Rev. bras. psicoter. 2015; 17(3):47-62
Isolan L. O desenvolvimento da regra fundamental na obra de Freud: da hipnose à associaçao livre. Rev. bras. psicoter. 2015;17(3):47-62
Artigos Originais
O desenvolvimento da regra fundamental na obra de Freud: da hipnose à associaçao livre*
The development of the fundamental rule in Freud's work: from hypnosis to free association*
Luciano Isolan
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Uma das principais ferramentas da técnica psicanalítica é a associaçao livre, que é uma das vias de acesso ao inconsciente. A importância da associaçao livre para o método psicanalítico foi tao grande que o próprio Freud a intitulou como a regra fundamental da psicanálise. Essa regra pode ser conceituada como o compromisso assumido pelo paciente de comunicar ao analista tudo o que lhe vier à mente, independentemente de suas inibiçoes ou do fato de achá-las insignificantes ou nao.
Freud desenvolveu a associaçao livre com seus pacientes de uma forma gradual, possivelmente entre 1892 e 1898, e como resultado de experimentaçao de diversos outros métodos pré-psicanalíticos, como a hipnose, a sugestao e o método catártico. O conhecimento desses métodos anteriores à associaçao livre torna possível uma maior compreensao a respeito do desenvolvimento da regra fundamental.
O presente trabalho se propoe a realizar um estudo teórico da evoluçao da regra fundamental na obra de Freud através de seus sucessivos períodos, passando da hipnose à associaçao livre.
OS PRIMORDIOS DA ASSOCIAÇAO LIVRE
Freud se formou em medicina em 1881. Ainda estudante, em 1876, começou a trabalhar no laboratório de fisiologia de Ernst Brucke, sob cuja direçao efetuou pesquisas na área de fisiologia e histologia do sistema nervoso. Foi nesse instituto, onde permaneceu seis anos, que teve o primeiro contato com o renomado médico vienense Joseph Breuer. Depois de formado, em 1883, ingressou no serviço de psiquiatria de Theodor Meynert, onde trabalhou como clínico e aplicou-se nos estudos de neuroanatomia. Antes de se dedicar inteiramente ao estudo psicanalítico, publicou vários trabalhos sobre afecçoes orgânicas, tais como as afasias e as encefalopatias infantis. De outubro de 1885 a fevereiro de 1886, viajou à França, onde trabalhou na Salpêtrière, em Paris, sob a direçao do eminente neurologista Charcot. Durante seus estudos em Paris, Freud observou e vivenciou o emprego da hipnose por Charcot, que fazia aparecer e desaparecer quadros histéricos nos pacientes. Ao utilizar a hipnose, Charcot chamou a atençao da comunidade médica, que nunca havia reconhecido o hipnotismo como método científico. Após retornar a Viena, Freud logo se desapontou com os métodos tradicionalmente existentes na época no tratamento da histeria, tais como hidroterapia, eletroterapia, massagens, dentre outros, adotando gradualmente a prática da hipnose e da sugestao. Freud se posicionou radicalmente contra as resistências que o meio médico, principalmente na Alemanha e na Austria, tinha contra o hipnotismo e apoiou a utilidade desse método no tratamento das patologias nervosas, particularmente da histeria. O seu interesse pela hipnose o fez traduzir um livro de Bernheim sobre a sugestao hipnótica e suas aplicaçoes terapêuticas em 1889 e outro em 1892. Freud também fez uma visita de algumas semanas às clínicas de Liébeault e Bernheim em Nancy, na França, no verao de 1889, para aprimorar sua técnica em hipnose.
Em Viena, Freud começou a colaborar com Joseph Breuer, clínico renomado que, alguns anos antes, entre 1880 e 1882, havia tratado uma paciente que apresentava uma série de sintomas histéricos, como tosse nervosa, distúrbios da visao, paralisias motoras, alucinaçoes, distúrbios da linguagem, dentre outros, enquanto cuidava do pai enfermo. Trata-se do clássico caso da Srta. Anna O., que pode ser considerado o primeiro caso em que a técnica catártica foi utilizada. Breuer observou com essa paciente que os sintomas histéricos desapareciam sempre que o acontecimento traumático ligado a eles era reproduzido sob hipnose. Porém, a intensa transferência erótica, que se manifestou ao final do tratamento como uma pseudociese, fez que com Breuer interrompesse o caso prematuramente.
