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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2015; 17(3):63-79



Artigo de Revisao

A dependência química na Psicoterapia Analítica Funcional: um diálogo contingente

Substance Abuse in Functional Analytic Psychotherapy: a contingent dialogue

Marcelo Morandi

Resumo

A dependência química representa hoje um dos maiores desafios enfrentados por profissionais de saúde de todo o mundo. A busca por dados e evidências científicas que garantam respostas cada vez mais eficazes ao tratamento continua em constante processo de construçao. O presente trabalho, através de uma revisao da literatura, tem por objetivo apresentar o ponto de encontro entre as teorias comportamentais e o fenômeno da dependência química, postulando a interaçao lógica da Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) como possibilidade de ajuda a usuários de álcool e outras drogas. Os Comportamentos Clinicamente Relevantes (CRB) e a relaçao terapêutica sao colocados enquanto alternativas de operacionalizaçao do responder contingente do terapeuta aos comportamentos aditivos. Apesar dos avanços no refinamento da descriçao da FAP e da validaçao empírica de seu mecanismo de mudança clínica, a tarefa de especificar o responder contingente do terapeuta ao comportamento aditivo ainda nao foi amplamente estudada, porém sua influência na clínica da dependência química merece atençao.

Descritores: Terapia comportamental; Comportamento aditivo; Transtornos relacionados ao uso de substâncias.

Abstract

Nowadays substance abuse is one of the biggest challenges faced by health professionals worldwide. The search for data and scientific evidence that would ensure increasingly effective responses to treatment remains in a constant building process. This paper, through a literature review, aims to present the meeting point between behavioral theories and the phenomenon of addiction, postulating the logical interaction of Functional Analytic Psychotherapy (FAP) as a possibility to assist users of alcohol and other drugs. Clinically Relevant Behaviors (CRB) and therapeutic relationship are placed as operationalization alternatives to therapist contingent responding regarding addictive behaviors. Despite improvements in refining the description of FAP and the empirical validation of its clinical mechanisms of change, the task of specifying the therapist contingent responding has not been widely studied. However, its influence on clinical drug addiction deserves attention.

Keywords: Behavior therapy; Behavior; addictive; Substance-related disorders.

 

 

INTRODUÇAO

Terapia Comportamental: conceitos e evoluçao


O objetivo de uma ciência é buscar relaçoes constantes entre eventos, e foi exatamente isso que os primeiros cientistas que estudaram o comportamento fizeram: inicialmente eles buscaram identificar relaçoes constantes entre os estímulos e as respostas por eles eliciadas que ocorressem da mesma maneira e nas mais diversas espécies. Esse tipo de manifestaçao comportamental, chamado à época de comportamentos reflexos, é inato, característico das espécies, e desenvolvido ao longo de uma história filogenética1. Contudo, Ivan Petrovich Pavlov, ao estudar tais reflexos biologicamente estabelecidos, observou que seus sujeitos experimentais (caes) eram capazes de aprender novos reflexos. Pavlov, através de seu clássico experimento, colocou um cao em um pequeno quarto vazio, tocando uma campainha ao mesmo tempo em que mostrava a comida ao animal. A saliva surgia imediatamente. Repetiu esse processo várias vezes. Notou que a saliva aparecia quando a campainha era tocada sem que a comida fosse apresentada ao animal. A isso chamou de comportamento condicionado, ou aprendido2. Millenson3 esclarece, entao, que se organismos podem aprender novos reflexos, podem também aprender a sentir emoçoes (respostas emocionais) que nao estao presentes em seu repertório comportamental quando nascem. Para exemplificar essa condiçao, o autor se orienta através de outro experimento clássico sobre condicionamento pavloviano e emoçoes, feito por John Watson, em 1920, o qual ficou conhecido como o caso do pequeno Albert e o rato. Basicamente, o bebê Albert, de 11 meses, foi condicionado a ter medo de um rato, que ele nao temia antes de ser submetido ao condicionamento. Para estabelecer a relaçao de medo, Watson provocou um enorme barulho atrás da cabeça de Albert sempre que o rato lhe era mostrado. Em pouco tempo a mera visualizaçao do rato produzia sinais de medo na criança.

A despeito da importante relevância do comportamento respondente (reflexo) para análise, compreensao e modificaçao (intervençao) do comportamento, outros pesquisadores entenderam que ele sozinho nao conseguia abarcar toda a complexidade do comportamento humano1. Respondendo a isso, em anos mais recentes, Burrhus Frederic Skinner exerceu influência comparável e defendeu algumas das mesmas reformas. Sua posiçao foi muitas vezes descrita como uma teoria de estímulo-resposta, mas ele repudiava esse rótulo por duas razoes. Primeiramente, sua abordagem depende da conexao entre uma resposta e um evento reforçador subsequente, nao apenas entre um estímulo e uma resposta subsequente. A marca registrada do condicionamento operante de Skinner, termo cunhado por ele mesmo, é que o controle reside nas consequências do comportamento. Classifica-se como operante, pois produz consequências (modificaçoes no ambiente), e é afetado por elas. Em segundo lugar, Skinner se distingue por um desagrado pelas teorias que tentam justificar o comportamento através de constructos explanatórios, pulsionais, e de variáveis hipotetizadas. Ele nao propoe que estados internos nao existem, mas sim que nao devem servir como instrumento de trabalho em uma análise científica do comportamento4. Sobre esse ponto, Baum5 esclarece que a explicaçao científica consiste apenas na descriçao de eventos em termos familiares. Ela nao tem nada a ver com a revelaçao de uma realidade escondida além de nossa experiência. Mente, vontade, ego e outros conceitos sao muitas vezes chamados de ficçoes explanatórias, nao porque expliquem algo, mas porque supostamente explicam. Indo mais além, o autor diz que eventos privados (assim nomeados pois só uma pessoa pode relatá-los, mesmo que outras estejam presentes), como pensamentos, emoçoes, sentimentos e sensaçoes, por mais que afetem o comportamento, ainda assim nunca causam o comportamento no sentido de originá-lo, apesar de assumirem lugar importante na análise que Skinner faz de certos tipos de comportamento.

