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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2015; 17(2):44-60



Artigos de Revisao

Precisamos falar sobre tecnologia: caracterizando clinicamente os subtipos de dependência de tecnologia

We need to talk about technology: clinical characterization of the technology addiction subtypes

Felipe Picon1; Rafael Karam2; Vitor Breda3; Aline Restano4; André Silveira5; Daniel Spritzer6

Resumo

Os desenvolvimentos tecnológicos na área das telecomunicaçoes e tecnologia da informaçao modificaram nao só como as pessoas se comunicam, mas também como elas se relacionam com a própria tecnologia. A forma extrema desse comportamento, conhecida como dependência de tecnologia, é um transtorno caracterizado pela inabilidade de controlar o uso de tecnologia (internet, jogos eletrônicos, smartphones) mesmo que esse uso já esteja causando impacto negativo nas principais áreas da vida do indivíduo (relacionamentos interpessoais, saúde física, desempenho acadêmico, desempenho no trabalho). O objetivo deste artigo é revisar os subtipos de dependência de tecnologia (jogos eletrônico, redes sociais, pornografia e smartphones) que apresentam maior relevância em nossa prática clínica, apresentando suas definiçoes e características, e ilustrando-os através de vinhetas clínicas. Além disso, discutiremos como a avaliaçao da relaçao de nossos pacientes com as tecnologias pode ser útil do ponto de vista clínico mesmo para aqueles que nao apresentem um transtorno decorrente desse uso nem o tenham como motivo da busca de atendimento.

Descritores: Dependência de jogos eletrônicos; Dependência de redes sociais; Dependência de pornografia; Dependência de smartphone; Dependência de tecnologia.

Abstract

Technological developments in telecommunications and information technology have changed not only how people communicate but also how they relate to the technology itself. The extreme form of this behavior, known as technology addiction, is a disorder characterized by the inability to control the use of technology (internet, video games, smartphones) even if such use is already causing a negative impact on major areas of one's life (interpersonal relationships, physical health, academic achievement, job performance). The aim of this paper is to review the technology addiction subtypes (electronic games, social networking, pornography and smartphones) that have greater relevance in clinical practice, with its definitions and characteristics, and illustrating them through clinical vignettes. In addition, we discuss how the evaluation of the relationship of our patients with the technologies can be useful from a clinical point of view even for those who do not present a disorder resulting from this use and not seeking care due to a technology addiction.

Keywords: Videogames addiction; Social networks addiction; Pornography addiction; Smartphone addiction; Technology addiction.

 

 

INTRODUÇAO

Tecnologia, num sentido amplo, pode ser definida como o conjunto de ferramentas, maquinários e técnicas desenvolvido pelo homem - desde a descoberta do fogo - como uma maneira de modificar o ambiente em seu favor1. Mais recentemente na história humana, desenvolvimentos tecnológicos na área das telecomunicaçoes e tecnologia da informaçao modificaram nao só como as pessoas se comunicam, mas também como elas se relacionam com a própria tecnologia2.

Da mesma forma que a eletricidade revolucionou inúmeros aspectos da vida diária, outra revoluçao vem ocorrendo com o desenvolvimento da internet, que se tornou uma necessidade no dia a dia de todos nós. Enquanto pensamos sobre como queremos nos relacionar com as novas tecnologias e o papel que elas terao nas nossas vidas, ocupamo-nos também com questionamentos a respeito de um modo extremo dessa relaçao, conhecido como dependência de tecnologia. Trata-se de um transtorno caracterizado pela inabilidade de controlar o uso de tecnologia (internet, jogos eletrônicos, smartphones) mesmo que esse uso já esteja causando impacto negativo nas principais áreas da vida do indivíduo (relacionamentos interpessoais, saúde física, desempenho acadêmico, desempenho no trabalho). É um fenômeno global, com prevalência em torno de 6%, segundo uma recente metanálise de 164 estudos de prevalência realizados em 31 países ao redor do mundo3. Além disso, a dependência de tecnologia encontra-se frequentemente associada a outros transtornos psiquiátricos, como Transtorno de Déficit de Atençao/Hiperatividade (TDAH), Transtorno Depressivo e Ansiedade Social4,5.