Em um artigo intitulado "Histeria", Freud1 define as principais características do método vigente na época no tratamento dessa patologia. Nesse artigo, Freud recomenda dois tipos de tratamento para a neurose histérica. O primeiro consistiria no afastamento do paciente de seu ambiente familiar e sua internaçao em um hospital. Tais medidas teriam a funçao de afastar o paciente de seu ambiente familiar, considerado por ele como gerador de crises, e de criar condiçoes ideais de observaçao e controle das crises. O segundo tipo de tratamento consistiria na remoçao das causas psíquicas dos sintomas histéricos. Diz Freud1 sobre esse tratamento:
O tratamento direto consiste na remoçao das fontes psíquicas que estimulam os sintomas histéricos, e isto se torna compreensível se buscarmos as causas da histeria na vida ideativa inconsciente. Consiste em dar ao paciente sob hipnose uma sugestao que contém a eliminaçao do distúrbio em causa. [...] O efeito se torna maior se adotarmos um método posto em prática, pela primeira vez, por Joseph Breuer em Viena, e fizermos o paciente, sob hipnose, remontar à préhistória psíquica de sua doença, compelindo-o a reconhecer a ocasiao psíquica em que se originou o referido distúrbio (p. 93).Como Charcot, Breuer também utilizava a hipnose no tratamento de pacientes histéricos. Porém, enquanto Charcot procurava influenciar seus pacientes através de sugestao direta, Breuer preferiu deixá-los descrever seus próprios sintomas e torná-los capazes de encontrar alívio, reencenando, tanto quanto possível, a situaçao traumática original. O método de Breuer, chamado de catártico, era fundamentalmente baseado na hipótese de que os sintomas dos pacientes histéricos eram situaçoes passadas que tiveram grande repercussao, mas que foram esquecidas. Tais sintomas representavam um emprego anormal de doses de excitaçao que nao haviam sido suficientemente descarregadas. A terapêutica catártica consistia entao em induzir o paciente através da hipnose a relembrar os traumas esquecidos e reagir a eles com expressoes de afeto. Quando isso ocorria, o sintoma, que até entao tomara o lugar dessas expressoes de emoçao, desaparecia. Freud2 já dizia em "Uma breve descriçao da psicanálise" que: "Dessa maneira, um só e mesmo procedimento servia simultaneamente aos propósitos de investigar o mal e livrar-se dele, e essa conjunçao fora do comum foi posteriormente conservada pela psicanálise" (p. 220). Como observa Garcia-Rosa3, Freud acrescentou um elemento à técnica criada por Breuer. Enquanto este permanecia passivo diante da torrente de fatos narrados pela sua paciente, nao procurando influenciá-la em nada, Freud passou a empregar a sugestao diretamente como meio terapêutico. Dessa forma, a hipnose era empregada para se chegar aos fatos traumáticos, como fazia Breuer, mas, uma vez esses fatos tendo sido identificados, Freud fazia uso da sugestao para eliminá-los ou pelo menos debilitá-los em sua força patogênica.
Todas às vezes, portanto, mesmo enquanto a massageio, minha influência já começa a afetá-la; a paciente fica mais tranquila e mais lúcida, e mesmo sem que haja perguntas sob hipnose consegue descobrir a causa de seu mau humor naquele dia. Tampouco sua conversa durante a massagem é sem objetivo como poderia parecer. Pelo contrário, encerra uma reproduçao razoavelmente completa das lembranças e das novas impressoes que a afetaram desde a última conversa, e, muitas vezes, de maneira bem inesperada, progride até as reminiscências patogênicas, que ela vai desabafando sem ser solicitada. É como se tivesse adotado meu método e se valesse de nossa conversa, aparentemente sem constrangimento e guiada pelo acaso, como um complemento de sua hipnose. Por exemplo, hoje começou a falar de sua família e, com muitos rodeios, passou ao assunto de um primo. [...] Ela acompanhou a história com expressoes de horror e ficou repetindo sua fórmula protetora ("Fique quieto! - Nao diga nada! - Nao me toque!") (p. 90-91).Em outro momento posterior do tratamento, a mesma paciente, claramente irritada com as interrupçoes e com as interrogaçoes insistentes de Freud sobre a origem de seus sintomas, diz: "[...] em um tom claro de queixa, que eu nao devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isto ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer. Concordei com isso e ela prosseguiu, sem nenhum preâmbulo" (p. 97). Freud reconhecia que, por mais tediosas e repetitivas que fossem as narrativas, ele nao ganhava nada com suas interrupçoes, mas que tinha que ouvir as histórias da paciente até o fim, com todos os seus minuciosos detalhes.
Pegue algumas folhas de papel e por três dias a fio anote, sem falsidade ou hipocrisia, tudo o que lhe vier à cabeça. Escreva o que pensa de si mesmo, de sua mulher, da Guerra Turca, de Goethe, do julgamento de Fonk, do Juízo Final, de seus superiores, e, quando os três dias houverem passado, ficará espantadíssimo pelos novos e inauditos pensamentos que teve. Esta é a arte de tornar-se um escritor original em três dias (p. 273).Nessa citaçao fica evidente a intençao do autor de romper com a censura consciente e com a lógica formal do pensamento. É tentador supor que Freud, ao ler esse ensaio, deva ter sido influenciado por tais pressupostos, os quais podem ter contribuído para o emprego psicanalítico da associaçao livre.