Em sua obra Sobre o behaviorismo6, Skinner, entre outros temas, transcorre acerca de críticas comuns e equivocadas feitas ao behaviorismo radical. Segundo o autor, o processo histórico da terapia comportamental, sua ampla possibilidade de aplicaçoes, os diversos modelos de behaviorismo desde Watson e, principalmente, um grande desconhecimento sobre o behaviorismo radical favorecem o surgimento de diversas opinioes enganosas sobre o que vem a ser a Análise Clínica do Comportamento. Dentre algumas concepçoes errôneas, aparece a ideia de que é uma terapia superficial, nao trabalha o indivíduo como um todo, foca apenas um problema específico, tem alcance temporário, nao leva em consideraçao a história de vida do cliente, trata o indivíduo enquanto ser passivo num mundo de causas e efeitos, etc. De-Farias7 aponta o fato de que, para alguns autores, as expressoes "Terapia Comportamental" e "Modificaçao do Comportamento" (aplicaçao de técnicas específicas para problemas específicos) sao sinônimas, o que prejudica o entendimento de que a prática atual de terapeutas comportamentais está muito além do que uma mera aplicaçao de técnicas.

Com tudo isso, Castanheira8 nos orienta que a psicoterapia comportamental deve partir da necessidade das pessoas de melhorar suas vidas, de lidar de forma bem-sucedida com o controle coercitivo e de libertar-se daquilo que mais lhes incomoda ou prejudica. Segundo Skinner9, os psicoterapeutas têm, também, como objetivos, levar o cliente à auto-observaçao e ao autoconhecimento, oferecendo uma melhor qualidade de vida e uma independência pessoal maior para a resoluçao de problemas futuros, ampliando seu repertório de possibilidades.


DEPENDENCIA QUIMICA: CONCEITUAÇAO E CRITÉRIOS DIAGNOSTICOS ATUAIS

De acordo com a definiçao da 10ª ediçao da Classificaçao Internacional de Doenças (CID-10), da Organizaçao Mundial de Saúde (OMS), a dependência química é marcada por uma condiçao caracterizada pelo comportamento de consumo descontrolado de uma ou mais substâncias psicoativas com repercussoes negativas em uma ou mais áreas da vida do indivíduo, causando algum tipo de alteraçao em seu funcionamento global. Ainda de acordo com a OMS, a dependência química consiste em uma doença considerada crônica, recidivante e incurável, atribuída a um conjunto de fenômenos comportamentais, cognitivos e fisiológicos que se desenvolvem após o uso repetido de determinada substância, mas que pode ser tratada de forma efetiva, melhorando a qualidade de vida de seus portadores10. Os prejuízos neurológicos, cognitivos e relacionais causados pelas substâncias sao, em sua maioria, irreversíveis, progressivos e passam despercebidos pelo indivíduo. Os danos físicos e sociais, quando percebidos, impulsionam, ainda mais, o dependente químico a uma insaciável busca pelos efeitos da substância11. É fundamental lembrar que a droga é apenas um dos fatores da tríade que leva à dependência. Os outros dois sao o indivíduo e o ambiente atual e histórico no qual droga e indivíduo se encontram12.

Fonseca e Lemos13 explicam que todas as drogas capazes de causar euforia ou alívio do sofrimento têm uma característica em comum: atuam de maneira diferenciada no circuito do prazer ou de recompensa, o que resulta na liberaçao de dopamina, e o início da açao tem relaçao direta com a via pela qual a droga entrou no organismo. O circuito de recompensa cerebral tem a funçao biológica de manter a sobrevivência da espécie, ou seja, a lembrança de onde há alimentos e parcerias sexuais. Cada vez que é estimulado, esse circuito manda mensagens para a amígdala, que classifica o estímulo como "bom" e, por sua vez, manda estímulos para áreas relacionadas à memória. No entanto, é provável que a memória da droga seja permanente14. Alguns autores afirmam que a memória da adiçao jamais será esquecida, assim como a memória da ansiedade e da dor, o que possivelmente explique por que, quando animais sao colocados no ambiente em que a cocaína foi autoadministrada no passado, ocorre aumento da liberaçao de dopamina na amígdala e aumento do tempo relacionado ao comportamento de busca pela droga15. Isso indica que algo armazenado em uma memória específica pode ser recuperado a qualquer momento, e essa memória é de difícil extinçao. Essas novas memórias passam a fazer parte da personalidade do indivíduo sob perspectiva molecular. Afinal, o cérebro é plástico e reconstruído por experiências e comportamentos reforçados13. Atualmente, os avanços científicos, incluindo estudos e achados no campo da dependência química, permitem dizer que o uso repetido de substâncias ativa os mesmos sistemas cerebrais de motivaçao que costumam ser ativados por comportamentos essencialmente vitais, como os relacionados à alimentaçao e fuga de situaçoes ameaçadoras. O cérebro entao passa a funcionar como se essas substâncias e seus estímulos associados fossem biologicamente necessários. E com a exposiçao repetida, as associaçoes vao se tornando cada vez mais fortes, desencadeando respostas comportamentais cada vez maiores16.

