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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2015; 17(2):22-34



Artigos Originais

Senhores da própria vida: verdade ou ilusao?*

Masters of our own lives: truth or illusion?*

Paulo Seixas

Resumo

Refletir sobre a problemática das relaçoes entre indivíduo e cultura envolve vários ângulos de abordagem. No texto que se segue procuraremos refletir o tema à luz de alguns marcos referenciais, como a obra de Freud intitulada O Mal-Estar na Civilizaçao (1930), cuja complexidade remete ao filósofo inglês Thomas Hobbes, no século XVII. Nos meados do século XX surgiu o conceito de "identificaçao adesiva" proposto pela psicanalista Esther Bick, que, embora pesquisado no ângulo específico da psicopatologia, permite uma ampla aplicaçao no contexto social e cultural. Na última década do século XX, a descoberta dos "neurônios-espelho" no âmbito das neurociências colocou em evidência a teoria do "desejo mimético", elaborada pelo antropólogo e filósofo francês René Girard, que, ao longo das últimas décadas, tem propiciado intensos diálogos com a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise.

Descritores: Cultura; Desejo; Subjetividade; Neurônio-espelho; Identificaçao adesiva; Mimetismo.

Abstract

The reflection about the problem of the relationship between the individual and the culture involves several angles of approach. The following text seeks to reflect the theme in the light of some benchmarks as Freud's work entitled The Civilization and its Discontents (1930) whose complexity refers to the English philosopher Thomas Hobbes in the seventeenth century. In the mid-twentieth century appears the concept of "adhesive identification" proposed by the psychoanalyst Esther Bick that, although researching the specific angle of psychopathology, allows a wide application in the social and cultural context. In the last decade of the twentieth century the discovery of the "mirror neurons" in the framework of neuro-science has highlighted the theory of "mimetic desire" drawn up by the French anthropologist and philosopher René Girard who, over the last decades, has fostered intense dialogues with Psychiatry, Psychology and Psychoanalysis.

Keywords: Culture. Desire. Subjectivity. Neuron-mirror. Adhesive identification. Mimesis.

 

 

INTRODUÇAO

O tema dessa mesa-redonda remete, em última análise, à problemática da identidade e da liberdade do indivíduo inserido no contexto cultural. O quanto existiria de ilusao ao supormos que o "homem civilizado" seja, realmente, portador de uma identidade própria, livre no seu pensar e agir? O quanto existiria de verdade em considerá-lo um agente passivo, "objeto" manipulado por forças sociais impessoais e anônimas que constrangem, condicionam e destroem sua subjetividade?

Ao nos defrontarmos com o desafio das "novas culturas", amplia-se a questao: o indivíduo estaria mais fragilizado face a mecanismos cada vez mais intrusivos capazes de influenciar ou mesmo determinar suas escolhas e modos de pensar? Na sociedade atual, além do problema da violência, vemos, muitas vezes, a "triste" figura do indivíduo seduzido por inúmeros modelos e propagandas de toda ordem. O consumismo desenfreado, as referências puramente exteriores, as falsas necessidades engendradas pelas propagandas, a superficialidade dos vínculos, a psicopatologia do "falso" self sao evidências amplamente constatadas.

A questao levantada por Freud no início do século passado permanece atual - até que ponto podemos considerar-nos donos de nossa própria casa (p. 175)1, senhores de nossa própria vida? Além das potências do inconsciente, cabe referência às imensas e imponderáveis forças externas que a cada momento nos jogam em todas as direçoes sem que disso tenhamos consciência.

Seria possível falar de "pensamento próprio" como algo realmente próprio ou, cada vez mais, a entidade que chamamos de indivíduo corre o risco de ser transformada num fenômeno de superfície, uma forma sem conteúdo, exterioridade sem interioridade?

A reflexao é ampla e remete a consideraçoes diversas. Entre tantas contribuiçoes importantes destacaremos algumas que parecem mais pertinentes aos nossos objetivos. Freud permanece uma referência importante enquanto pensador da cultura e da sociedade, criando, inclusive, um espaço específico de reflexao conhecido como "psicanálise aplicada". Conforme assinala Mabilde:

Freud sentia-se muito à vontade para contribuir com a cultura [...] ele confiava em seus conhecimentos, adquiridos junto de seus pacientes, para aplicá-los em seara alheia de magnitude incomparavelmente maior. Baseado em que a ontologia é uma recapitulaçao da filogenia, sendo aplicável à vida mental, percorreu distintos campos culturais, ressaltando daí o correspondente psíquico [...]. (p. 179)2
Em meados do século XX surgiu o conceito da "identificaçao adesiva", proposto por Esther Bick, que, embora pesquisado segundo uma perspectiva específica, pode ser considerado um marco referencial quando pensamos no indivíduo e seus vínculos relacionais e culturais.

