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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2015; 17(2):11-21



Artigos Originais

Sobre os "tratamentos à distância" em psicoterapia de orientaçao analítica*

On 'treatments at a distance' in psychoanalytic psychotherapy"

Antonio Carlos J. Pires

Resumo

O autor apresenta, de forma sucinta, uma revisao bibliográfica sobre os assim chamados "tratamentos psicoterápicos e analíticos à distância": por telefone, via Skype ou e-mails. Fica claro o fato de nao existirem artigos com corpo teórico consistente para dar suporte científico a essa variante técnica; tampouco parece haver evidências clínicas convincentes de que essa inovaçao possa funcionar em molde semelhante ao do método standard. O autor conclui afirmando que novas pesquisas precisam ser feitas nessa área, sempre incluindo material clínico com sessoes dialogadas, para que se possa ter uma avaliaçao mais apurada dessa novidade técnica.

Descritores: 'tratamentos à distância' em psicoterapia de orientaçao analítica e psicanálise, por telefone, via Skype ou e-mails.

Abstract

The author presents, briefly, a bibliographical revision on the so-called "psychotherapeutic and analytical treatments at a distance" over the telephone, via Skype or e-mails. Clearly the fact is that there are no articles with a consistent theoretical body to give scientific support to this technical variant; nor does there seem to be convincing clinical evidence that this innovation can function in a similar mold to that of the standard method. The author concludes stating that further research needs to be done in this area, always including clinical material with dialogued sessions, in order to have a more accurate assessment of this technical novelty.

Keywords: 'treatments at a distance' in psychoanalytical psychotherapy and psychoanalysis, over the telephone, via Skype or e-mails.

 

 

INTRODUÇAO

Em relaçao às inovaçoes na técnica psicoterápica, um dos temas que vem chamando a atençao dos psicoterapeutas contemporâneos é o dos assim chamados "tratamentos à distância", que incluem sessoes por telefone, via Skype ou através de e-mails. Sao variantes das sessoes standard que, aos poucos, estao sendo cada vez mais utilizadas, pelo menos entre nossos colegas norte-americanos. No entanto, através de uma revisao da literatura sobre essa matéria (utilizando as bases de dados LILACS, PEP Archive e Psyc INFO), é possível constatar que muito pouco se escreveu sobre esse polêmico assunto. Em funçao disso, a pesquisa bibliográfica que dá suporte ao presente trabalho inclui tanto artigos relacionados a tratamentos analíticos quanto psicoterápicos de orientaçao analítica feitos à distância.

Na busca de textos relacionados ao referido tópico, foram examinados de modo mais detalhado apenas aqueles artigos cujo resumo parecesse promissor, ou seja, foram revisados somente aquelas publicaçoes que, em princípio, pudessem contribuir mais efetivamente com a matéria em estudo (ver, adiante, comentários sobre o trabalho de Haddouk e cols.). Com base nos textos acessados, foram feitas, entao, algumas reflexoes sobre a validade dessas inovaçoes técnicas.


OS ASSIM CHAMADOS "TRATAMENTOS A DISTANCIA"

O primeiro relato de caso de análise por telefone foi feito em 1951 por L. J. Saul1. Naquela oportunidade, esse autor observou que pacientes com traumas severos na infância apresentavam uma regressao transferencial tao intensa que o processo analítico ficava impedido de ir adiante. Ele afirma ter constatado que, através da análise por telefone, esse tipo de transferência parecia se diluir, propiciando ao processo analítico seguir adiante. Infelizmente, em seu artigo, Saul nao chega a apresentar material clínico suficiente para corroborar seu achado.

Há, entao, um hiato de cinquenta anos nas publicaçoes nessa área, até o surgimento de um Painel da New York Freudian Society resumido por Arlene Kramer Richards2, em 2001. Esse painel, intitulado Cura pela palavra no século 21: psicanálise por telefone, pretendia responder a três questoes: O tratamento psicanalítico por telefone pode ser considerado uma prática standard? Esse tipo de terapia tem valor? Em que situaçoes ela é efetiva? Para responder a essas perguntas foi montada uma pesquisa, além do já referido painel, do qual participaram três terapeutas norte-americanos.