O estudo das repercussoes do uso/abuso de tecnologia por parte da psicologia, psiquiatria e outras ciências humanas teve até o momento três fases distintas. A primeira tinha como foco os dispositivos utilizados, como computadores e videogames6-9. A segunda fase caracterizou-se pela mudança do foco para a própria internet10,11. Recentemente, esse fenômeno vem sendo estudado através da diferenciaçao entre os vários subtipos de dependência de tecnologia, a partir de suas características específicas12. De modo análogo ao que acontece no campo dos transtornos por uso de substâncias, em que temos que conhecer os efeitos específicos de cada substância e oferecer tratamentos específicos para cada dependência, no estudo da dependência de tecnologia também precisamos compreender os seus diferentes subtipos.

O objetivo deste artigo é apresentar uma revisao narrativa sobre os subtipos de dependência de tecnologia que apresentam maior relevância em nossa prática clínica, apresentando suas definiçoes e características e ilustrando-os através de vinhetas clínicas. Além disso, discutiremos como a avaliaçao da relaçao de nossos pacientes com as tecnologias pode ser útil do ponto de vista clínico e psicoterápico mesmo para aqueles que nao apresentem um transtorno decorrente desse uso nem o tenham como motivo da busca de atendimento.


DEPENDENCIA DE JOGOS ELETRONICOS

Nas últimas décadas os jogos eletrônicos tornaram-se cada vez mais populares, e sao hoje uma das mais importantes atividades de lazer para crianças, adolescentes e adultos13. A evoluçao tecnológica tornou possível um grau cada vez maior de realismo de imagens, sons, interatividade e velocidade dos jogos. A conexao com a internet traz como principal mudança a possibilidade de vários jogadores, distantes geograficamente ou nao, participarem do mesmo jogo. Pode-se criar um mundo persistente, paralelo, que está sempre ativo, e com isso a necessidade de estar on-line pelo maior tempo possível14.

Muitos estudos relacionam o uso de jogos eletrônicos com uma maior facilidade de aprendizado, desenvolvimento de habilidades afetivas, cognitivas e motoras, e também facilitaçao da socializaçao. Além disso, cada vez mais os benefícios de seu uso têm sido comprovados em tratamentos médicos e psicológicos15-17. Por outro lado, é bem estabelecido que seu uso pode, para alguns indivíduos, acarretar prejuízo grave na saúde (tanto física quanto mental), no desempenho acadêmico e também nos relacionamentos afetivos11,18.

Embora a grande maioria dos jovens jogue diariamente, apenas uma pequena parcela deles irá desenvolver algum tipo de prejuízo associado aos games. Estudos com delineamento transversal que avaliaram o uso problemático de jogos eletrônicos observaram prevalências que variaram entre 0,3% e 38%. Essa grande variaçao pode ser atribuída aos diferentes instrumentos diagnósticos utilizados e também às diferentes amostras populacionais incluídas nos estudos19. Ainda nao existe estudo de base populacional no Brasil para que possamos inferir com maior precisao o impacto desse transtorno na nossa populaçao, mas acredita-se que as taxas reais de prevalência estejam próximas dos valores mais baixos desse intervalo.

Na grande maioria dos casos de dependência de jogos eletrônicos, é possível identificar a presença concomitante de outro transtorno mental, que pode ter uma relaçao de causa e efeito com a dependência de jogos e uma tendência a se reforçarem mutuamente. As comorbidades mais frequentemente encontradas entre dependentes de jogos eletrônicos sao depressao, ansiedade social e transtorno de déficit de atençao/hiperatividade20,21. Mesmo sendo a dependência de jogos eletrônicos um fenômeno global, sabe-se que adolescentes do sexo masculino sao um de seus principais grupos de risco18,22.