A vulnerabilidade crônica à recaída é um dos maiores desafios no tratamento do dependente químico. De fato, entender a dependência como transtorno crônico, no qual a recaída é um risco constante que implica tratamento contínuo, foi uma grande contribuiçao, didaticamente esclarecida por McLellan17, motivo pelo qual grande parte do foco das pesquisas sobre dependência vem sendo direcionada aos fenômenos da recaída. Volkow e Fowler18 explicam que a busca repetida de sensaçoes prazerosas de maior magnitude associadas ao uso de substâncias está relacionada a comportamentos impulsivos, e quando o indivíduo deixa de sentir o prazer de outrora, mas continua imbuído no comportamento de buscá-lo, é porque instalou-se o fenômeno da tolerância, ou seja, houve uma adaptaçao funcional de circuitos neuronais à presença da substância.

É necessário partir dos critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - 5ª ediçao (DSM-5)19, da Associaçao Americana de Psiquiatria, para uma reflexao sobre o diagnóstico de dependência química. Essa nova ediçao, publicada recentemente, em 2014, traz uma profunda revisao de classificaçao dos transtornos mentais com importantes modificaçoes nos critérios diagnósticos de dependência de substâncias. O DSM-5 removeu a antiga divisao feita pelo DSM-IV20 entre os diagnósticos de abuso e dependência, reunindo-os numa única categoria, Transtornos Relacionados a Substâncias e Adiçao, aumentando, assim, sua abrangência e possibilitando intervençoes em estágios iniciais da doença, acabando com a distinçao entre uso, abuso e dependência.

Dentre os principais critérios do DSM-5 que um indivíduo dependente de substâncias pode preencher, ainda se encontram os fenômenos da tolerância, definida como a perda do efeito de uma droga devido à administraçao repetida ou à necessidade de aumentar a dose para obter o mesmo efeito, e da abstinência, conjunto de sinais e sintomas físicos que em geral é o reverso do efeito da droga. Os demais critérios continuam englobando a dificuldade do indivíduo em interromper o consumo de drogas mesmo desejando fazê-lo, ou o domínio do comportamento de consumir a substância sobre outras prioridades19.

No complexo fenômeno das alteraçoes que levam ao preenchimento dos critérios tratados pelo DSM-5 para o diagnóstico da dependência, uma novidade: a inclusao do fenômeno do craving, postulado pelo manual enquanto um forte desejo ou urgência de usar uma substância específica19. Anteriormente, tal sintoma só estava presente na CID-10, da OMS. O craving nao havia sido incluído entre os critérios diagnósticos do DSM-IV por se tratar de fenômeno subjetivo. Entretanto, sua importância no processo da recaída foi reconhecida, e os aspectos psicológicos e neurobiológicos que o determinam ainda vêm sendo bastante estudados. Cordeiro21 afirma que um dos maiores estigmas do diagnóstico de dependência está na impossibilidade da cura ou mesmo na dificuldade em lidar com os pacientes. Entender a doença e suas características é essencial para que o profissional diminua frustraçoes e aumente as expectativas dos usuários e familiares acerca do tratamento.

Os manuais diagnósticos sao importantes, pois auxiliam o profissional a diagnosticar a dependência de modo objetivo, identificando melhor o problema e sua gravidade, além de auxiliar o profissional no mapeamento das intervençoes necessárias a cada caso, porém o fenômeno da dependência química nao pode ser considerado somente a partir de suas características biológicas, mas também, e igualmente, de seus aspectos psicológicos e sociais envolvidos22.