Arlene Kramer Richards e Franklin Goldberg (apud Richards) foram os responsáveis pela investigaçao feita com 120 membros da Associaçao Americana de Psicologia. Destes 120 que se propuseram a responder a um questionário, 74% deles admitiram conduzir, atualmente, psicoterapia por telefone. Já 83% dos entrevistados disseram ter feito esse tipo de tratamento à distância, até dois anos antes de esse estudo ser realizado. Aqueles que praticavam psicoterapia por telefone afirmaram que faziam isso com apenas alguns de seus pacientes (número nao especificado).

Entre os terapeutas que usavam o telefone, 58% deles intercalavam, com frequência, as sessoes por telefone com sessoes face a face, sendo que 35% deles só costumavam alternar o tipo de sessao algumas vezes (número nao explicitado). Somente 3% desses terapeutas afirmaram jamais fazer esse tipo de alternância.

Mais de 84% dos entrevistados disseram que as sessoes por telefone eram usualmente produtivas, e 98% deles achavam que esse tipo de psicoterapia era produtivo pelo menos em algum momento do tratamento.

Dentre aqueles profissionais que nunca tinham realizado psicoterapia por telefone, 50% deles afirmaram que poderiam usar esse tipo de tratamento à distância, em funçao de afastamento geográfico da dupla paciente/terapeuta, ou por alguma outra situaçao que impedisse as sessoes face a face. De outra parte, 86% dos entrevistados disseram-se dispostos a fazer uso do telefone, quando esta fosse a única alternativa para evitar a interrupçao da psicoterapia.

A partir desses dados, Richards e Goldberg (apud Richards) chegaram à conclusao de que, sim, a psicoterapia por telefone é uma prática standard, sempre que indicada a partir de uma circunstância externa (afastamento geográfico, p. ex.).

Frente aos resultados dessa pesquisa, parece ser possível constatar que, pelo menos nos últimos três anos, a psicoterapia de orientaçao analítica por telefone, indicada em casos de afastamento geográfico da dupla paciente/terapeuta, tem sido uma prática frequente entre nossos colegas nova-iorquinos. No entanto, essa investigaçao deixa em aberto uma questao. A maioria dos entrevistados (84%) disse que as sessoes por telefone eram usualmente produtivas, e 98% deles afirmaram que esse tipo de tratamento era produtivo pelo menos em algum momento. Os pesquisadores, no entanto, nao esclarecem o significado de ser usualmente produtivo, nem o que representa ser produtivo pelo menos em algum momento, tornando essa informaçao pouco útil.

Os três artigos clínicos que constaram do já citado painel da New York Freudian Society, em 2001, foram escritos respectivamente por Martin Manosevitz, Linda Larkin e Sara Zaren.

Manosevitz (apud Richards) apresentou um relato de caso em que o atendimento psicoterápico foi feito ao telefone, porque o terapeuta havia se mudado. Seu paciente sentia-se desamparado desde a infância, por ter tido uma mae alcoolista e um pai constantemente ausente, em viagens de negócios. Em funçao disso, esse homem tinha um intenso temor de separar-se de seu terapeuta e ficar, mais uma vez, desamparado. De acordo com Manosevitz, as sessoes por telefone, para sua surpresa, puseram à mostra um paciente muito mais vinculado emocionalmente ao tratamento do que ele imaginava que pudesse ocorrer. O autor nao revela como tratou esse temor ao desamparo vivenciado pelo paciente, e tampouco formulou hipóteses que pudessem auxiliar na compreensao do resultado alcançado. O relato de sessoes dialogadas provavelmente esclareceu algumas questoes que ficam no ar quanto ao atendimento em questao. Assim, por exemplo: como a dupla paciente/terapeuta lidou com as fantasias de separaçao e desamparo que permeavam o campo psicoterápico? Qual o impacto contratransferencial dessas fantasias? Como o terapeuta compreendeu e lidou com a contratransferência? Que tipo de insight o paciente alcançou em relaçao a seu conflito? Até que ponto esse conflito pôde ser elaborado? O tratamento propiciou algum grau de mudança psíquica no referido paciente?