A adolescência normal também pode funcionar como fator de risco, uma vez que as crianças e adolescentes vivem em um mundo cada vez mais inundado pelas novas tecnologias e têm nelas um importante instrumento de socializaçao. Os jogos eletrônicos proporcionam ao jovem um espaço de experimentaçao onde ele se sente mais à vontade para pôr em prática as principais tarefas dessa fase de sua vida. A desinibiçao (relacionada ao menor contato "cara a cara") e o maior controle do que se mostra aos outros propiciam um ambiente muito menos angustiante ao jovem, que busca a construçao da própria identidade, o início da experimentaçao sexual e a independência dos pais (facilitada pela participaçao cada vez mais intensa no grupo de amigos)23.

Algumas características próprias dos jogos eletrônicos relacionadas com o desenvolvimento de um comportamento de dependência estao sumarizadas no quadro abaixo:




Em vista do crescente corpo de evidências sobre o tema, e com o objetivo de estimular a pesquisa na área, a quinta ediçao do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5)25 incluiu como "Condiçoes que merecem mais estudos" a categoria "Internet Gaming Disorder", traduzida como "Transtorno do Jogo pela Internet". Este foi definido como o uso persistente e recorrente da internet para envolver-se em jogos, frequentemente com outros jogadores, levando a prejuízo clinicamente significativo ou sofrimento, conforme indicado por cinco (ou mais) dos sintomas apresentados no quadro abaixo, em um período de 12 meses:




Juntamente com a avaliaçao diagnóstica tradicional, acreditamos ser de extremo valor uma escuta atenta para as características do jogo, do personagem, das tarefas e missoes que fazem parte do universo do jogador. Muitas vezes essas informaçoes podem estar relacionadas com características de personalidade e também com a situaçao atual de vida do paciente, enriquecendo bastante a compreensao diagnóstica.

Vinheta Clínica:

R., 12 anos, estudante. Sempre gostou muito de jogar videogame, mas o fazia moderadamente e geralmente junto com amigos e familiares. Em seu aniversário de 10 anos ganhou um novo videogame que lhe permitiu jogar on-line um jogo de tiro em primeira pessoa (FPS - First Person Shooter) que todos os amigos estavam jogando. Aí aumentou progressivamente o seu tempo de jogo, e nao eram raros os dias em que jogava por aproximadamente 10 horas seguidas. Nessa época começou a mentir para seus pais sobre o tempo de jogo, o que ocasionava inúmeras brigas. Sempre fora um excelente aluno, mas nessa época começou a pegar recuperaçao em quase todas as matérias, pois nao fazia as liçoes de casa nem estudava mais para as provas. Tampouco prestava atençao na aula, pois tinha muito sono pela manha em virtude de jogar até muito tarde. Apresentava intensa irritabilidade em situaçoes em que era impedido de jogar, e os pais tinham muita dificuldade para levá-lo em qualquer passeio ou restaurante. R. parou também de jogar futebol e ir na casa dos amigos, e dizia que "nada na sua vida era tao legal como o FPS". Pensava o tempo todo em suas conquistas dentro do jogo, nos desafios seguintes e no que precisaria fazer para nao perder o seu lugar de destaque em relaçao aos demais jogadores.


DEPENDENCIA DE REDES SOCIAIS

As plataformas das redes sociais (RS) vêm sendo amplamente difundidas entre crianças, adolescente e adultos. Ainda que a sensaçao seja de novidade, elas nao sao tao recentes assim. A primeira RS foi lançada em 1997. Trata-se de comunidades virtuais onde o indivíduo cria um perfil público ou semipúblico no qual se compartilham fotos, vídeos, textos, opinioes, informaçoes e jogos. O usuário conecta-se a amigos com quem possui contato em sua vida real ou que conhece somente através do mundo virtual, através de interesses em comum26. As meninas utilizam mais as RS do que os meninos. Elas utilizam mais para se comunicar e para entretenimento em geral, enquanto que os meninos utilizam mais como uma maneira de compensar inabilidades sociais27. Além disso, as meninas têm maior tendência a usá-las de forma problemática, ficando mais tempo conectadas a redes como o Facebook, tendendo mais facilmente à dependência de redes sociais do que os meninos28.

