Rev. bras. psicoter. 2015; 17(2):22-34
Seixas P. Senhores da própria vida: verdade ou ilusao?. Rev. bras. psicoter. 2015;17(2):22-34
Artigos Originais
Senhores da própria vida: verdade ou ilusao?*
Masters of our own lives: truth or illusion?*
Paulo Seixas
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
O tema dessa mesa-redonda remete, em última análise, à problemática da identidade e da liberdade do indivíduo inserido no contexto cultural. O quanto existiria de ilusao ao supormos que o "homem civilizado" seja, realmente, portador de uma identidade própria, livre no seu pensar e agir? O quanto existiria de verdade em considerá-lo um agente passivo, "objeto" manipulado por forças sociais impessoais e anônimas que constrangem, condicionam e destroem sua subjetividade?
Ao nos defrontarmos com o desafio das "novas culturas", amplia-se a questao: o indivíduo estaria mais fragilizado face a mecanismos cada vez mais intrusivos capazes de influenciar ou mesmo determinar suas escolhas e modos de pensar? Na sociedade atual, além do problema da violência, vemos, muitas vezes, a "triste" figura do indivíduo seduzido por inúmeros modelos e propagandas de toda ordem. O consumismo desenfreado, as referências puramente exteriores, as falsas necessidades engendradas pelas propagandas, a superficialidade dos vínculos, a psicopatologia do "falso" self sao evidências amplamente constatadas.
A questao levantada por Freud no início do século passado permanece atual - até que ponto podemos considerar-nos donos de nossa própria casa (p. 175)1, senhores de nossa própria vida? Além das potências do inconsciente, cabe referência às imensas e imponderáveis forças externas que a cada momento nos jogam em todas as direçoes sem que disso tenhamos consciência.
Seria possível falar de "pensamento próprio" como algo realmente próprio ou, cada vez mais, a entidade que chamamos de indivíduo corre o risco de ser transformada num fenômeno de superfície, uma forma sem conteúdo, exterioridade sem interioridade?
A reflexao é ampla e remete a consideraçoes diversas. Entre tantas contribuiçoes importantes destacaremos algumas que parecem mais pertinentes aos nossos objetivos. Freud permanece uma referência importante enquanto pensador da cultura e da sociedade, criando, inclusive, um espaço específico de reflexao conhecido como "psicanálise aplicada". Conforme assinala Mabilde:
Freud sentia-se muito à vontade para contribuir com a cultura [...] ele confiava em seus conhecimentos, adquiridos junto de seus pacientes, para aplicá-los em seara alheia de magnitude incomparavelmente maior. Baseado em que a ontologia é uma recapitulaçao da filogenia, sendo aplicável à vida mental, percorreu distintos campos culturais, ressaltando daí o correspondente psíquico [...]. (p. 179)2Em meados do século XX surgiu o conceito da "identificaçao adesiva", proposto por Esther Bick, que, embora pesquisado segundo uma perspectiva específica, pode ser considerado um marco referencial quando pensamos no indivíduo e seus vínculos relacionais e culturais.
quao ingrato, quao insensato, seria a aboliçao da civilizaçao! O que restaria seria um estado de natureza muito difícil de suportar pois a natureza nao exigiria qualquer restriçao dos instintos e deixar-nos-ia proceder como bem quiséssemos (p. 26)6.Na linha de raciocínio proposta por Hobbes e Freud, nao temos liberdade de falar de uma "dialética da evoluçao cultural", como sugere o título da mesa-redonda. Diante das forças imutáveis da natureza, Freud prefere falar de mecanismos adaptativos cujos resultados seriam sempre relativos e parciais, e isso justifica o título da obra Mal-Estar na Civilizaçao. Em uma das suas primeiras obras, de 1908, sobre o assunto, intitulada Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna (1908), afirma:
nossa civilizaçao repousa, falando de modo geral, sobre a supressao dos instintos. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma parcela do seu sentimento de onipotência ou ainda das inclinaçoes vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuiçoes resulta o acervo cultura comum de bens materiais e ideais (p. 193)7.Sem dúvida que a grande contribuiçao de Hobbes, e especialmente Freud, foi ter detectado a raiz selvagem e instintual que sempre precede a cultura e constitui o "ponto cego" das fragilidades sociais.