Larkin (apud Richards), a segunda painelista, apresentou um caso de uma mulher que, em plena vigência de uma psicoterapia, mudou-se para uma cidade longínqua. A paciente, que tinha dificuldade para lidar com seus impulsos agressivos, recusava-se a buscar um outro terapeuta em sua nova cidade, pois dizia que, lá, nao iria encontrar alguém confiável com quem pudesse se tratar. Por isso, insistia em ser atendida pelo telefone, o que acabou acontecendo. Essa mulher havia perdido ambos os pais, um pouco antes de ela mesma adoecer e ter que se submeter a uma arriscada cirurgia. A autora diz ter entendido que a experiência da paciente de poder afastar-se da terapeuta, sem "destruí-la" nem "danificar" sua relaçao com ela, era, por si só, terapêutica. Ela, entao, supôs que essa modalidade alternativa de tratamento teria funcionado, porque as sessoes por telefone teriam permitido à paciente expressar seus sentimentos reprimidos (raiva) e, ao mesmo tempo, manter a relaçao terapêutica, sem precisar sentir-se exposta ao risco de "causar algum dano" à terapeuta. Aqui, mais uma vez, a falta de sessoes dialogadas deixa em aberto questoes importantes. Se nao, como saber de que modo essa dupla paciente/terapeuta lidou, de fato, com as fantasias hostis que permeavam o campo psicoterápico? Qual foi o impacto contratransferencial dessas fantasias? Como a terapeuta compreendeu e lidou com isso? Que tipo de insight a paciente obteve em relaçao a seu conflito? Até que ponto tal conflito pôde ser elaborado? Essa paciente pôde alcançar algum grau de mudança psíquica?

Zaren (apud Richards), em sua contribuiçao ao painel, diz entender a psicoterapia por telefone como uma variante técnica potencialmente útil e complementar ao trabalho face a face. Curiosamente, no caso que ela escolheu para seu relato, nao havia problemas relacionados à distância geográfica entre ela e a paciente. A terapeuta simplesmente optou pelo tratamento por telefone porque sua paciente era uma mulher negra e obesa, enquanto que a terapeuta era loira, branca e bem conformada de corpo. Para a autora, a voz da paciente ao telefone, no primeiro contato, parecia a de uma mulher loira e magra. Zaren achou que, no caso de um atendimento face a face, o contraste físico entre elas acabaria necessariamente vindo à tona, fazendo com que esse assunto precisasse ser examinado. Todavia, a terapeuta nao se imaginava à vontade para discutir esse tema com a paciente, ficando assim evidente algum problema de ordem contratransferencial. O texto nao esclarece, entretanto, que dificuldade seria essa, nem como ela teria sido compreendida e elaborada pela terapeuta. Segundo Zaren, aos poucos teria ficado manifesto para ela que a paciente tinha dificuldade em aceitar o próprio corpo, e que nutria a fantasia de um dia poder ser esbelta e branca como a terapeuta. Esse artigo nao explicita, porém, se tal situaçao pôde, em algum momento, ser abordada pela dupla e, se isso aconteceu, como a terapeuta compreendeu tal ocorrência. Sessoes dialogadas, se tivessem constado desse relato, certamente seriam muito úteis para o esclarecimento dessas questoes.

A Revista de Atualidades da IPA (News Letters), de junho de 2003, traz a opiniao de oito analistas sobre o tema "análise por telefone". A primeira, Sharon Zalusky3a, acredita ser preferível terminar uma análise por telefone do que encaminhar o paciente a outro colega. Defende a ideia de que o que impede os analistas de aceitar tal procedimento seria "...uma culpa nao analisada em relaçao à transgressao das normas psicanalíticas tradicionais..." (p. 14). Num artigo publicado anteriormente a seu depoimento ao News Letters, em 1998, Zalusky4 defende a tese de que "a continuaçao da análise pelo telefone funcionaria como uma defesa adaptativa contra a separaçao".