Mesmo ainda nao existindo uma formalizaçao de critérios diagnósticos para a dependência de RS, como já existe em relaçao a dependência de games, o abuso desse subtipo de dependência de tecnologia merece atençao dos profissionais da saúde, especialmente daqueles que trabalham com jovens, pois é durante a adolescência que aumenta muito o seu uso29,30. Além disso, sabe-se que a comunicaçao é o principal motivo de uso de internet por adolescentes. Via de regra, todas as comunicaçoes on-line entre os adolescentes sao feitas através de redes sociais31. Pessoas com uso problemático de redes sociais também apresentam os mesmos sintomas característicos de outras dependências, como tolerância, abstinência e fissura. Além disso, pessoas com maior dificuldade no controle de uso das redes sociais apresentam também maior tendência para desenvolver demais dependências, além de maior dificuldade no manejo das emoçoes e no controle de impulsos32.

O funcionamento das RS é formulado de tal forma que inúmeros mecanismos estimulam o constante retorno a elas. A verificaçao de curtidas no Instagram ou no Facebook, o número de notificaçoes no WhatsApp, o recebimento de comentários e mensagens faz com que o sujeito queira conferir constantemente o que está ocorrendo em seus perfis virtuais. Estudos evidenciam que repetidas curtidas no Facebook geram picos de bem-estar cerebrais (via circuito de recompensa) comparáveis aos que ocorrem com outros desencadeadores de prazer (alimentos, sexo e até cocaína)32,33. O mecanismo inverso também ocorre quando nao sao recebidos curtidas ou comentários positivos sobre algo postado, o que a pessoa esperaria que ocorresse. O sujeito acaba sentindo um vazio intenso, que pode ser semelhante ao do dependente químico quando nao está sob efeito da substância ou quando é privado do acesso a ela34.

A gratificaçao advinda das curtidas é somente um entre os inúmeros prazeres que as RS proporcionam. Existem diversos outros possíveis prazeres que sao veiculados através das redes sociais. Sao eles: o prazer em mostrar que se faz parte de um grupo específico, em compartilhar as atividades sociais que se está participando em tempo real, além do prazer em mostrar os gostos e estilo de vida como confirmaçao da identidade de uma determinada pessoa. Quando tais prazeres geram uma trama cognitiva na qual se espera de forma muito intensa por recompensas após se ter compartilhado uma foto ou um pensamento, está se falando de situaçoes nas quais o uso pode estar se aproximando de um caráter dependente35. Outra situaçao de risco para gerar um padrao dependente de comportamento é quando a interaçao nas RS baseia-se demasiadamente na busca de suporte emocional36.

Devido à crescente importância e prevalência do assunto na prática clínica atual, tanto de psicoterapeutas que atendem crianças e adolescentes quanto dos que atendem adultos, faz-se necessário um olhar mais atento para esse fenômeno. Entendemos que hoje em dia deveria ser natural investigarmos nao só se nossos pacientes utilizam as RS e por quanto tempo mantêm-se conectados a elas por dia, mas como eles interagem com as diferentes redes sociais em seu dia a dia. Pontos importantes de serem averiguados sao: se a pessoa consegue estabelecer chats com outras pessoas, como se sente quando recebe curtidas, como se sente quando nao recebe curtidas, em que momentos tem necessidade de observar a vida alheia, se busca apoio emocional através das RS, se possui perfis falsos, o que costuma postar na rede, qual a frequência com que utiliza as redes sociais, quanto tempo do seu dia dedica à rede social e como se sente quando nao tem acesso a ela37.