TEORIA COMPORTAMENTAL E DEPENDENCIA QUIMICA

Os tratamentos psicossociais para transtornos mentais foram considerados cientificamente efetivos a partir de intervençoes baseadas nos princípios da teoria comportamental23. E o interesse da comunidade científica pelas intervençoes de base comportamental decorreu, em parte, dos resultados positivos obtidos em estudos de ensaios clínicos, mas também de seu alto rigor metodológico. Deve-se considerar que, por meio desses estudos, as pesquisas de intervençoes psicossociais alcançaram o mesmo rigor metodológico dos estudos farmacológicos24. A dependência química, sob o olhar do processo comportamental respondente, ou pavloviano, é considerada quando uma substância, administrada por um certo tempo, é interrompida, ocasionando sintomas de retirada e craving. Estao também intimamente associados à tolerância o decréscimo do efeito da substância no decorrer de repetidas administraçoes e a necessidade de aumento de quantidade para a obtençao do mesmo efeito antes observado25. Algumas respostas das espécies sao específicas a determinados estímulos relevantes para sua sobrevivência. Assim, por exemplo, se ocorre súbito aumento na temperatura ambiental, organismos endotérmicos (inclusive os humanos) apresentariam como resposta adaptativa o alargamento dos poros, permitindo, dessa maneira, a excreçao do suor, o que ajudaria a manter a temperatura corporal em níveis ideais. Esse processo comportamental denomina-se reflexo incondicionado, uma vez que organismos estariam preparados biologicamente para apresentar tais respostas, sem que nenhuma condiçao anterior de aprendizagem fosse necessária para a ocorrência da resposta. Por outro lado, a mera apresentaçao visual ou olfativa de um suco de limao produzirá, em quem já tenha sido exposto a essa substância, uma salivaçao que, de alguma maneira, antecipa o contato da língua com o suco ácido, protegendo-a de seus possíveis danos. Esse processo é denominado reflexo condicionado, pois foi necessária pelo menos uma ocasiao de pareamento entre os estímulos (a visao ou o olfato do suco de limao - sumo de limao em contato com a boca) para que houvesse o controle da salivaçao pela visao ou olfato, que inicialmente eram neutros para essa resposta26. Evidências confirmam que as substâncias psicoativas apresentam efeitos semelhantes àqueles observados em estímulos incondicionados27. Considerando-as estímulos ambientais, e seus efeitos como respostas incondicionadas, o modelo reflexo poderá ser utilizado para explicar e controlar muitos fenômenos que envolvam a problemática da dependência. Os dados que dao suporte a essa interpretaçao demonstram que aspectos do ambiente que precedem fielmente a administraçao da substância passam a adquirir propriedades de estímulo condicionado, ou seja, produzem, quando apresentados, efeitos semelhantes (respostas condicionadas) aos que as substâncias psicoativas têm sobre os organismos (respostas incondicionadas)28. Banaco26 explica que a administraçao de dada substância é precedida pelos rituais e procedimentos de ingestao, e diz-se que há aí um pareamento entre o antecedente e o efeito da substância sobre o sistema. Quando essa ligaçao estiver bem estabelecida, o organismo apresentará, perante o próprio ritual ou procedimento de ingestao, os mesmos efeitos que a droga produz, antes mesmo de entrar em contato com a substância (comportamento respondente condicionado).

Após a compreensao a respeito dos processos respondentes envolvidos na introduçao de certas substâncias nos organismos, é preciso complementar o estudo acrescentando os processos operantes que originam os problemas de dependência, e Banaco26 consegue elucidar de forma clara acerca desses processos orientados ao consumo de álcool e drogas. O autor explica que tais processos podem ser resumidos em processos reforçadores positivos (que produzem, como consequência de uma açao, um evento que tem a propriedade de aumentar a frequência dessa açao) e negativos (que produzem, como consequência de uma açao, a retirada de uma condiçao aversiva, aumentando também a frequência dessa açao). Essa interpretaçao explica as açoes de busca e ingestao de substâncias (dependência). Partindo do princípio que as substâncias têm um efeito, em um primeiro momento, reforçador - seja pelos efeitos agradáveis (p. ex., a euforia causada pelo crack), seja pela eliminaçao de sensaçoes desagradáveis (p. ex., reduçao do estresse de um rapaz que acabara de discutir com sua mae) -, é de se esperar que seu consumo passe a ser frequente. Com isso, quando exposto a situaçoes que exigem respostas imediatas a falhas comportamentais, uma única resposta aprendida pelo indivíduo é possível: o consumo da droga.

Através dos exemplos citados no parágrafo anterior e que serviram para elucidar o funcionamento de um processo operante no comportamento de uso de substâncias, poder-se-ia dizer que, quando se fala em falhas comportamentais no repertório de um indivíduo, a exemplo da discussao entre uma mae e seu filho, poderia concluir-se, talvez, algo de uma inabilidade por parte desse indivíduo em manipular, ou controlar, de forma eficaz, situaçoes geradoras de desconforto psíquico que o orienta ao consumo de drogas para alívio da tensao, ou até mesmo a inabilidade em lidar com sentimentos disfóricos. Caberia, assim, ao analista do comportamento, frente a esse conteúdo de demanda, de forma sistemática, identificar essas falhas, que podem estar se repetindo inclusive em outros contextos ou situaçoes por conta de um longo processo histórico de aprendizagem, intervindo de modo a enfraquecer a funçao condicionada pela droga, construindo, em contrapartida, e de forma colaborativa, repertórios comportamentais mais adaptativos frente a emoçoes e sentimentos negativos e situaçoes de conflito. Tal processo, quando apoiado nos fundamentos teóricos e práticos da clínica analítica funcional, levaria o indivíduo a reconhecer a real funçao que a droga, historicamente, estabelece em sua vida, promovendo, assim, um autoconhecimento mais global e histórico acerca de si mesmo, construindo novas possibilidades para lidar com situaçoes aversivas, e, por outro lado, enfraquecendo a relaçao funcional estabelecida com a substância, melhorando sua qualidade de vida e adquirindo uma independência maior para a resoluçao de problemas futuros. Uma direçao possível desse processo será o objeto de discussao do próximo tópico.