E é justamente esse argumento que Simona Argenteri e Jacqueline Amati Mehler3b, ao escreverem para o News Letters, tentam refutar. Enfatizam essas autoras que todas as defesas têm sempre um aspecto adaptativo. Só que, quando se privilegia a adaptaçao, em detrimento da compreensao, ficamos mais perto de uma técnica de apoio do que de uma psicoterapia de orientaçao analítica, ou de uma análise. Assim, o telefone nao seria um instrumento capaz de dar continuidade ao processo analítico. Alertam que os progressos teóricos nao significam que devamos, necessariamente, gerar mudanças no enquadre clássico. Afirmam também nao serem contra o uso do telefone em casos, por exemplo, de viagens prolongadas, ou de repetidas ausências involuntárias por questoes de trabalho, ou longas hospitalizaçoes. Com muita propriedade, as autoras dizem ser contra apenas que se chame o atendimento por telefone de análise, propondo que se fale em "seguimento pós-analítico", "terapia de apoio", ou simplesmente "contato humano de apoio". Ademais, é sempre bom lembrar que, simplesmente por ser analista, nem tudo que um analista faz é análise. Argenteri e Mehler sugerem que, naqueles casos em que o paciente tem que mudar de cidade, e que tanto o analista quanto o analisando nao se permitem examinar a possibilidade de uma troca de analista, tal situaçao estaria mais relacionada à necessidade de alimentar a onipotência da dupla analisando/analista do que a um pretenso compromisso de dar continuidade ao tratamento. Para finalizar, as autoras referem que, nos tratamentos analíticos, nao se pode prescindir de tudo aquilo que é nao verbal e que acompanha as palavras do paciente. Assim, por exemplo, como se poderia ter acesso, por telefone, àquelas expressoes corporais que tanto nos auxiliam a compreender o estado mental do analisando?

Luís Rodrigues de la Sierra3c, em sua contribuiçao ao News Letters, afirma sentir-se cômodo com a análise por telefone apenas naqueles casos em que o paciente ou o analista mudam de cidade, porque essa ferramenta seria uma espécie de "defesa adaptativa" contra a ansiedade de separaçao. Seria como se o paciente pensasse, num plano inconsciente, algo do tipo: "se eu seguir me analisando por telefone, nao precisarei me defrontar com o temor de uma separaçao". Aqui emerge de imediato uma questao: esse recurso configuraria uma "defesa adaptativa", no sentido de algo que vem para preservar a estabilidade do ego, ou um expediente defensivo neurótico através do qual a pretensa proteçao contra a emergência de ansiedades depressivas acabaria impedindo o paciente de elaborar sua separaçao do terapeuta? E o terapeuta, ao compartilhar dessa fantasia, nao estaria participando de um enactment?

O quinto analista a ser ouvido pelo News Letters foi Simón Bransky3d, que entende a análise pelo telefone como um parâmetro, no sentido proposto por Kurt Eissler5, em 1953. Para ele, tal parâmetro precisaria ser adequadamente analisado, reduzido, sem que se perdesse de vista a ideia de retomar o processo original. Segundo Bransky, a análise por telefone implicaria uma relaçao com um "objeto parcial", isto é, apenas com a voz do analista. Frente à ausência física do analista, pergunta ainda o autor, seria possível ao analista exercer a funçao de um verdadeiro continente para as identificaçoes projetivas de seu analisando? Concluindo, Bransky recomenda cautela com a adesao a essa inovaçao técnica, no sentido de nao nos apegarmos tao facilmente ao novo por, simplesmente, ser novo.

Ao manifestar sua opiniao ao News Letters, Luis E. Yamim Habib3e sugere que, no atendimento por telefone, a ausência física do analista representa tamanha alteraçao no enquadre que acaba deturpando a essência do método analítico. Para ele, essa seria uma prática paternalista que visaria proteger áreas infantis do paciente e, por extensao, do próprio analista, poderíamos acrescentar. Assim, diante da ameaça de interrupçao da análise, a dupla recorreria ao telefone, nao precisando, dessa maneira, entrar em contato com primitivas ansiedades de separaçao. Segundo Habib, esse conluio inconsciente buscaria evitar uma "ruptura do tratamento", mas impediria uma muito provável descontinuidade do processo? Por outro lado, esse autor afirma que, na análise por telefone, a transferência e a contratransferência se diluiriam, uma vez que o aparelho que se interpoe à dupla acaba distorcendo, ou até mesmo anulando, pensamentos, afetos e vivências da díade paciente/analista.

David M. Sachs3f, no seu depoimento ao News Letters, assevera que sua principal reserva à análise por telefone surge da possibilidade de esse método ser usado como a única forma de contato entre analista e analisando. Para ele, esse enquadre nao poderia ser exclusivo, devendo existir uma proporçao (nao especifica qual) entre as sessoes por telefone e os contatos diretos, para que nao se perca de vista pensamentos, sentimentos, sensaçoes e linguagem corporais que aparecem tao vivamente nas sessoes de consultório.