Vinheta Clínica:

L., 16 anos, feminina. Já havia deixado a escola em funçao de dificuldades de aprendizagem e relacionamento antes mesmo de ter problemas relativos ao uso das redes sociais. Na época que chegou para atendimento, possuía poucos amigos em sua vida real e seu mundo de relaçoes baseava-se fundamentalmente nos amigos de Facebook, Instagram, Twitter e WhatsApp. Cada curtida ou notificaçao de mensagem era vivenciada com forte euforia, entusiasmo, sentimento de valorizaçao e de pertencer a um grupo. A cada dia que nao tinha sua foto alcançando no mínimo cem curtidas, seu vazio e tristeza se faziam intensamente presentes. Como já nao possuía nenhuma outra atividade, todas as horas do seu dia eram voltadas para isso. Na única tentativa dos pais em cortar seu acesso às redes sociais, L. teve uma crise de choro muito forte, chegando a se sentir enojada e a vomitar. A partir disso eles desistiram da retirada total do acesso e passamos a tentar um uso controlado, bem como a retomada de outras atividades.


DEPENDENCIA DE PORNOGRAFIA ON-LINE

Pornografia pode ser definida como "qualquer material sexual explícito mostrando a genitália com o objetivo de excitaçao sexual ou fantasia"38 ou "qualquer tipo de material objetivando criar ou reforçar pensamentos ou sensaçoes sexuais no receptor e, ao mesmo tempo, contendo exposiçao explícita e/ou descriçoes dos genitais e atos sexuais explícitos"39. A produçao e consumo de pornografia, também referida como "material sexual explícito", sao muito difundidos, e este é um dos mercados mais rentáveis da internet40.

O uso excessivo de pornografia on-line está classificado no DSM-5 como um dos subtipos de Transtorno de Hipersexualidade. Esse comportamento tipicamente envolve ver, baixar, trocar material de conteúdo pornográfico ou se envolver em salas de bate-papo com temas de fantasias sexuais, causando significativo prejuízo interpessoal. Dada a ampla disponibilidade de material sexual explícito na internet, esse tipo de dependência é uma das formas mais comuns de problemas de comportamento on-line41, e afeta mais homens do que mulheres42.

As diferenças entre os sexos se evidenciam em relaçao ao material buscado para obter excitaçao sexual. Os homens consomem mais pornografia e tendem mais a procurar e se excitar com representaçoes visuais na internet, bem como usar essas imagens para masturbaçao. A mulheres procuram mais por salas de bate-papo (chats) sobre sexo e narrativas eróticas, e tendem a buscar menos esse tipo de estímulo a fim de obter excitaçao para fins de masturbaçao43. Para ambos os sexos, o enredo pornográfico funciona como uma estrutura de referência em relaçao aos ideais corporais e de performance sexual44.

Inúmeras pesquisas têm explorado os efeitos das mídias de massa nas diferentes faixas etárias, demonstrando-se que a idade atua como um fator significante em como as informaçoes sao processadas e internalizadas45. Adolescentes sao afetados pelo modo como eles usam, entendem ou se opoem a sugestoes da mídia, geralmente aceitando as definiçoes de sexo, amor e relacionamentos vindos da mesma46. Diversos estudos têm procurado examinar o efeito da exposiçao à material sexual explícito (MSE) no desenvolvimento sexual de adolescentes e adultos jovens, demonstrando associaçao com maior risco de práticas sexuais inseguras47, incluindo maior risco de meninos nao utilizarem preservativos em suas relaçoes sexuais48, maior número de parceiros sexuais e precocidade da primeira relaçao sexual, menor satisfaçao sexual e menor satisfaçao no relacionamento como um todo42.

As comorbidades mais frequentemente associadas com dependência de pornografia on-line sao: transtornos de humor, TOC, Síndrome de Tourette e outros transtornos associados à impulsividade, como jogo patológico e transtornos alimentares, além de transtorno de personalidade antissocial49.

Vinheta Clínica:

J., 45, masculino, casado, com dois filhos. Buscou atendimento em virtude de quadro de depressao, e obteve melhora bastante significativa com uso de fármaco antidepressivo. Seguiu em psicoterapia semanal para tratar questoes relacionadas ao casamento e dificuldades no trabalho. Após 1 ano de tratamento, falou que desde o final da adolescência se masturba 2-3 vezes ao dia, principalmente em momentos em que se reconhece mais ansioso. Esse padrao ficou mais intenso em funçao da disponibilidade de conteúdo sexual na internet, e tem buscado estímulos cada vez mais intensos para obter excitaçao. Percebe sua vida sexual como muito pouco satisfatória, e refere bastante medo de que a esposa ou os filhos descubram os vídeos que ele guarda no seu computador. Nega sintomas de abstinência, mas relata que só fica sem acesso à pornografia quanto está em viagem de férias com a família.