As neurociências trouxeram um aporte significativo através dos chamados "neurônios-espelhos" identificados na última década do século XX. Essa contribuiçao da Biologia permitiu aprofundar um debate que, desde algumas décadas, vinha se desenvolvendo em torno da tese do "desejo mimético", criada pelo antropólogo e filósofo francês René Girard (1923-). A guisa de justificativa, importa salientar que Girard tem sido um destacado interlocutor com a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise no tocante à interface entre o indivíduo, a sociedade e a cultura.


O INDIVIDUO E A CULTURA: POLARIDADE CONFLITANTE

"O ser humano só pode viver seu ingresso na cultura de um modo conflitual." (p. 165)3

A problemática do indivíduo enquanto subjetividade desejante e suas relaçoes com as culturas, por ele mesmo criadas, é um assunto recorrente na história do pensamento humano.

De alguma forma e segundo muitas abordagens, todas as geraçoes de pensadores se debruçaram sobre a questao. Para nossos propósitos, lembraria o nome de Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVII que apresenta uma significativa afinidade com o ponto de vista freudiano.

Hobbes afirmava que o indivíduo, para sobreviver enquanto grupo e segundo seu desejo fundamental de preservar a própria vida, tem que impor autorrestriçoes à própria subjetividade e, de certa forma, tornar-se "objeto" do Estado, submetido às regras do Soberano. A alegaçao hobbesiana afirma que, se os homens nao fossem regrados do ponto de vista de suas tendências egoístas e essencialmente antissociais, que ele chamou de "estado de natureza", o resultado seria "a guerra de todos contra todos", incompatível com a sobrevivência da própria espécie. Afirma Hobbes: "os apetites dos homens e as paixoes de suas mentes sao tais que, a menos que se os restrinja por meio de algum poder, eles estarao sempre fazendo guerra uns aos outros" 4.

Homo homini lúpus (o homem é lobo do homem) é um antigo adágio grego que Hobbes faz questao de relembrar tentando justificar a necessidade da autoridade estatal capaz de controlar os interesses individuais e manter o equilíbrio social. O que podemos resumir desta argumentaçao seria que, tendo em vista a própria sobrevivência, a comunidade humana necessita impor restriçoes e os indivíduos devem submeter-se diante do poder regrador do Estado.

Freud nao está muito longe desses pressupostos, e com muita precisao Peter Gay afirma: "Hobbes teria sido, decididamente, o mais coerente dos seus [referindo-se a Freud] antecessores intelectuais" (p. 128)5.

Cabe relembrar que Freud reforça as teses hobbesianas com a postulaçao da "pulsao de morte" e a necessária restriçao sobre as forças instintuais. Afirma Freud:
quao ingrato, quao insensato, seria a aboliçao da civilizaçao! O que restaria seria um estado de natureza muito difícil de suportar pois a natureza nao exigiria qualquer restriçao dos instintos e deixar-nos-ia proceder como bem quiséssemos (p. 26)6.
Na linha de raciocínio proposta por Hobbes e Freud, nao temos liberdade de falar de uma "dialética da evoluçao cultural", como sugere o título da mesa-redonda. Diante das forças imutáveis da natureza, Freud prefere falar de mecanismos adaptativos cujos resultados seriam sempre relativos e parciais, e isso justifica o título da obra Mal-Estar na Civilizaçao. Em uma das suas primeiras obras, de 1908, sobre o assunto, intitulada Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna (1908), afirma:
nossa civilizaçao repousa, falando de modo geral, sobre a supressao dos instintos. Cada indivíduo renuncia a uma parte dos seus atributos: a uma parcela do seu sentimento de onipotência ou ainda das inclinaçoes vingativas ou agressivas de sua personalidade. Dessas contribuiçoes resulta o acervo cultura comum de bens materiais e ideais (p. 193)7.
Sem dúvida que a grande contribuiçao de Hobbes, e especialmente Freud, foi ter detectado a raiz selvagem e instintual que sempre precede a cultura e constitui o "ponto cego" das fragilidades sociais.