Sempre que nos mostram dois elementos muito próximos, isso garante que existe alguma ligaçao especialmente estreita entre o que corresponde a eles nos pensamentos do sonho. Da mesma forma, em nosso sistema de escrita, "ab", significa que as duas letras devem ser pronunciadas numa única sílaba. Quando se deixa uma lacuna entre o "a" e o "b" isso significa que o "a" é a última letra de uma palavra e o "b", a primeira da seguinte. Do mesmo modo, as colocaçoes nos sonhos nao consistem em partes fortuitas e desconexas do material onírico, mas em partes que sao mais ou menos estreitamente ligadas também nos pensamentos do sonho (p. 340).Segundo Bollas7, a partir de sua observaçao de que os sonhos fluem segundo certa lógica temporal, foi possível a Freud descobrir as leis da associaçao livre. O discurso do paciente deveria ser um discurso livre de sentido linear consciente, ou seja, o indivíduo deveria desfrutar de uma liberaçao do conhecimento lógico. Entao, Freud concluiu que, assim como nos sonhos, a ordem em que o paciente diz o que está em sua mente pode revelar sua própria lógica intrínseca. As associaçoes dessa lógica peculiar seriam responsáveis por revelar os desejos, as ansiedades, a memória e os conflitos psíquicos do paciente.
Meus pacientes assumiam o compromisso de me comunicar todas as ideias ou pensamentos que lhe ocorressem em relaçao a um assunto específico [...]. É necessário insistir explicitamente para que renuncie a qualquer crítica aos pensamentos que perceber. Dizemos-lhe, portanto, que o êxito da psicanálise depende de ele notar e relatar o que quer que lhe venha à cabeça, e de nao cair no erro, por exemplo, de suprimir uma ideia por parecer-lhe destituída de sentido (p. 135-136).Cabe observar que, quando Freud solicitava ao paciente que associasse sobre o seu sonho, ele nao estava pedindo ao sonhador ideias sobre o seu sonho. Ele nao estava se voltando à consciência sua ou à do analisando para ver como poderiam entender o sonho. Ao contrário, Freud preconizava que a pessoa deveria apenas relatar o que estivesse pensando naquele momento, independentemente do quanto lhe parecessem insignificantes esses pensamentos.
[...] exorta os pacientes a se deixarem levar em suas comunicaçoes, "mais ou menos com se faz em uma conversa a esmo, passando de um assunto a outro". Antes de exortá-los a um relato pormenorizado de sua história clínica, ele os instiga a dizerem tudo o que lhes passar pela cabeça, mesmo o que julgarem sem importância, ou irrelevante, ou disparatado. Ao contrário, pede com especial insistência que nao excluam de suas comunicaçoes nenhum pensamento ou ideia pelo fato de serem embaraçosos ou penosos (p. 237).Nesse texto, Freud8 diz que no relato da história clínica irao surgir lacunas na memória do paciente, que seriam como amnésias resultantes de um processo de recalcamento e cuja motivaçao é associada a um desprazer. Esclarece que as forças psíquicas que deram origem a esse recalcamento estariam na resistência que se opoe à restauraçao das lembranças. Segundo Freud, "o valor das ideias inintencionais para a técnica terapêutica reside nessa relaçao delas com o material psíquico recalcado" (Ibid., p. 238). Avançar através das associaçoes livres até o material recalcado era o que permitiria tornar acessível à consciência o que até entao era inconsciente. Com base nessa elaboraçao teórica, formulada através de sua experiência clínica, foi possível desenvolver "a arte da interpretaçao à qual compete a tarefa, por assim dizer, de extrair do minério bruto das associaçoes inintencionais o metal puro dos pensamentos recalcados" (p. 238).
Uma coisa a mais, antes que você comece. O que vai me dizer deve diferir, sob determinado aspecto, de uma conversa comum. Em geral, você procura, corretamente, manter um fio de ligaçao ao longo de suas observaçoes e excluí quaisquer ideias intrusivas que lhe possam ocorrer, bem como quaisquer temas laterais, de maneira a nao divagar longe demais do assunto. Neste caso, porém, deve proceder de modo diferente. Observará que, à medida que conta coisas, irao lhe ocorrer diversos pensamentos que gostaria de pôr de lado, por causa de certas críticas ou objeçoes. Ficará tentado a dizer a si mesmo que isto ou aquilo é irrelevante aqui, ou inteiramente sem importância, ou absurdo, de maneira que nao há necessidades de dizê-lo. Você nunca deve ceder a estas críticas, mas dizê-lo apesar delas [...]. Assim diga tudo o que lhe passa pela mente (p. 149-150).Ainda nesse mesmo trabalho, descrevendo a técnica da associaçao livre, Freud15 utiliza a famosa metáfora da viagem de trem ao dizer: "Aja como se, por exemplo, você fosse um viajante sentado à janela de um vagao ferroviário, a descrever para alguém que se encontra dentro as vistas cambiantes que se vê lá fora" (p. 150). Essa metáfora assinala o que se quer dizer com livre, ou seja, nao excluir nada voluntária e conscientemente da comunicaçao. Observa-se também o intuito de Freud de deixar o paciente o mais à vontade possível criando uma situaçao propícia para a emergência do material inconsciente.
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