DEPENDENCIA DE SMARTPHONES

A primeira ligaçao realizada de um telefone "portátil" ocorreu em 1973, e esse aparelho tinha 23 cm de comprimento e pesava 1 kg50. Com o avanço tecnológico, foi possível reduzir as dimensoes de aparelhos de comunicaçao móvel ao ponto de serem facilmente transportados, e com funcionalidade cada vez mais abrangente. A aproximaçao das funçoes de computadores com o celular produziu o que hoje chamamos de smartphones. Atualmente, estima-se que o número de assinantes de telefonia móvel aproxime-se de 6 bilhoes em todo o mundo, e que mais de 1 bilhao de smartphones estejam em uso ao redor do mundo. Esses números sugerem que o celular provavelmente seja uma das mais importantes invençoes tecnológicas das últimas décadas51. Só na área da medicina sao diversos os estudos que demonstram benefícios dos smartphones como um coadjuvante em pesquisas e tratamento de dependentes químicos, pacientes com diabetes, asma, transtornos alimentares, transtornos de ansiedade, e também no monitoramento para perda de peso, reeducaçao alimentar e prática de atividade física52-55.

Sao tantos os benefícios e potencialidades de uso que muitos jovens e adultos de hoje nao podem imaginar uma existência sem smartphones. Eles sao vistos como fundamentais para manter relaçoes sociais e na conduçao das exigências da vida cotidiana. É muito comum que as pessoas vejam seus smartphones como parte integrante de quem eles sao, ou como uma importante extensao de si mesmos56. A possibilidade de se comunicar de diferentes formas em qualquer lugar e a qualquer momento também abre espaço para que o uso do smartphone interfira negativamente em nosso cotidiano.

Estudos demonstram que indivíduos que fazem uso excessivo de smartphones apresentam sintomas e prejuízos semelhantes aos encontrados em sujeitos com outros tipos de dependências, tanto químicas quanto comportamentais. Esse comportamento de dependência também é chamado de "nomofobia" (derivado da expressao em inglês "no mobile phobia"), e refere-se à ansiedade, ao desconforto ou mesmo à irritabilidade desencadeados em uma pessoa quando encontra-se longe de seu aparelho celular57. Os principais sintomas da nomofobia assemelham-se aos de outras dependências comportamentais, tais como abstinência, tolerância e saliência. Outro risco bastante significativo associado ao uso dos smartphones é o de envolvimento em acidentes, desde quedas até acidentes automobilísticos graves58.

Um recente estudo britânico com metodologia bastante criteriosa demonstrou uma prevalência estimada de usuários problemáticos de smartphones entre jovens ao redor de 10%59. De forma geral, os estudos mostram prevalências maiores entre mulheres e jovens60,61. O risco de dependência está associado também com algumas características específicas, como o uso intenso de redes sociais e o número de mensagens de texto enviadas62.

Pesquisas observam que indivíduos mais extrovertidos parecem estar mais propensos a terem problemas em decorrência do uso excessivo de smartphones do que indivíduos mais introvertidos. O risco de dependência está associado com altos níveis de tédio e com baixa autoestima63-66. Sentimentos de solidao, busca por aprovaçao e neuroticismo também se mostram como fatores de risco64-66. Ainda, o uso excessivo de smartphones pode estar relacionado com níveis elevados de ansiedade, depressao e alexitimia66.

Na avaliaçao desse transtorno podemos destacar dois questionários, o Mobile Phone Problem Use Scale (MPPUS) e o Problematic Cellular Phone Use Questionnaire (PCPU-Q). Entretanto, por se tratar de um fenômeno recente, ainda nao há consenso sobre os melhores critérios diagnósticos a serem utilizados.

