
Após os títulos terem sido buscados conforme os critérios enunciados, estudos-piloto foram realizados. Nesse momento, seis filmes foram selecionados aleatoriamente e assistidos em pormenores31,36,39,41,42,45, visando explorar suas características gerais e eventuais semelhanças entre eles, para, assim, conceber a ficha de registros de informaçoes, conforme será descrito no próximo item.
Desenvolvimento de uma ficha para registros das informaçoes observadas, a qual serviria de base para a coleta de dados dos demais títulos. Nela foram registrados os seguintes aspectos: nacionalidade das produçoes (nacionais ou estrangeiras); encenaçao do processo terapêutico (se era central ou secundária no argumento fílmico); como o profissional era referido (terapeuta, analista, psicólogo/psiquiatra); o local onde as sessoes eram desenvolvidas, o contexto social, econômico e de trabalho (ambientes privados ou institucionais; padrao econômico observado através da estrutura arquitetônica e do mobiliário); condutas profissionais aproximadas, ou nao, de práticas clínicas, tal como constante de livros-texto de orientaçao psicanalítica7,20,25,26,27. Com "condutas profissionais aproximadas de práticas clínicas", cabe dizer que nos livros-texto citados seus respectivos autores debatem e elencam posturas profissionais que sao desejáveis de serem desenvolvidas por profissionais situados em processos de formaçao psicanaliticamente orientados. Dentre eles pode-se citar a necessidade de o psicoterapeuta ancorar e desenvolver seu processo formativo - de modo continuado - no tripé composto por estudos teóricos, supervisao de casos clínicos e integraçao do profissional a práticas de psicoterapia/análise pessoal. De modo complementar a esses requisitos formativos, questoes éticas e aquelas tocantes à técnica (transferência, contratransferência, setting, focalizaçao, estratégias de comunicaçao e de intervençao verbais e nao verbais etc.) também sao acentuadas nesse trabalho a ser desenvolvido na relaçao com pacientes.
A partir dos procedimentos adotados acima, foram realizados levantamentos de frequências simples (brutas e relativas) acerca das encenaçoes observadas (análise quantitativa). Em seguida, com base nesse registro de base empírica, os pesquisadores realizavam discussoes sobre eventuais implicaçoes das representaçoes veiculadas para a formaçao de psicoterapeutas e para a prática das psicoterapias, relacionando as frequências observadas com a literatura especializada, com ênfase na de orientaçao analítica (análise qualitativa)7,20,25,26,27.
Do ponto de vista da análise qualitativa, quando a observaçao e o registro de dados fílmicos implicaram julgamentos subjetivos, como situaçoes nas quais havia dúvida sobre se o profissional violou fronteiras profissionais20, havia debate entre os autores, até consensos serem obtidos. Quando a observaçao e o registro de dados necessitavam de julgamento objetivo, como verificar o local onde as sessoes de psicoterapia eram desenvolvidas, os dois primeiros autores levantavam as frequências.
artigo anterior | voltar ao topo | próximo artigo |
Rua Ramiro Barcelos, 2350 - Sala 2218 - Porto Alegre / RS | Telefones (51) 3330.5655 | (51) 3359.8416 | (51) 3388.8165-fone/fax