A DEPENDENCIA QUIMICA NA PSICOTERAPIA ANALITICA FUNCIONAL: UM DIALOGO CONTINGENTE

Fester29 é o primeiro autor de origem analítico-comportamental a chamar a atençao para a importância da relaçao terapêutica como instrumento de mudança. Baseados nas ideias desse autor, e em consonância com a filosofia behaviorista radical, Kohlenberg e Tsai30, ao longo da década de 1980, começaram a utilizar a relaçao terapêutica como instrumento de mudança clínica. Dessa forma, surge a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), com grande aceitaçao entre os terapeutas comportamentais da atualidade. O responder contingente do terapeuta aos comportamentos clinicamente relevantes (CRBs) (do inglês, Clinically Relevant Behaviors) do cliente na clínica da FAP consiste no mais importante mecanismo de mudança comportamental. Apesar de avanços expressivos, ainda há pouca especificaçao do que constitui esse responder contingente. Em geral, a descriçao de como o terapeuta pode responder aos comportamentos clinicamente relevantes resume-se a orientaçoes em constante processo de refinamento31.

De acordo com Tourinho32, os comportamentos complexos (como os relacionados à dependência química) deixam de ser considerados meras reaçoes ao meio, descritas pelo paradigma respondente, passando a ser vistos como um conjunto de relaçoes, do indivíduo com o ambiente, descrito pelo paradigma operante. Através desse direcionamento proposto pelo autor, os modelos respondentes que justificam o comportamento aditivo de um dependente químico seriam observados na clínica da FAP de maneira secundária, ampliando o olhar sobre um indivíduo complexo e em constante relaçao com o ambiente que o cerca. Nesse caso, modelos de tratamento de orientaçao tecnicista, como, por exemplo, a Prevençao de Recaída (PR), elaborada por Marlatt e Gordon33 na década de 1980 e bastante familiar aos leitores de trabalhos voltados ao tratamento das dependências, seriam recursos utilizados em segundo plano para abordar os usuários de álcool e drogas. Nao se trata, aqui, de invalidar a técnica, uma vez de sua importância em casos de clientes mais angustiados ou em início de tratamento, porém seu modelo de atuaçao ainda preserva uma conduçao que "ensina" o cliente a identificar e lidar com situaçoes de alto risco, focando suas intervençoes em técnicas específicas para drogas específicas33. Na clínica da FAP, seriam o indivíduo, sua história e a relaçao funcional que aquele estabeleceu com a substância, seja ela qual for, que deveriam emergir enquanto foco do tratamento e de mudança clínica. O breve trecho a seguir demonstra uma sequência de interaçao na qual o terapeuta tenta desmistificar o discurso da droga enquanto problema e orientar o cliente a uma elaboraçao mais funcional estabelecida com as substâncias:

C: Eu estou bem, quer dizer, acho que estou conseguindo vencer a droga. O remédio ajuda muito. Também estou evitando frequentar lugares onde sei que posso encontrar pessoas usando cocaína e álcool. Acho que nao posso estar na presença delas. Tenho ficado mais dentro de casa, com minha família, assim nao encontro droga na rua. Também procuro nao conversar muito com minha irma, assim ela fica longe de mim, nunca nos damos bem. Sempre brigamos e isso me deixa nervoso, e quando fico nervoso, logo quero beber e usar droga para ficar mais calmo. [Cliente refere a fuga de gatilhos ambientais e afetivos enquanto mecanismo da abstinência. Vale-se de técnicas de Prevençao de Recaída importantes, porém ainda permanece agarrado à topografia do comportamento (ao consumo ou nao de substâncias), e nao à sua funçao, como propoe o behaviorismo radical de Skinner e a clínica da FAP.]

T: Acredito ser realmente muito importante você estar se preocupando mais em deixar de frequentar os locais que antes frequentava, e que eram vulneráveis ao uso de drogas e bebidas, além de querer estar mais perto da família neste momento. Mas eu gostaria que você me falasse um pouco mais sobre a sua relaçao com esta irma. Por que nao se entendem? Aliás, fale-me um pouco sobre a sua história e sua relaçao com as drogas. Quando começou a beber e fazer uso de cocaína? Em que momentos de sua vida você sentiu que o consumo aumentou? [Terapeuta reforça positivamente o movimento do cliente em conseguir abster-se das substâncias, reconhecendo a importância das habilidades tecnicistas apresentadas, ao mesmo tempo em que tenta implicá-lo de modo mais pessoal nas relaçoes funcionais estabelecidas com o álcool e a cocaína ao longo de sua experiência vital.]

Bush et al.34 nos orientam que, para visualizar a aplicaçao clínica da FAP, propoe-se a formulaçao de caso em termos de comportamentos-problema e classes de respostas concorrentes, dentro e fora da sessao. Garcia35 afirma que essa conceituaçao é essencial para o trabalho clínico, uma vez que o estabelecimento de metas terapêuticas depende do entendimento de quais respostas serao alvo de intervençao, visando tanto à sua reduçao quanto à modelagem de respostas concorrentes. Na clínica da dependência química, esse entendimento pode ficar bastante claro, uma vez que o comportamento de consumo de álcool e drogas pode ser elegido como resposta-alvo da intervençao, visando à sua reduçao, e respostas concorrentes seriam aquelas construídas enquanto outras possibilidades possíveis para lidar com a idiossincrasia dos problemas vitais apresentados pelos clientes.