Vinheta Clínica:

P., 14 anos, feminina, estudante. Iniciou atendimento pela preocupaçao dos seus pais pelo intenso uso que fazia do smartphone. Os pais perceberam que ela fingia que ia dormir e seguia utilizando muito o aparelho na madrugada. A principal atividade era o uso de redes sociais, principalmente Snapchat, Facebook, Twitter, Instagram. Jogava também alguns games, mas nao eram seu principal foco de interesse. P. quase nao convivia com a família e chegava repetidamente bastante atrasada na escola. Apesar de verbalizar que achava sua situaçao problemática, foi após quatro meses de tratamento que passou a abordar o assunto com um afeto de preocupaçao: "Eu acho que minha mae pode estar certa mesmo. Sabe que me dei conta que eu posto 40 fotos exatamente iguais no Snap por dia? É sempre a mesma coisa. E todo mundo passa a tarde toda se mandando bobagem, mas eu simplesmente nao consigo nao ver. Eu sei que nao vao mandar nada de tao importante, mas eu acho impossível nao abrir quando eu recebo alguma notificaçao".


DISCUSSAO

Os desenvolvimentos tecnológicos a partir do final do século XX modificaram nao só como as pessoas se comunicam, mas também como elas se relacionam com a própria tecnologia2. Atualmente a tecnologia faz parte de forma relevante da vida de grande parte das pessoas, e compreender os aspectos saudáveis e nocivos dessa relaçao faz parte do trabalho dos profissionais da saúde mental. Apesar de tratar-se de uma área relativamente nova e com inúmeras lacunas a serem preenchidas, o crescente número de pesquisas científicas sobre dependência de tecnologia já fornece informaçoes para capacitar o atendimento de indivíduos com esse transtorno.

Uma vez que as comorbidades mais frequentemente encontradas entre dependentes de jogos eletrônicos sao depressao, ansiedade social e transtorno de déficit de atençao/hiperatividade20,21 e que adolescentes do sexo masculino sao os mais afetados por esse subtipo de dependência de tecnologia18,22, faz-se necessário perguntarmos sobre o uso de jogos eletrônicos na avaliaçao psiquiátrica de todo adolescente. Jogar ou nao jogar pode revelar bastante sobre seus interesses e funcionamento, assim como informaçoes relativas aos jogos mais utilizados, o tempo que joga por dia e os sentimentos despertados tanto quando está jogando como quando nao pode jogar.

As meninas, por sua vez, utilizam principalmente as plataformas de redes sociais e apresentam maior risco para desenvolverem dependência desse subtipo de dependência de tecnologia67. O clínico pode investigar quais redes elas utilizam, de quanto em quanto tempo verificam atualizaçoes em seus perfis, como se sentem recebendo curtidas ou nao as recebendo. A questao das curtidas, por exemplo, pode revelar sobre como a pessoa lida com a frustraçao ou se está passando por um momento durante o qual apresenta uma maior necessidade de gratificaçao. O conteúdo postado nas redes também pode dar indícios do estado mental do indivíduo durante o momento da publicaçao. Além disso, pessoas com maior dificuldade no controle de uso das redes sociais apresentam também maior dificuldade no manejo das emoçoes e no controle de impulsos, além de maior tendência para desenvolver outras dependências32.

Em relaçao à pornografia on-line, dois pontos chamam muito a atençao. O primeiro é a associaçao entre a exposiçao a material sexual na internet e condutas sexuais de risco, principalmente entre adolescentes e adultos jovens47. Além disso, a exposiçao à pornografia também pode influenciar o modo como os jovens vao formar suas definiçoes de sexo, amor e relacionamentos. Nessa linha, adultos jovens têm significativamente menos chance de manterem relacionamentos estáveis quanto mais intenso for o seu consumo de pornografia on-line68.