O INDIVIDUO E A CULTURA: RECIPROCIDADE COMPLEMENTAR

Com a teoria das relaçoes objetais tendo como principal referência Melanie Klein, o conceito de sujeito torna-se menos centralizado no si mesmo, conforme teorizado por Freud. Surge o objeto na sua alteridade como força estruturante da subjetividade. Os vínculos, a sociabilidade e a realidade adquirem outro estatuto epistemológico. Impoe-se outro olhar sobre o conceito do real, ou do "princípio da realidade", enquanto espaço antagônico e gerador de "mal-estar", como afirmou Freud. André Green enfatiza:
quanto ao real, é preciso dizer que a concepçao de Freud é muito falha. A concepçao de Freud do real é absolutamente insuficiente. Freud trata o real como se nao houvesse senao uma realidade externa regida pelas leis da física (p. 77)8.
Ainda que traumático e limitante, o real é o solo do acolhimento, da sustentaçao, espaço de criatividade onde o homem constrói vínculos e, assim, refunda essa realidade, imprimindo sua marca, humanizando-a.

No modelo relacional, o pensar dialético é retomado em contraposiçao ao modelo predominantemente analítico que norteou o pensamento de Freud. Nao seria com a inteligência analítica, mas com a inteligência dialética que se poderia pensar as relaçoes intersubjetivas e a vinculaçao do sujeito com a cultura e a sociedade. Como afirma o filósofo Cirne-Lima:
nao é a Analítica mas a Dialética que capta e compreende adequadamente as relaçoes intersubjetivas. Para a Analítica as relaçoes sociais sao apenas acidentes que ocorrem entre substâncias [...] na Dialética, ao contrário, o homem é um nó na grande rede de relaçoes sociais. Na Dialética o homem individual só é o que é enquanto elemento de um todo maior que é a rede de relaçoes sociais (p. 119)9.
Assim, o modelo dialético coloca o aspecto relacional num importante registro epistemológico e podemos ter a liberdade de falar com precisao de uma "dialética da evoluçao cultural", conforme a proposta da mesa-redonda.

Ao situar a relaçao sujeito-objeto nesse outro registro de compreensao, altera-se a própria noçao de conflito, deslocando o foco principal entre princípio do prazer e princípio da realidade para a capacidade ou incapacidade de o indivíduo estabelecer vínculos relacionais. No referencial intersubjetivo nao se eliminam os polos sujeito-objeto, indivíduo-cultura, mas o grande diferencial seria que a oposiçao nao é entendida como contraditória ou inconciliável, mas, ao contrário, o sujeito, para se constituir como tal, tem que superar etapas psicológicas que tornam essa composiçao contraditória, e a alteridade participa ativamente do processo de construçao da identidade e subjetividade.

Em resumo, o conceito de subjetividade fechada e determinada a priori tornou-se um conceito fraco e, reconhecidamente, "solipsista". Segundo Green, "embora admirando sua bela construçao, somos levados a pensar que a concepçao de Freud pode incidir na crítica de ser uma concepçao um tanto solipsista" (p. 68)8.

Enfatizando esse aspecto, podemos falar numa "descentralizaçao" do si mesmo na pretensa autonomia de sua subjetividade, conforme afirma Thomas Ogden:
o sujeito nunca pode estar totalmente separado do objeto e, portanto, nunca pode estar totalmente centrado nele mesmo [...] a reflexividade dialética do sujeito e do objeto é um componente fundamental da concepçao psicanalítica sempre em expansao do 'eu' que experiência (a si mesmo) descentrado (p. 23)10.
Pensar na condiçao da subjetividade enquanto "ser-no-mundo" em permanente intercâmbio com o meio ambiente, segundo uma dinâmica de projeçao/introjeçao, está embutido na própria essencialidade do conceito de subjetividade. Ainda segundo Ogden:
Arte, literatura, história, filosofia e psicanálise, nos ensinam, todas, apesar de nossos protestos, somos de fato falados, nao só pelo Outro histórico, mas pelo Outro inconsciente e pelo Outro intersubjetivo (p. 2)10.
Se entendermos o indivíduo, de alguma forma, como constituído pelo outro, podemos afirmar que o sujeito é uma construçao do seu meio, ou seja, em alguma medida é constituído e formado pelo contexto. Nesse sentido podemos falar de uma subjetividade "exteriorizada" e, em alguma medida, "objetivada" pelo outro, pela cultura, e que pode ser resumida na afirmaçao de Pontalis ao definir o conceito de self como "um espaço aberto nas duas pontas, sobre o ambiente que o nutre inicialmente e que, em retorno, ele cria" (p. 98)11.