A FAP introduz o conceito de CRBs, definindo-os como comportamentos-alvo que ocorrem durante a sessao. Kohlenberg e Tsai30 sugerem três tipos de CRBs, classificando-os como CRBs 1, 2 e 3. Os autores explicam que os CRBs 1 sao os comportamentos que se referem ao problema do cliente e cuja intervençao clínica objetiva reduzir a frequência; CRBs 2 relacionam-se com a melhora clínica, ou seja, sao os progressos do cliente, aqueles comportamentos cuja frequência deve aumentar com a terapia; ao passo que os CRBs 3 sao as respostas verbais dos clientes sob controle discriminativo do seu comportamento e das suas variáveis controladoras. Em outras palavras, CRBs 3 sao explicaçoes oferecidas pelo cliente ao seu próprio comportamento, e desejáveis na medida em que se espera que o cliente consiga por si só realizar autoanálises funcionais de seus próprios comportamentos e dos comportamentos das pessoas com quem convive. Em termos comportamentais, CRBs 3 sao descritas com o termo "autoconhecimento". Como exemplo de CRB 1 de um dependente químico, o cliente consumiria cocaína para ser positivamente reforçado com sensaçoes de euforia e alívio de tensao frente a uma realidade psicossocial fragilizada. Mesmo produzindo reforçadores positivos em curto prazo, essa resposta pode representar uma puniçao em longo prazo e provocar a perda de reforçadores, como a nao resoluçao de suas questoes e o distanciamento gradativo das pessoas de seu convívio. Como exemplo de um CRB 2, esse mesmo cliente, diante de uma situaçao de conflito e geradora de craving, emitiria um comando direto a si mesmo no sentido de tentar construir estratégias mais adaptativas de resoluçao de problemas e manejo da fissura. Um CRB 3 aconteceria quando o próprio cliente verbalizasse relaçoes funcionais que estabelece com a droga nao só em seu contexto atual, mas também em contextos históricos, promovendo a si mesmo um autoconhecimento profundo e orientador de um estilo de vida mais saudável e adaptativo, conforme ilustrado no diálogo terapeuta-cliente a seguir:

[Cliente Felipe (nome fictício, alterado para resguardar a privacidade e o sigilo), de 25 anos, relata ao terapeuta sua dificuldade em interromper o consumo do crack, mesmo desejando fazê-lo. Na formulaçao do caso, identificou-se que o cliente tem dificuldades em estabelecer vínculos afetivos e manter-se por muito tempo em algum emprego. O pai, falecido, era alcoolista, e a mae, bastante repressora.]

C: Eu nao sei o que acontece comigo. Sou muito ansioso. Só o crack para me aliviar. Cada vez que tento parar com ele eu fico mais ansioso ainda. Nao sei o que acontece. Preciso dele. [Cliente engaja-se em CRB 1.]

T: Precisa dele de que forma? De que modo ele te ajuda? [Terapeuta tenta investigar a relaçao que Felipe estabelece com a droga.]

C: Quando eu fumo o crack ele me deixa mais desinibido, mais tranquilo. É só eu fumar que parece que me sinto leve, esqueço de meus problemas e minha timidez desaparece, mas tudo isso só por um momento, depois fico pior. [Cliente engaja-se em mais um CRB 1.]

T: Fica pior! E o que você pensa sobre isso? [Terapeuta responde ao CRB 1, pedindo para o cliente descrever o comportamento em curso.]

C: Penso que preciso encontrar um jeito diferente de lidar com essas minhas emoçoes e meus problemas. Sempre fui assim, desde pequeno. Um dia eu fumei essa porcaria e parece que me senti bem. Esqueço de tudo. Aí toda vez que eu me sinto triste, ansioso, ou com alguma coisa me incomodando, eu lembro do crack. No fundo eu sei que ele nao me ajuda, mas também eu nao sei o que eu posso fazer. Sei que de algum jeito eu preciso parar com isso, senao eu vou acabar morrendo. Tenho que voltar a trabalhar, estudar, estar com meus amigos, reconquistar a confiança da minha família. [Cliente responde com CRB 2, enfraquecendo o comportamento de consumo e fortalecendo comportamentos concorrentes e mais adaptativos. Como o CRB 1, na clínica da dependência química, tende a ocorrer com mais frequência que o CRB 2, em alguns casos, mesmo que o terapeuta ignore o CRB 1 e busque evocar o CRB 2, a emissao deste último pode demorar demasiadamente.]

T: Pelo que entendi, parece-me que de alguma forma você aprendeu que o crack te ajuda em algumas situaçoes específicas, como te confortar em momentos de tristeza ou ansiedade, e ainda te faz esquecer alguns problemas. Você nao quer falar um pouco sobre esses problemas? Sao eles que te deixam triste ou ansioso? [Terapeuta interpreta a fala do cliente e tenta convidá-lo a uma implicaçao mais histórica diante de seu consumo de droga.]

C: Como eu disse, desde pequeno eu sou assim. Minha vida foi muito difícil. Meu pai bebia, batia na minha mae, mas ele já morreu. E minha mae sempre foi muito rígida comigo, me prendia muito dentro de casa. Aí parece que eu me transformei num cara assim... sei lá...

T: Interessante! Você falava há pouco sobre o consumo de droga, e agora fala de uma infância e adolescência um pouco mais conturbada. Você acha que pode existir alguma relaçao entre isso tudo? [Terapeuta provoca a produçao de CRB 3.]