Em seu texto publicado no News Letters, Arlene Kramer Richards3g declara que nao vê inconvenientes no uso do telefone em análise, desde que haja uma indicaçao adequada. Para ela, esse tipo de tratamento estaria bem preconizado naquelas situaçoes em que o paciente fica impedido de vir regularmente às sessoes, como, p. ex., em casos de doenças prolongadas ou de viagens intermitentes. Segundo Richards, essa alteraçao do método também poderia ser útil nos casos de "terminaçao planificada" de uma análise, quando um paciente, já perto da sua alta, vê-se obrigado a mudar de cidade. Essa autora também acha adequada a análise por telefone para aqueles pacientes que vivem em lugares onde nao há analistas.

Em 2011, Marianne Horney Eckardt6 publicou um interessante artigo sobre O uso do telefone como forma de ampliar nossas disponibilidades terapêuticas. Segundo ela, o êxito de uma psicoterapia por telefone pressupoe a preexistência de uma boa aliança terapêutica e de uma certa estabilidade na vida do paciente. Acredita também que, para que o tratamento alcance algum sucesso, a operacionalidade e a qualidade das sessoes por telefone precisam ser constantemente reavaliadas. Eckardt sugere que esse tipo de terapia está indicado apenas para pacientes que se encontram impedidos de ir ao consultório, por razoes tais como viagens constantes, doenças limitantes ou mudança de cidade. Mesmo entre estes, nao seriam muitos os indivíduos que poderiam receber esse tipo de acolhimento. A autora recomenda que sejam atendidos por telefone apenas pessoas que, privadas de irem ao consultório, nao tenham perturbaçoes psíquicas graves (no máximo distúrbios funcionais moderados), que convivam bem em grupo e que nao apresentem problemas caracterológicos sérios. Ainda que tais pré-requisitos sejam preenchidos, diz Eckardt, isso nao quer dizer que o tratamento necessariamente será exitoso. Sugere ainda que, na medida do possível, o atendimento por telefone seja intercalado com sessoes presenciais.

Em seu trabalho, Eckardt levanta uma questao bastante pertinente: "Como se descreveria uma sessao por telefone que funcionou bem?". Para ela, "teria ido bem" aquela sessao em que o paciente mostrou um fluxo contínuo de associaçoes livres, incluindo o relato de sonhos, em que passado e presente puderam ser de alguma forma investigados, e em que as manifestaçoes transferenciais tenham sido adequadamente trabalhadas. Isso vem ao encontro da ideia formulada anteriormente que, para se apreciar a validade desse método de trabalho, torna-se imprescindível o exame de sessoes dialogadas. Para essa autora, conduzir um tratamento por telefone pode ser algo bastante tentador, pela novidade técnica que representa, mas é sempre bom ter-se em mente que nada substitui a rica experiência face a face, com suas facetas multidimensionais.

Ainda em 2011, Marina Mirkin7 escreveu o artigo Análise pelo telefone: tratamento comprometido ou uma oportunidade interessante?, dizendo que, hoje em dia, em funçao da pressao social por mudanças, muitos analistas concordam em realizar análise pelo telefone e que, paradoxalmente, pouco se tem escrito sobre a maneira como essa inovaçao técnica afeta o processo analítico. Afirma a autora que a psicoterapia por telefone tem uma vantagem potencial em relaçao ao método standard, pelo menos naqueles casos de pacientes com dificuldade de aproximaçao do terapeuta e que, em funçao disso, acabam faltando muito às sessoes. Para Mirkin, tais ausências tenderiam a se extinguir durante o atendimento pelo telefone, na medida em que a própria distância física entre paciente e terapeuta funcionaria como uma "barreira virtual", tornando essa aproximaçao menos ameaçadora.