quanto ao real, é preciso dizer que a concepçao de Freud é muito falha. A concepçao de Freud do real é absolutamente insuficiente. Freud trata o real como se nao houvesse senao uma realidade externa regida pelas leis da física (p. 77)8.Ainda que traumático e limitante, o real é o solo do acolhimento, da sustentaçao, espaço de criatividade onde o homem constrói vínculos e, assim, refunda essa realidade, imprimindo sua marca, humanizando-a.
nao é a Analítica mas a Dialética que capta e compreende adequadamente as relaçoes intersubjetivas. Para a Analítica as relaçoes sociais sao apenas acidentes que ocorrem entre substâncias [...] na Dialética, ao contrário, o homem é um nó na grande rede de relaçoes sociais. Na Dialética o homem individual só é o que é enquanto elemento de um todo maior que é a rede de relaçoes sociais (p. 119)9.Assim, o modelo dialético coloca o aspecto relacional num importante registro epistemológico e podemos ter a liberdade de falar com precisao de uma "dialética da evoluçao cultural", conforme a proposta da mesa-redonda.
o sujeito nunca pode estar totalmente separado do objeto e, portanto, nunca pode estar totalmente centrado nele mesmo [...] a reflexividade dialética do sujeito e do objeto é um componente fundamental da concepçao psicanalítica sempre em expansao do 'eu' que experiência (a si mesmo) descentrado (p. 23)10.Pensar na condiçao da subjetividade enquanto "ser-no-mundo" em permanente intercâmbio com o meio ambiente, segundo uma dinâmica de projeçao/introjeçao, está embutido na própria essencialidade do conceito de subjetividade. Ainda segundo Ogden:
Arte, literatura, história, filosofia e psicanálise, nos ensinam, todas, apesar de nossos protestos, somos de fato falados, nao só pelo Outro histórico, mas pelo Outro inconsciente e pelo Outro intersubjetivo (p. 2)10.Se entendermos o indivíduo, de alguma forma, como constituído pelo outro, podemos afirmar que o sujeito é uma construçao do seu meio, ou seja, em alguma medida é constituído e formado pelo contexto. Nesse sentido podemos falar de uma subjetividade "exteriorizada" e, em alguma medida, "objetivada" pelo outro, pela cultura, e que pode ser resumida na afirmaçao de Pontalis ao definir o conceito de self como "um espaço aberto nas duas pontas, sobre o ambiente que o nutre inicialmente e que, em retorno, ele cria" (p. 98)11.
deveríamos distinguir desejos de apetites (instintos). Apetites envolvem coisa como comida e sexo, que nao estao necessariamente ligadas a desejos pois tem um fundamento biológico. Todo apetite, no entanto, pode ser contaminado pelo desejo mimético a partir do momento que existe um modelo - a presença do modelo é o elemento decisivo na definiçao do desejo mimético (p. 84)13.Essa afirmaçao visa enfatizar que, no caso do instinto, o objeto é absolutamente predeterminado, como, por exemplo, o alimento no caso da fome, mas a fome enquanto desejo é inespecífica, ou seja, aquilo que determina os gostos e escolhas transforma-se numa questao essencialmente cultural, criada pela exterioridade do grupo e da cultura.
o homem é uma criatura que perdeu parte de seu instinto animal para aceder àquilo que se chama de desejo. Uma vez satisfeitas as necessidades naturais os homens desejam intensamente, mas nao sabem exatamente o que, pois nenhum instinto o guia. Nao tem desejo próprio. O próprio do desejo é nao ser próprio (p. 32)17.Essa seria a característica da humanizaçao e é o vínculo mais primário de ligaçao entre homens, pois, se o desejo nao fosse mimético, nao existiria cultura, nem linguagem, nem sociedade, nem aprendizado: "se o desejo nao fosse mimético, nao seriamos abertos ao humano e [...] o desejo mimético faz-nos escapar à animalidade" (p. 33)17.