Assim entendida, talvez a colocaçao do indivíduo enquanto sujeito e/ou objeto da cultura tenha que ser representada como uma via de duas maos, condiçoes nao excludentes.

Afetar e ser afetado se encontram numa rede de relaçoes, e isso constitui um fato primário da experiência que sempre pressupoe um sujeito que é afetado tanto pelo objeto da experiência quanto pelo meio ambiente. Nao há necessidade de relembrar que tal fenômeno foi amplamente reconhecido por Charles Darwin: meio ambiente e organismo interagem e, por extensao, o complexo sujeito-objeto é o padrao fundamental da experiência humana.

Resumindo, a grande contribuiçao do modelo das "relaçoes objetais" em contraposiçao ao modelo "estrutural-pulsional" foi o reconhecimento de que o desejo está desde o início em situaçao intersubjetiva.


SUJEITO, CULTURA E DESEJO: A CONTRIBUIÇAO DE RENÉ GIRARD (1923)

Falar de indivíduo e cultura é falar da dinâmica intersubjetiva com os desejos e paixoes que aí operam e agem. Se considerarmos que a relaçao sujeito-objeto, eu-outro, indivíduo-cultura nao é apenas fruto da necessidade (ananké), mas um fator constitutivo da própria subjetividade, podemos concluir que a construçao de vínculos está em sintonia com a própria natureza desejante do homem. O homem constrói vínculos e ligaçoes porque isso lhe é próprio, esse é seu desejo e isso caracteriza, por excelência, sua humanidade. Aristóteles, o grande filósofo grego da Antiguidade, inicia sua obra clássica intitulada Metafísica com a afirmaçao: "Todos os homens desejam por natureza saber" (p. 3)12. Sem o impulso desejante nao haveria o grande questionamento intelectual; o desejo é o móvel da racionalidade.

Aproveitando este espaço de reflexao interdisciplinar, seria oportuno situar o antropólogo e filósofo francês René Girard (1923-) e suas contribuiçoes sobre a relaçao entre sujeito, cultura e desejos, incluindo importantes subsídios para a compreensao da violência através da tese central do "desejo mimético", que, sucintamente, procuraremos desenvolver ao longo deste item.

Girard desenvolveu teorias que podem servir de contraponto aos referenciais clássicos da teoria psicanalítica que nos sao mais familiares. Importa salientar sua intensa participaçao em debates com a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise acontecidos ao longo das últimas décadas.

Na tentativa de construir "pontes" interdisciplinares, podemos aproximar o pensamento girardiano com a noçao de "funçao objetalizante" proposta por André Green8. De acordo com Green, a própria motivaçao ou a disposiçao em estabelecer vínculos torna-se ela própria um objeto do desejo: "o próprio investimento pode torna-se objeto libidinal" (p. 73)8, ou seja, é o próprio investimento, ou melhor, a libido enquanto investimento, que vai construir o objeto e fazê-lo existir.

Podemos imaginar um diálogo entre estes dois protagonistas, Girard e Green, acerca desse "investimento libidinoso": Qual a sua constituiçao? O que existiria de próprio e desejante nesse "investimento" ? Ou, como se expressa o próprio Girard: "O que vem a ser o desejo? Eis a verdadeira questao" (p. 84)13.

Ao lado dos vários ângulos e perspectivas em que essa questao tem sido examinada, cabendo especial referência aos pensadores vinculados à psicanálise desde Freud, gostaríamos de introduzir o ponto de vista de René Girard com o simples propósito de enriquecer o debate e fornecer outro viés de reflexao.

Em oposiçao às majoritárias correntes de pensamento que prevalecem nas ciências humanas e na psicologia de modo geral, Girard questiona a "positividade" do desejo. O desejo, segundo ele, é um conceito vazio e sem consistência; nao é algo próprio e nao existe per se, e, nesse sentido, estabelece uma demarcaçao entre desejo e instinto. Instinto, ao contrário do desejo, é algo bem determinado e tem um objeto bem específico, e essa distinçao, em alguma medida, nos remete a Freud ao conceder estatutos diferenciados entre pulsao e instinto (trieb e instinkt). Girard nao nega (muito pelo contrário!) o sujeito enquanto um ser portador de interesses e "intencionalidades", mas essa intencionalidade nao é determinada, como acontece com o instinto, ou seja, o desejo nao é algo que o indivíduo traga perfeitamente estabelecido dentro do si mesmo, e isso, de alguma forma, também nos remete a Freud quando afirmou o caráter indeterminado das pulsoes "magníficas na sua imprecisao" (p. 119)14.