Em seu texto, Mirkin discorre, de forma bastante resumida, sobre dois tratamentos por ela conduzidos ao telefone: um caso de análise e uma psicoterapia de orientaçao analítica. Seus dois pacientes, respectivamente um homem e uma mulher, tinham em comum uma crença inabalável em fantasias onipotentes de ataque e destruiçao da terapeuta. Para fazer frente a tais pensamentos, ambos procuravam manter uma distância segura da terapeuta através de faltas frequentes, o que impossibilitava o bom andamento do processo terapêutico. Segundo a autora, a frequência ininterrupta às sessoes e a retomada do processo só puderam ocorrer em funçao da "barreira virtual" estabelecida entre paciente/terapeuta através das consultas por telefone. Aqui, novamente, a ausência de sessoes dialogadas deixa em aberto algumas dúvidas: de que maneira essas duas duplas paciente/terapeuta lidaram com as fantasias inconscientes de cunho hostil presentes no campo? Como tal situaçao repercutiu na mente da terapeuta, e como ela teria compreendido e lidado com isso? Teria ficado claro para essas díades como teriam se estruturado as fantasias de ataque à terapeuta? Que conteúdos inconscientes subjaziam a tais fantasias? Os referidos pacientes puderam ter algum insight em relaçao a seus conflitos? Puderam elaborá-los em algum grau?

Dois anos depois, Lise Haddouk, Yolande Govindama e François Marty8 publicam Uma experiência de entrevista por vídeo. Nesse trabalho, os autores discorrem sobre uma ferramenta que eles teriam desenvolvido (The Ipsy Web Site) para auxiliar os terapeutas a "humanizarem" as psicoterapias por videoconferência. A ideia central seria a de introduzir um pouco de realidade a esse mundo virtual. Como isso seria feito? Paciente e terapeuta precisariam ficar face a face, através da webcam, junto ao microfone, sendo que a postura neutra e receptiva do terapeuta deveria ser mantida. As sessoes necessitariam ser marcadas e pagas on-line com antecedência. No entanto, os autores nao esclarecem como tais medidas acrescentariam realidade à virtualidade das sessoes realizadas via Skype.

Em seu artigo, Haddouk e cols. afirmam ter comparado dois grupos de pacientes (sem revelarem quantos fariam parte de cada amostra): o primeiro seria de pacientes vistos previamente no setting standard e, depois, atendidos via website. Um segundo grupo estaria composto de indivíduos que, desde o início do seu tratamento, eram atendidos apenas através da webcam. Sem nenhuma evidência substancial que ampare sua conclusao, os autores sugerem que o uso do seu website possibilitaria ao psicoterapeuta criar uma estrutura de trabalho tao boa quanto aquela do tradicional face a face. Cumpre salientar que esse trabalho foi aqui mencionado apenas para enfatizar que existem inúmeras publicaçoes nessa área que, a exemplo dessa, nao podem ser levadas muito a sério apenas porque se reportam a um tema novo e polêmico.

Ainda em 2013, D'Arcy J. Reynolds Jr., William B. Stiles, A. John Bailer e Michael R. Hughes9 fizeram uma pesquisa para investigar o impacto causado pela psicoterapia via e-mail ou chat sobre a aliança de trabalho paciente/terapeuta. Para essa tarefa, foram ouvidos 30 pacientes atendidos nessa modalidade, assim como seus respectivos terapeutas. Segundo esses autores, quando comparados com o grupo de pacientes atendidos face a face, os resultados do impacto da psicoterapia via e-mail ou chat sobre a aliança de trabalho revelou-se similar em ambos os grupos. Ou seja, a psicoterapia por texto on-line nao afetaria essa forma de tratamento a ponto de contraindicá-lo. Em alguns casos (os autores nao especificam quais), a experiência de tratamento on-line foi mais confortável e menos ameaçadora que o face a face. Essa pesquisa nada esclarece sobre o tipo de formaçao dos terapeutas e tampouco sobre o diagnóstico clínico e o padrao de funcionamento mental dos referidos pacientes. Assim, fica aqui uma indagaçao: será que os pacientes com funcionamento fóbico nao seriam aqueles que ficaram mais confortáveis com essa modalidade de atendimento? Infelizmente, a ausência de sessoes dialogadas nos impede de ter uma ideia mais próxima de como seriam conduzidos esses "tratamentos à distância".