O uso de smartphones apresenta uma particularidade em relaçao aos demais subtipos, que é a sua característica de poder estar sempre junto ao corpo e ao alcance da mao onde quer que o indivíduo esteja. Os smartphones hoje sao, de fato, os atuais computadores pessoais e sao, ainda, apenas o primeiro passo de uma nova série de dispositivos inteligentes "vestíveis" (do inglês wearables) que ainda vao se tornar amplamente disponíveis no mercado tecnológico. Essa característica dos smartphones pode parecer bastante atraente a algumas pessoas por proporcionar uma certa experiência de controle em relaçao a determinados sentimentos desagradáveis, como solidao, frustraçao e tédio.

Há outros pontos ainda pouco abordados na literatura, como o papel clínico dessa relaçao indivíduotecnologia dentro de um nível nao problemático. Considerando que a tecnologia é parte indispensável da vida de uma grande parte da populaçao, há de se avaliar essa relaçao mesmo em pessoas que nao possuem prejuízo significativo ou uma queixa sobre o assunto.

Mesmo que ainda nao tenhamos estudos evidenciando subgrupos por padrao de uso nao patológico, a gama de possibilidades de escolha existentes a partir do uso da tecnologia torna plausível a hipótese de que a relaçao com a mesma pode ser capaz de informar nao só sobre o comportamento cotidiano, mas também sobre estado psíquico, já que poderia servir como um grande campo no qual sao projetadas as necessidades e dificuldades do indivíduo. Dentro desse panorama, conhecer a maneira com que o paciente se relaciona com a tecnologia pode ser uma fonte complementar de informaçao a outras áreas que fazem parte de uma anamnese em saúde mental, como relaçoes interpessoais e vida afetiva.

Até o momento, o estudo sobre a interaçao entre o ser humano e a tecnologia ainda nao costuma fazer parte da formaçao básica dos profissionais que trabalham com saúde mental, o que pode dificultar a identificaçao e manejo de casos graves, bem como resultar na perda da oportunidade de abrir uma via de comunicaçao sobre esse importante aspecto da vida dos nossos pacientes.

Os transtornos relacionados com dependência de tecnologia atingem cerca de 6% da populaçao, e conhecer esse problema é fundamental para quem trabalha com saúde mental e especialmente com psicoterapia. Este trabalho abordou características conhecidas que podem auxiliar no atendimento dos pacientes com maior prejuízo e levantou a possibilidade de pensar a avaliaçao da relaçao do indivíduo com a tecnologia nao só a partir de uma linha diagnóstica categórica, mas também como uma fonte particular de informaçoes sobre a vida do paciente. Podemos entender esse exame clínico do uso das tecnologias como o contato com uma outra área da vida do indivíduo que, na medida em que estejamos preparados para entrar em contato, pode nos revelar importantes aspectos relativos ao seu mundo interno, independentemente de ele possuir ou nao um transtorno de dependência de tecnologia.


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1. Médico psiquiatra. Especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do HCPA. Mestre em Psiquiatria pela UFRGS. Pesquisador em Neuroimagem do TDAH do PRODAH-A. Vice-Coordenador do GEAT
2. Médico psiquiatra. Especialista em Psicoterapia de Orientaçao Analítica pelo CELG. Mestre e doutor em Psiquiatria pela UFRGS. Pesquisador do PRODAH-A. Membro do GEAT
3. Médico psiquiatra. Especialista em Psicoterapia de Orientaçao Analítica pelo CELG. Mestre em Psiquiatria pela UFRGS. Membro do GEAT
4. Psicóloga especialista em Psicoterapia de Orientaçao Analítica pelo CELG e em Psicoterapia de Infância e Adolescência pelo CEAPIA. Membro do GEAT
5. Médico psiquiatra. Membro do GEAT
6. Médico psiquiatra. Especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência do HCPA. Mestre em Psiquiatria pela UFRGS. Coordenador do GEAT

Instituiçao: Grupo de Estudos sobre Adiçoes Tecnológicas (GEAT)

Correspondência
Felipe Picon
Rua 24 de Outubro 850, sala 207
90510-000 Porto Alegre/ RS
felipepicon@gmail.com

Submetido em: 03/02/2015
Aceito em: 09/03/2015

 

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