Por outro lado, Girard também nega o conceito de objeto enquanto elemento capaz, por si mesmo, de atrair ou desencadear o desejo do indivíduo. Ao negar positividade tanto à subjetividade quanto à objetividade, Girard enfatiza a presença de um "terceiro" determinante - o modelo: "a presença do modelo é o elemento decisivo na definiçao do desejo" (p. 84)13, e por isto haverá de caracterizar o desejo como desejo mimético. Segundo Girard, julga-se que o desejo possa ser objetivo ou subjetivo, isto é, deseja-se o objeto por características específicas desse objeto ou por determinismos pessoais, estritamente apriorísticos, como acontece com os instintos. Girard considera enganoso tal consideraçao: "nao desejamos linearmente, numa relaçao direta entre sujeito e objeto, mas segundo o desejo do outro, dentro de uma configuraçao triangular" (p. 40)15.

A questao do "modelo" a ser imitado é fundamental, e por isso Girard haverá de equacionar desejo e mimetismo: "o desejo é essencialmente mimético, ele imita exatamente um desejo modelo: ele elege o mesmo objeto que este modelo" (p. 184)16, e como a subjetividade é essencialmente desejante, "nao há um verdadeiro sujeito fora do mimetismo" (p. 93)17.

Girard reconhece que Freud teve uma forte intuiçao do caráter mimético do desejo e basta lembrar sua teoria sobre a origem do superego, conforme aparece em O Ego e o Id: "o superego surge como sabemos, de uma identificaçao com o pai tomado como modelo" (p. 71)18, mas, assinala Girard, a tendência freudiana prevaleceu no sentido de afirmar a objetividade do desejo (algo em si mesmo), e afirma: "A concepçao mimética nunca está ausente em Freud, mas tampouco consegue triunfar"; e ressalta: "a insistência freudiana tende a favor de um desejo rigidamente objetal" (p. 212)16.

Segundo Girard, o conceito de indivíduo como um eu constituído segundo determinaçoes a priori, como pensou Freud, é em parte ilusório, pois sempre tem como parâmetro o outro, ou seja, ser como o outro e desejar o que o outro deseja.

Ora, segundo Girard, isso tem implicaçoes profundas tanto no plano individual como no plano coletivo e social. Esse seria o alicerce da sociedade, o elemento de "ligaçao" entre os indivíduos, responsável tanto pelo que existe de melhor quanto pelo que existe de pior.

Visando tornar mais clara a questao, importa insistir no contraponto entre desejo e instinto, pois, embora conceitualmente distintos, há importantes afinidades entre ambos os conceitos. Afirma Girard:
deveríamos distinguir desejos de apetites (instintos). Apetites envolvem coisa como comida e sexo, que nao estao necessariamente ligadas a desejos pois tem um fundamento biológico. Todo apetite, no entanto, pode ser contaminado pelo desejo mimético a partir do momento que existe um modelo - a presença do modelo é o elemento decisivo na definiçao do desejo mimético (p. 84)13.
Essa afirmaçao visa enfatizar que, no caso do instinto, o objeto é absolutamente predeterminado, como, por exemplo, o alimento no caso da fome, mas a fome enquanto desejo é inespecífica, ou seja, aquilo que determina os gostos e escolhas transforma-se numa questao essencialmente cultural, criada pela exterioridade do grupo e da cultura.