C: Pode ser que sim... nao sei... (pausa) Quando eu conheci esse crack parece que ele me tirava da cabeça as lembranças dessa minha história. Nao foi fácil... na escola... tudo isso sempre me atormentou. Nao tive uma criaçao legal. Parece que eu nao sei lidar com meus próprios problemas. Sempre achei que a droga me ajudava. [Cliente engaja-se em CRB 3, começa a realizar análises funcionais de seu próprio comportamento aditivo.]

T: Acredito ser muito importante continuarmos falando sobre tudo isso. Se estiver disposto, podemos agendar um novo encontro. Tenho muito interesse em conhecer mais de sua história. Quem sabe juntos conseguiremos encontrar maneiras mais saudáveis de lidar com suas questoes e seus traumas! [Terapeuta fortalece o vínculo terapêutico e convida o cliente à contínua construçao do autoconhecimento.]

C: Claro que sim! Você nao sabe o quanto me fez bem falar um pouco disso. Eu acho que já passou da hora de cuidar mais de mim mesmo, parar de fugir dos meus problemas, e ficar me escondendo atrás de uma porcaria de pedra de crack. [Felipe continuou frequentando as sessoes de psicoterapia semanalmente. Pôde elaborar melhor comportamentos privados que antes o incomodavam, e o consumo da droga foi ficando cada vez menos frequente. Com períodos cada vez mais longos entre um episódio de consumo e outro, Felipe conseguiu matricular-se em uma faculdade no período noturno, trabalha junto à mae no período da manha num comércio que esta possui, e a relaçao entre ambos é a melhor possível. O progresso clínico na FAP acontece apenas quando, como neste caso, o cliente passa a engajar-se em CRBs 2 e CRBs 3.]

Como verificado no diálogo acima, a intervençao na FAP envolve a modelagem direta das respostas do cliente no aqui e agora da sessao, presumindo-se que sua eficácia dependa da resposta do terapeuta ao CRB. Assim, quanto mais próxima a resposta do terapeuta ao CRB, mas eficaz tende a ser a intervençao31. Kohlenberg e Tsai36 nos revelam as cinco regras da FAP que orientam o trabalho clínico, de modo que as sessoes sejam propícias à emissao e modelagem de comportamentos clinicamente relevantes. Elas orientam o terapeuta a: 1) estar atento aos CRBs; 2) evocá-los; 3) responder a eles; 4) avaliar o efeito de seu responder no cliente; 5) fornecer interpretaçoes e estratégias de generalizaçao. Em geral, a recomendaçao é que se reforce naturalmente o CRB 2 e que se responda ao CRB 1 com cautela37.

Com o objetivo de especificar o que o terapeuta pode fazer para responder ao CRB 1, deve-se inicialmente descrever o que este constitui. No geral, um CRB 1 é uma classe de respostas de fuga ou esquiva de eventos aversivos34, e sua emissao frequente restringe o acesso do organismo a novas fontes de reforço38. No fenômeno da dependência de substâncias, o comportamento de consumo representaria uma fuga ou esquiva diante das adversidades impostas por sua experiência atual e/ou pregressa (CRB 1), na qual o acesso a novas possibilidades resolutivas ficaria bloqueado diante de um repertório de adiçao já aprendido, cronificado e reforçado positivamente. O desafio dessa clínica seria justamente construir junto ao cliente novas fontes de reforço e modelos mais adaptativos de resoluçao de problemas (CRB 2 e CRB 3), sem perder de vista a vulnerabilidade crônica a novos comportamentos de consumo. A fim de orientar o cliente na identificaçao de variáveis mantenedoras e facilitar a generalizaçao e discriminaçao de respostas modeladas durante a sessao, sugere-se que o terapeuta forneça análises de contingências de reforço dos comportamentos do cliente. Uma breve explicaçao funcional já auxilia o cliente a responder perguntas sobre a razao que o leva a se comportar de determinada maneira, colocando ênfase na história e na funcionalidade do comportamento39,40, como no exemplo a seguir:

T: Você dizia há pouco que precisa tomar algumas doses de cachaça sempre depois de um dia de trabalho, pois nao suporta muito a pressao do chefe, pois o considera exigente demais e um tanto quanto arrogante ao te delegar alguma tarefa. Ao mesmo tempo fico pensando na imagem de seu pai, que, no encontro passado, você disse sempre ter sido autoritário e também muito exigente. Foi isso mesmo que disse?

C: Sim.

T: No que eu te convido a pensar, é justamente nessas relaçoes que você estabelece com a bebida. Lembro-me de ter dito que conheceu o álcool em festas com amigos, e nos momentos de bebedeira percebia que a substância te "transportava a outro mundo", como você mesmo definiu. Você ainda disse que, quando se sentia estressado com as reclamaçoes e exigências de seu pai, você saía para tomar algumas doses de cachaça e, com isso, se sentia menos nervoso. Com o passar do tempo você foi relacionando o álcool a situaçoes de estresse.

T: Você tem razao. Nao sei lidar com situaçoes de estresse. Parece que logo vem a lembrança daquela época e eu me sinto nervoso. Até hoje nao suporto muito quando alguém fala mais sério comigo. Meu pai, hoje em dia, está mais tranquilo, e meu chefe nao é uma má pessoa. Talvez seja o jeito dele de falar. Preciso pensar mais sobre isso e tentar nao me incomodar tanto quando meu chefe me exigir... quer dizer... quando me pedir algo.