nao é necessário postular um instinto de morte ou violência. Em todos os desejos que observamos nao há somente um objeto e um sujeito, há um terceiro termo, o rival e [...] a rivalidade nao é o fruto da convergência acidental de dois desejos para o mesmo objeto. O sujeito deseja o objeto porque o próprio rival o deseja (p. 183-4)16.Na evoluçao do processo, a violência adquire autonomia, o objeto comum tende a ser esquecido e a própria rivalidade tornar-se um "investimento libidinoso". O mecanismo mimético abrange uma sequência fenomenológica ampla. Tal situaçao termina por provocar o que Girard chamou de "double bind" (duplo vínculo), onde a dupla fica cada vez mais envolvida nesse círculo que se retroalimenta, e o objeto do desejo enquanto tal tende a desaparecer, torna-se irrelevante e a rivalidade em si mesma adquire autonomia:
sua natureza mimética [do desejo] vai quase sempre arrastá-lo para o impasse do double bind e [...] há aqui um processo que se alimenta de si mesmo e que se exacerba e [...] a partir de entao, violência e desejo permanecem ligados (p. 187)16.Nao mais o objeto, mas o "prazer" da luta, ou seja, o próprio investimento libidinoso da competitividade e da rivalidade torna-se o objetivo final que mantém o circuito da violência.
rotulamos esse termo de "identificaçao adesiva" e quanto mais pensamos acerca dele, mais começamos a perceber que ele tem lugar na vida de muitos de nossos pacientes e nas nossas vidas [...] estamos começando a abrir uma nova área de fenomenologia, usando um novo instrumental teórico com o qual podemos extrair coisas e começar a ver os fenômenos que nós simplesmente nao tínhamos percebido antes. Obviamente onde levará, como enriquecerá nosso trabalho, eu nao posso dizer, porque ainda é um pouco cedo (p. 51-52)19.Esse comentário de Meltzer já parece suficiente para assinalar que a questao do "desejo mimético" ou da "imitaçao" associados à noçao de "identificaçao adesiva" promete uma linha de investigaçao promissora extensiva a outras áreas do conhecimento humano e que nao se restringe apenas ao universo específico da psicopatologia. Talvez Girard, por caminhos diversos de pesquisa e observaçao, esteja falando de um aspecto muito próximo daquele proposto por Esther Bick.
a funçao dos neurônios-espelho é ainda um tanto especulativa mas parece razoável supor, pelas suas características de disparo e pela sua presença justamente nas áreas de planejamento motor, que estejam envolvidos nos processos que empregam a imitaçao como recurso de aprendizagem motora e [...] bem recentemente os neurônios-espelho passaram a ser considerados essenciais para as funçoes cognitivas complexas (p. 451)20.Em tese, neurônio-espelho é um neurônio que dispara quando um animal observa outro animal (normalmente da mesma espécie). Dessa forma, o neurônio imita o comportamento de outro animal como se estivesse ele próprio a realizar essa açao. Esses neurônios já foram observados de forma direta em primatas. Nos humanos, pode ser observada atividade cerebral consistente com a presença de neurônios-espelho no córtex pré-motor e no lobo parietal inferior. Alguns cientistas consideram esse tipo de células uma das descobertas mais importantes da neurociência da última década, acreditando que possa ser de importância crucial na imitaçao e na aquisiçao da linguagem.
a reflexao que nao deixou de ter continuidade desde Freud e através de seus sucessores, pode permitir-nos pensar o psiquismo inteiro como uma gigantesca formaçao intermediária. Formaçao intermediária entre o quê? Formaçao intermediária no diálogo entre o corpo e o mundo (p. 51)8.A perspectiva da reciprocidade complementar, segundo o modelo relacional, permite valorizar e resgatar o solo da experiência. Nao tem sentido nessa perspectiva tentar caracterizar o indivíduo como sujeito e/ou objeto da cultura. Concluímos com uma observaçao do já citado Green: "penso que a soluçao é considerar tudo isso como um permanente movimento de vaivém, que ora parte de um lado, ora de outro [...] (p. 50)8.
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