O argumento etiológico para justificar o desejo mimético seria o fato de que o homem é uma criatura que na linha evolutiva perdeu o puro instinto, ou seja, o instinto puro ficou muito inespecífico e resultou numa espécie de ânsia vazia (lembremos que Freud já falou na indeterminaçao e na grande flexibilidade das pulsoes, conforme lembrado anteriormente), e o sujeito, nessa valência vazia, procura referências objetais, procura modelos e torna-se um ser propenso à imitaçao ou à mimese, desde suas primeiras reaçoes como bebê:
o homem é uma criatura que perdeu parte de seu instinto animal para aceder àquilo que se chama de desejo. Uma vez satisfeitas as necessidades naturais os homens desejam intensamente, mas nao sabem exatamente o que, pois nenhum instinto o guia. Nao tem desejo próprio. O próprio do desejo é nao ser próprio (p. 32)17.
Essa seria a característica da humanizaçao e é o vínculo mais primário de ligaçao entre homens, pois, se o desejo nao fosse mimético, nao existiria cultura, nem linguagem, nem sociedade, nem aprendizado: "se o desejo nao fosse mimético, nao seriamos abertos ao humano e [...] o desejo mimético faz-nos escapar à animalidade" (p. 33)17.

O outro lado da moeda seria que o desejo mimético é também o grande responsável pelas rivalidades e pela violência individual e coletiva. Se por um lado o desejo mimético é natural e bom, por outro lado é a principal fonte de violência entre os homens, o que Girard classifica como sendo a rivalidade mimética. Na sua dimensao mais problemática, o mimetismo do desejo torna os homens competitivos e rivais, e aí estaria o núcleo da violência e da agressividade de uns com os outros.

Com essas questoes, Girard visa penetrar no núcleo ambivalente das relaçoes miméticas, que nao apenas funda estruturas e relaçoes como também desencadeia rivalidades e violências. O "investimento mimético" promove ligaçoes e promove rupturas. Nesse nível de cogitaçao, o autor afasta explicitamente qualquer teoria de uma agressividade inata ou pulsao agressiva:
nao é necessário postular um instinto de morte ou violência. Em todos os desejos que observamos nao há somente um objeto e um sujeito, há um terceiro termo, o rival e [...] a rivalidade nao é o fruto da convergência acidental de dois desejos para o mesmo objeto. O sujeito deseja o objeto porque o próprio rival o deseja (p. 183-4)16.
Na evoluçao do processo, a violência adquire autonomia, o objeto comum tende a ser esquecido e a própria rivalidade tornar-se um "investimento libidinoso". O mecanismo mimético abrange uma sequência fenomenológica ampla. Tal situaçao termina por provocar o que Girard chamou de "double bind" (duplo vínculo), onde a dupla fica cada vez mais envolvida nesse círculo que se retroalimenta, e o objeto do desejo enquanto tal tende a desaparecer, torna-se irrelevante e a rivalidade em si mesma adquire autonomia:
sua natureza mimética [do desejo] vai quase sempre arrastá-lo para o impasse do double bind e [...] há aqui um processo que se alimenta de si mesmo e que se exacerba e [...] a partir de entao, violência e desejo permanecem ligados (p. 187)16.
Nao mais o objeto, mas o "prazer" da luta, ou seja, o próprio investimento libidinoso da competitividade e da rivalidade torna-se o objetivo final que mantém o circuito da violência.


A "IDENTIFICAÇAO ADESIVA" E OS "NEURONIOS-ESPELHO"

Na década de 1960, o fenômeno da "imitaçao" vinculado a uma forma patológica de introjeçao começou a ser trabalhado por autores como Esther Bick. Afirma Meltzer que a Dra. Bick tinha a vaga sensaçao de que algo nao andava bem com os processos de identificaçao de alguns pacientes, que, "de alguma maneira, nao usavam muito bem a introjeçao, que nao aprendiam de uma maneira experimental a partir de experiências reais, senao que o faziam meramente imitando outras pessoas" (p. 40-52)19.

Claro que o interesse dessa pesquisadora visava entender o fenômeno da imitaçao ligado à superficialidade dos vínculos do ponto de vista da psicopatologia, mas, de qualquer forma, abre o campo para investigar a questao em termos mais amplos, aplicando-o às relaçoes sociais e, principalmente, aos vínculos culturais.

Meltzer termina um artigo intitulado "Identificaçao Adesiva" com as seguintes observaçoes:
rotulamos esse termo de "identificaçao adesiva" e quanto mais pensamos acerca dele, mais começamos a perceber que ele tem lugar na vida de muitos de nossos pacientes e nas nossas vidas [...] estamos começando a abrir uma nova área de fenomenologia, usando um novo instrumental teórico com o qual podemos extrair coisas e começar a ver os fenômenos que nós simplesmente nao tínhamos percebido antes. Obviamente onde levará, como enriquecerá nosso trabalho, eu nao posso dizer, porque ainda é um pouco cedo (p. 51-52)19.
Esse comentário de Meltzer já parece suficiente para assinalar que a questao do "desejo mimético" ou da "imitaçao" associados à noçao de "identificaçao adesiva" promete uma linha de investigaçao promissora extensiva a outras áreas do conhecimento humano e que nao se restringe apenas ao universo específico da psicopatologia. Talvez Girard, por caminhos diversos de pesquisa e observaçao, esteja falando de um aspecto muito próximo daquele proposto por Esther Bick.

