Rev. bras. psicoter. 2015; 17(2):44-60
Picon F, Karam R, Breda V, Restano A, Silveira A, Spritzer D. Precisamos falar sobre tecnologia: caracterizando clinicamente os subtipos de dependência de tecnologia. Rev. bras. psicoter. 2015;17(2):44-60
Artigos de Revisao
Precisamos falar sobre tecnologia: caracterizando clinicamente os subtipos de dependência de tecnologia
We need to talk about technology: clinical characterization of the technology addiction subtypes
Felipe Picon1; Rafael Karam2; Vitor Breda3; Aline Restano4; André Silveira5; Daniel Spritzer6
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Tecnologia, num sentido amplo, pode ser definida como o conjunto de ferramentas, maquinários e técnicas desenvolvido pelo homem - desde a descoberta do fogo - como uma maneira de modificar o ambiente em seu favor1. Mais recentemente na história humana, desenvolvimentos tecnológicos na área das telecomunicaçoes e tecnologia da informaçao modificaram nao só como as pessoas se comunicam, mas também como elas se relacionam com a própria tecnologia2.
Da mesma forma que a eletricidade revolucionou inúmeros aspectos da vida diária, outra revoluçao vem ocorrendo com o desenvolvimento da internet, que se tornou uma necessidade no dia a dia de todos nós. Enquanto pensamos sobre como queremos nos relacionar com as novas tecnologias e o papel que elas terao nas nossas vidas, ocupamo-nos também com questionamentos a respeito de um modo extremo dessa relaçao, conhecido como dependência de tecnologia. Trata-se de um transtorno caracterizado pela inabilidade de controlar o uso de tecnologia (internet, jogos eletrônicos, smartphones) mesmo que esse uso já esteja causando impacto negativo nas principais áreas da vida do indivíduo (relacionamentos interpessoais, saúde física, desempenho acadêmico, desempenho no trabalho). É um fenômeno global, com prevalência em torno de 6%, segundo uma recente metanálise de 164 estudos de prevalência realizados em 31 países ao redor do mundo3. Além disso, a dependência de tecnologia encontra-se frequentemente associada a outros transtornos psiquiátricos, como Transtorno de Déficit de Atençao/Hiperatividade (TDAH), Transtorno Depressivo e Ansiedade Social4,5.
O estudo das repercussoes do uso/abuso de tecnologia por parte da psicologia, psiquiatria e outras ciências humanas teve até o momento três fases distintas. A primeira tinha como foco os dispositivos utilizados, como computadores e videogames6-9. A segunda fase caracterizou-se pela mudança do foco para a própria internet10,11. Recentemente, esse fenômeno vem sendo estudado através da diferenciaçao entre os vários subtipos de dependência de tecnologia, a partir de suas características específicas12. De modo análogo ao que acontece no campo dos transtornos por uso de substâncias, em que temos que conhecer os efeitos específicos de cada substância e oferecer tratamentos específicos para cada dependência, no estudo da dependência de tecnologia também precisamos compreender os seus diferentes subtipos.
O objetivo deste artigo é apresentar uma revisao narrativa sobre os subtipos de dependência de tecnologia que apresentam maior relevância em nossa prática clínica, apresentando suas definiçoes e características e ilustrando-os através de vinhetas clínicas. Além disso, discutiremos como a avaliaçao da relaçao de nossos pacientes com as tecnologias pode ser útil do ponto de vista clínico e psicoterápico mesmo para aqueles que nao apresentem um transtorno decorrente desse uso nem o tenham como motivo da busca de atendimento.
DEPENDENCIA DE JOGOS ELETRONICOS
Nas últimas décadas os jogos eletrônicos tornaram-se cada vez mais populares, e sao hoje uma das mais importantes atividades de lazer para crianças, adolescentes e adultos13. A evoluçao tecnológica tornou possível um grau cada vez maior de realismo de imagens, sons, interatividade e velocidade dos jogos. A conexao com a internet traz como principal mudança a possibilidade de vários jogadores, distantes geograficamente ou nao, participarem do mesmo jogo. Pode-se criar um mundo persistente, paralelo, que está sempre ativo, e com isso a necessidade de estar on-line pelo maior tempo possível14.
Muitos estudos relacionam o uso de jogos eletrônicos com uma maior facilidade de aprendizado, desenvolvimento de habilidades afetivas, cognitivas e motoras, e também facilitaçao da socializaçao. Além disso, cada vez mais os benefícios de seu uso têm sido comprovados em tratamentos médicos e psicológicos15-17. Por outro lado, é bem estabelecido que seu uso pode, para alguns indivíduos, acarretar prejuízo grave na saúde (tanto física quanto mental), no desempenho acadêmico e também nos relacionamentos afetivos11,18.
Embora a grande maioria dos jovens jogue diariamente, apenas uma pequena parcela deles irá desenvolver algum tipo de prejuízo associado aos games. Estudos com delineamento transversal que avaliaram o uso problemático de jogos eletrônicos observaram prevalências que variaram entre 0,3% e 38%. Essa grande variaçao pode ser atribuída aos diferentes instrumentos diagnósticos utilizados e também às diferentes amostras populacionais incluídas nos estudos19. Ainda nao existe estudo de base populacional no Brasil para que possamos inferir com maior precisao o impacto desse transtorno na nossa populaçao, mas acredita-se que as taxas reais de prevalência estejam próximas dos valores mais baixos desse intervalo.
Na grande maioria dos casos de dependência de jogos eletrônicos, é possível identificar a presença concomitante de outro transtorno mental, que pode ter uma relaçao de causa e efeito com a dependência de jogos e uma tendência a se reforçarem mutuamente. As comorbidades mais frequentemente encontradas entre dependentes de jogos eletrônicos sao depressao, ansiedade social e transtorno de déficit de atençao/hiperatividade20,21. Mesmo sendo a dependência de jogos eletrônicos um fenômeno global, sabe-se que adolescentes do sexo masculino sao um de seus principais grupos de risco18,22.
A adolescência normal também pode funcionar como fator de risco, uma vez que as crianças e adolescentes vivem em um mundo cada vez mais inundado pelas novas tecnologias e têm nelas um importante instrumento de socializaçao. Os jogos eletrônicos proporcionam ao jovem um espaço de experimentaçao onde ele se sente mais à vontade para pôr em prática as principais tarefas dessa fase de sua vida. A desinibiçao (relacionada ao menor contato "cara a cara") e o maior controle do que se mostra aos outros propiciam um ambiente muito menos angustiante ao jovem, que busca a construçao da própria identidade, o início da experimentaçao sexual e a independência dos pais (facilitada pela participaçao cada vez mais intensa no grupo de amigos)23.
Algumas características próprias dos jogos eletrônicos relacionadas com o desenvolvimento de um comportamento de dependência estao sumarizadas no quadro abaixo:
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