CONSIDERAÇOES FINAIS

Em síntese, na bibliografia acessada relativa ao estudo deste controverso tema, pôde-se constatar que:

- os "tratamentos à distância" parecem fazer parte da realidade contemporânea, pelo menos nos EUA;

- parece nao existirem artigos (ou, se existem, nao sao de fácil acesso) cujo corpo teórico seja suficientemente consistente para dar um sólido suporte científico a essa variante técnica;

- tampouco há evidências clínicas convincentes de que essa inovaçao possa funcionar em moldes semelhantes ao método standard.
Com isso, fica evidente que novas pesquisas precisam ser feitas nessa área, sempre incluindo material clínico com sessoes dialogadas, para que se possam obter respostas mais objetivas a perguntas do tipo: Como ter acesso, nos "tratamentos à distância", àquelas expressoes corporais que tanto nos auxiliam a compreender o estado mental de nossos pacientes? De que modo essa inovaçao técnica afetaria o binômio transferência/contratransferência? Seria possível ao terapeuta exercer adequadamente a funçao de continência às identificaçoes projetivas de seu paciente num setting tao alterado? Como a dupla paciente/terapeuta poderia lidar, à distância, com as fantasias que permeiam o campo psicoterápico? Que tipo de insight os pacientes alcançariam em relaçao a seus conflitos, nesse tipo de tratamento? Até que ponto seus conflitos poderiam ser elaborados? Submetidos a esse novo enquadre, os pacientes poderiam alcançar algum grau de mudança psíquica? Os "tratamentos à distância" nao poderiam também representar alguma forma de conluio inconsciente contra a emergência de ansiedades depressivas e persecutórias vivenciadas no enquadre formal? Tal mudança de enquadre nao poderia também ser vista como um parâmetro que, como tal, deveria, em algum momento, ser reduzido? Esse tipo de tratamento estaria indicado para qualquer tipo de paciente, inclusive aqueles com perturbaçoes mais graves?

Enquanto nao estivermos aptos a responder satisfatoriamente a perguntas como essas, uma atitude de cautela em relaçao às citadas inovaçoes técnicas parece ser o mais recomendável.

Para finalizar, é importante ressaltar que nao é prudente demonizar, tampouco idealizar, os assim chamados "tratamentos à distância". Atacar o que é novo, ou aderir à novidade, simplesmente porque se trata de algo novo, significa abrir mao de uma atitude científica em prol de uma postura mentalmente estreita baseada no preconceito.


REFERENCES

1. Saul LJ. A note on the telephone as a technical aid. Psychoanal. Q. 1951;20:287-290.

2. Richards AK. Panel report: talking cure in the 21st century - telephone psychoanalysis. Psychoanalytic Psychology. 2001;18(2):388-391.

3a. Zalusky S. La Revista de Actualidad de la API. 2003 June;12(1).

3b. Argentieri S. & Mehler JA. La Revista de Actualidad de la API. 2003 June;12(1).

3c. De la Sierra LR. La Revista de Actualidad de la API. 2003 June;12(1).

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5. Eissler K. The effect of the structure of the ego on psychoanalytic technique. Journal of the American Psychoanalytical Association. 1953;1:104-143.

6. Eckardt MH. The use of telephone to extend our therapeutic availability. J. of the Amer. Academy of Psychoanal. and Dinamic Psychiatry. 2011;39(1):151-154.

7. Mirkin M. Telephone analysis: Compromised treatment or an interesting opportunity? Psychoanalytic Q. 2011;80:643-670.

8. Haddouk L, Govindama Y, Marty F. A video interview experience. Cyberpsychology, Behavior and Social Networking. 2013;16(5):402-405.

9. Reynolds Jr. DJ, Stiles WB, Bailer AJ, Hughes MR. Impact of exchanges and client-therapist alliance in online-text psychotherapy. Cyberpsychology, Behavior and Social Networking. 2013;16(5):370-377.










Psiquiatra, professor e supervisor do Curso de Especializaçao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica do CELG. Membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, RS, Brasil

Correspondência
Antonio Carlos J. Pires
Av. Taquara, 110, sala 404
90460-210 Porto Alegre/RS, Brasil
acjpires@via-rs.net

Submetido em: 29/11/2014
Aceito em: 27/02/2015

* Versao modificada do texto apresentado à mesa-redonda sobre Mudanças no olhar teórico que subjaz às inovaçoes na técnica psicoterápica, em 13 de setembro de 2014, durante a XXVII Jornada Sul-Rio-Grandense de Psiquiatria Dinâmica do Centro de Estudos Luís Guedes.

 

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