Por outro lado, pesquisas recentes na área da neurofisiologia apontam para a descoberta de um grupo específico de neurônios denominados de neurônios-espelho. No final da década de 1990, um grupo de neurofisiologistas liderado por Giacomo Rizzolatti fez uma descoberta de impacto na fisiologia motora que repercutiu intensamente no campo da cogniçao, que seriam os neurônios-espelho. Segundo Lent:
a funçao dos neurônios-espelho é ainda um tanto especulativa mas parece razoável supor, pelas suas características de disparo e pela sua presença justamente nas áreas de planejamento motor, que estejam envolvidos nos processos que empregam a imitaçao como recurso de aprendizagem motora e [...] bem recentemente os neurônios-espelho passaram a ser considerados essenciais para as funçoes cognitivas complexas (p. 451)20.
Em tese, neurônio-espelho é um neurônio que dispara quando um animal observa outro animal (normalmente da mesma espécie). Dessa forma, o neurônio imita o comportamento de outro animal como se estivesse ele próprio a realizar essa açao. Esses neurônios já foram observados de forma direta em primatas. Nos humanos, pode ser observada atividade cerebral consistente com a presença de neurônios-espelho no córtex pré-motor e no lobo parietal inferior. Alguns cientistas consideram esse tipo de células uma das descobertas mais importantes da neurociência da última década, acreditando que possa ser de importância crucial na imitaçao e na aquisiçao da linguagem.


CONCLUSAO: SENHORES DA PROPRIA VIDA, VERDADE OU ILUSAO?

Indivíduo e cultura - polaridades conflitantes ou reciprocidade complementar? Talvez a dicotomia seja apenas aparente, pois, como assinalou Green:
a reflexao que nao deixou de ter continuidade desde Freud e através de seus sucessores, pode permitir-nos pensar o psiquismo inteiro como uma gigantesca formaçao intermediária. Formaçao intermediária entre o quê? Formaçao intermediária no diálogo entre o corpo e o mundo (p. 51)8.
A perspectiva da reciprocidade complementar, segundo o modelo relacional, permite valorizar e resgatar o solo da experiência. Nao tem sentido nessa perspectiva tentar caracterizar o indivíduo como sujeito e/ou objeto da cultura. Concluímos com uma observaçao do já citado Green: "penso que a soluçao é considerar tudo isso como um permanente movimento de vaivém, que ora parte de um lado, ora de outro [...] (p. 50)8.

A complexidade do tema fica evidente através dos diversos enfoques referidos, e isso evidencia que diferentes modelos teóricos sao necessários para uma compreensao mais abrangente do problema.

Tornou-se lugar comum identificar os novos tempos como a cultura do narcisismo e da busca ilimitada do "gozo" incentivada pela proliferaçao de modelos que disputam espaço na mídia. A cultura do "descartável" desestabiliza os vínculos sempre com novas e idealizadas propostas.

Senhores da própria vida: verdade ou ilusao?

Apesar da densidade dramática desse questionamento, ao menos do ponto de vista de Freud, o ceticismo e o niilismo nao parecem constituir-se um destino inexorável. Afinal, a ilusao pode ser reconhecida, os "determinismos" podem ser enfrentados, ou seja, "onde estava o Id deve advir o Ego" (p. 102)21.


REFERENCES

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Médico psiquiatra. Mestre em Filosofia (UFRGS). Professor do Curso de Especializaçao em Psicoterapia Psicanalítica (Celg-UFRGS)

Correspondência
Paulo H.G. de Seixas
Av. Taquara, 596, sala 405
90460-210 Porto Alegre/RS
phgseixas@terra.com.br

* Contribuiçao à mesa-redonda Dialética da evoluçao cultural: o indivíduo como sujeito e/ou objeto das (novas) culturas, na XXVII Jornada Sul-Rio-Grandense de Psiquiatria Dinâmica, 2014.

 

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