[Essa passagem ilustra como o terapeuta fornece ao cliente análises de seu próprio comportamento. Esse artifício deve ser usado quando o indivíduo tem mais dificuldade em estabelecer essas relaçoes, pois o ideal seria que o próprio cliente evocasse esse CRB 3. Desse modo, a produçao desse autoconhecimento veio acompanhada de uma mudança comportamental significativa quando do retorno do cliente na sessao seguinte.]

T: Parece-me que hoje você está mais animado. Quer me contar algo?

C: Bem... a depender de meu chefe, ele continua o mesmo (risos), mas na semana passada eu só bebi uma vez. Foi na sexta-feira. Na verdade um colega de trabalho me convidou, aí eu nao resisti. Confesso que ainda é um pouco difícil parar de beber de uma vez só, mas eu sinto que estou melhorando. Nao sinto mais tanta vontade de beber depois do trabalho. Confesso que ainda vem uma vontade pequena, mas eu reflito sobre os nossos encontros e a vontade logo passa.

Retomando a interaçao lógica da FAP, pode-se começar a especificar o que constitui o responder contingente do terapeuta aos CRBs. Catania2 explica que, ao responder de forma contingente a um CRB 1, o terapeuta promove um importante ponto de transiçao de um comportamento problema a um comportamento de melhora. Porém, a autora adverte quanto ao reforço de um CRB 1 enquanto um manejo inadequado segundo as regras da FAP, uma vez que isso significaria fortalecer uma resposta relacionada ao problema do cliente, que teria como proposta ser reduzida ou extinguida. Nesse caso o curso de um CRB 1 é permitido até que uma resposta concorrente apareça e seja imediatamente reforçada, no caso, um CRB 2 ou CRB 3. Esse processo é nomeado pela clínica analítico-funcional como "reforço diferencial", que em outras palavras implica açoes como ignorar a emissao de CRB 1 e reforçar CRBs 2 e 3 ou relatos de problemas e melhoras em relaçao a eventos que ocorrem, também, fora da sessao31.


CONSIDERAÇOES FINAIS

O fenômeno da dependência química sob o olhar da FAP deve emergir para desmistificar as ideias errôneas das terapias comportamentais enquanto processos que focam em comportamentos específicos e que se baseiam em técnicas específicas para mudanças de comportamento enquanto orientadoras de seu trabalho, como considerado pelos condicionamentos reflexos e respondentes. Em contrapartida, nao cabe aqui invalidar o discurso do behaviorismo metodológico de Pavlov e Watson, uma vez de sua importância reconhecida no cenário de estudos sobre análises de comportamentos específicos, e de sua imprescindível aplicaçao prática no tratamento de diversos transtornos, como nas esquizofrenias, retardos mentais7,8 ou outras complicaçoes em que o prejuízo cognitivo impossibilite a auto-observaçao ou produçao de autoconhecimento, como proposto pelo condicionamento operante de Skinner, e que sustentam os conceitos da FAP.

Um terapeuta comportamental nao deve se interessar pelo comportamento aditivo em si, em sua forma ou topografia, mas nas condiçoes em que ele ocorre, seus antecedentes e consequentes, sua história de reforçamento e puniçao e os efeitos destes sobre esse comportamento. Skinner41 já orientava que o analista do comportamento nao deve se prender à topografia da resposta, e sim à sua funçao, ou seja, qual reforçador essa resposta produziu no passado, pois é devido a essa história de reforçamento que a resposta continua sendo emitida.

O objetivo deste trabalho foi apresentar um elo cientificamente embasado entre as teorias comportamentais e o fenômeno da dependência química, confirmando o lugar privilegiado que o behaviorismo radical ocupa no direcionamento da prática clínica de clientes portadores de transtornos por uso de substâncias e adiçao. Para mais além, o presente trabalho constitui um esforço útil para a especificaçao do responder contingente do terapeuta na clínica da dependência química sob orientaçao da abordagem analítico-funcional.

Conclui-se que cabe ao terapeuta ter o maior número possível de informaçoes a respeito das práticas de atuaçao da FAP, das ideias e propostas de diversos autores da área, até mesmo para criticá-los, além de muita resistência e resiliência à frustraçao para lidar com a unicidade e a variabilidade das dificuldades apresentadas por clientes usuários de álcool e drogas.

É imprescindível o desenvolvimento de propostas comparativas mais extensas entre as técnicas e os princípios analítico-comportamentais de atuaçao terapêutica na clínica da dependência química orientada pela FAP. Afinal, tais comparaçoes podem enriquecer as discussoes entre diferentes teorias e suscitar o diálogo de temas e práticas, comuns ou nao, bastante relevantes no auxílio do manejo de comportamentos aditivos que sao, no mínimo, desafiadores.


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Especialista em Dependência Química (PUC-Minas). Psicólogo clínico. Belo Horizonte, MG, Brasil

Instituiçao: Fundaçao Hospitalar do Estado de Minas Gerais

Correspondência
Marcelo Morandi Mathias Martins
Alameda Vereador Alvaro Celso, 100, Santa Efigênia
30.150-260 Belo Horizonte-MG
psicologomarcelomorandi@gmail.com

Submetido em: 08/02/2015.
Aceito em: 18/04/2015

 

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