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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2015; 17(2):3-10



Artigos Originais

Ainda o futuro das psicoterapias - 2015 e além?

Still the future of psychotherapies - 2015 and beyond?

Sidnei S. Schestatsky

Resumo

Discutem-se as perspectivas futuras das psicoterapias a partir de "previsoes" levantadas por trabalhos publicados em 1987, 1999 e revisitados em 2014. Indica-se que a principal evoluçao das técnicas psicoterápicas, nestes últimos 30 anos, foi sua maturidade científica em termos de um consistente corpo de pesquisas atestando sua eficácia e efetividade em diversos quadros psiquiátricos. Apesar desse cenário mais favorável, discutem-se algumas das razoes de por que as psicoterapias parecem ainda estar na defensiva em relaçao ao uso de psicofármacos e outras intervençoes nao psicológicas, e se conclui sugerindo a criaçao de uma entidade nacional e independente de psicoterapeutas, que possa normatizar e fiscalizar mais adequadamente suas funçoes, treinamento, educaçao contínua e políticas públicas adequadas.

Descritores: Psicoterapias. Pesquisas. Diretivas de futuro. Organizaçao da formaçao profissional.

Abstract

Psychotherapies future perspectives are discussed, considering earlier "predicitions" from papers published in 1987, 1999, and a 2014 presentation. It is emphasized the main evolution of psychotherapeutics techniques in the last 30 years, namely their scientific maturity, obtained through a consistent body of evidences of their efficacy and effectiveness in diverse psychiatric pathologies. But in spite of this more favourable scenario, it seems that the psychotherapies remain in a defensive position vis a vis psychopharmacologic and other non-psychological interventions. One of the paper conclusions is a suggestion to join efforts to build a National (Brazilian) and Independent Psychotherapy Association, to provide norms, rules, training, and accreditation, as well as public policies, for the profession of Psychotherapist.

Keywords: Psychotherapies. Researches. Advances directives. Professional review organization.

 

 

INTRODUÇAO

Uma releitura do artigo de Aguiar1 publicado em 1999, sobre os desafios e perspectivas futuras das psicoterapias, nos fez rever um artigo que publicáramos doze anos antes2, em 1987, que tratava, igualmente, do que entao se considerava um futuro bastante incerto para esses procedimentos terapêuticos. Quando escrevemos aquele trabalho2, naquele final na década de 1980, estávamos ainda dentro do período final de um "boom" das mais diversas e exóticas formas de psicoterapias ofertadas (que, de acordo com Karasu3, entao somariam 450 tipos), em geral oriundas de teorias e treinamentos caóticos e inconsistentes. O "lobby" das psicoterapias parecia, na época, tao influente quanto o dos psicofármacos, a ponto de Parloff4 (p. 718) afirmar que "pelo critério de popularidade no mercado, o campo das psicoterapias parece ser um êxito ostensivo, próspero e florido. Os psicoterapeutas se multiplicam e os consumidores crescem [...]. As psicoterapias parecem estar com tudo a seu favor, exceto uma coisa - a credibilidade". O autor se referia ao fato marcante, mas preocupante para alguns de nós, de que as evidências da efetividade das psicoterapias continuavam relativamente pobres: daí se imaginar que seu futuro dependeria, principalmente, de se desenvolverem investigaçoes metodologicamente corretas sobre seus resultados e, a partir daí, de se planejarem formaçoes especializadas de psicoterapeutas que fossem cientificamente e eticamente sólidas.

Doze anos depois, Aguiar1 ampliou o escopo da abordagem, incluindo em sua revisao da época questoes sobre a organizaçao profissional das psicoterapias e vários temas para o futuro (entre eles o da pesquisa), identificando o surgimento, naquele contexto, de uma proposta pluralista, coerente e pragmática na instrumentaçao das intervençoes psicoterapêuticas.

Qual a situaçao atual de algumas das questoes entao levantadas? Nos centraremos no tema das pesquisas e, mais adiante, das organizaçoes profissionais. Pressionadas pelos avanços das neurociências e da medicina baseada em evidências, a área das psicoterapias acabou, finalmente, por desencadear dezenas de estudos controlados sobre seus resultados - a maior parte deles evidenciando seus benefícios. O estudo pioneiro de Elkin e colaboradores5, em 1989, comparou o antidepressivo tricíclico imipramina com a psicoterapia interpessoal, cognitivo-comportamental e o manejo clínico mínimo, no tratamento de 250 de pacientes com Depressao Maior (DM): nas formas leves e moderadas da depressao, todas as intervençoes obtiveram melhoras semelhantes. Diferenças significativas apareceram em pacientes mais graves e com maior incapacitaçao funcional, havendo forte evidência da efetividade da imipramina mais manejo clínico e evidência apenas moderada (mas significativa) da efetividade da psicoterapia interpessoal como terapêutica isolada.

Nas décadas seguintes, seguiram-se várias pesquisas avaliando o impacto, em geral positivo, de psicoterapias consideradas "bona fide"*1, isto é, com corpo teórico racional e consistente e estratégias clínicas coerentes com seus objetivos, tanto no tratamento de estados depressivos e ansiosos (incluindo Pânico, Fobias, Transtorno Obsessivo-Compulsivo, Transtorno de Estresse Pós-Traumático) e, em combinaçao com fármacos, no tratamento de Transtornos de Personalidade (TP) mais graves, de quadros bipolares e esquizofrênicos. Um dos desenvolvimentos mais impressivos nessa área foram os resultados das pesquisas de resultados de psicoterapias manualizadas no tratamento do Transtorno de Personalidade Borderline, desde o estudo pioneiro de Marsha Lineham6, em 1991, sobre a Psicoterapia Dialético-Comportamental, seguidos por estudos da Psicoterapia Focada na Transferência7,8, Psicoterapia Baseada na Mentalizaçao9, Psicoterapia Focada em Esquemas10 e da Psicoterapia Cognitivo-Comportamental para TP11.

Além das pesquisas de eficácia e efetividade das psicoterapias, nos últimos dez anos se acrescentaram estudos críticos de neuroimagem e do impacto molecular das intervençoes psicológicas no cérebro de pacientes com variados quadros psiquiátricos12: como exemplo, Goldapple e colegas13, em 2004, verificaram que a resposta da Terapia Cognitivo-Comportamental em pacientes com DM se associava com aumento do metabolismo no hipocampo e no córtex cingular dorsal e, ao contrário, com uma desativaçao do córtex frontal medial, dorsal e ventral (padrao diferente das mudanças ocorridas com a paroxetina, com a qual foi comparada). Mais tarde, Beutel e colegas14, em 2010, estudando a resposta de pacientes com pânico à psicoterapia psicodinâmica, verificaram, a partir do alívio dos sintomas de ansiedade decorrentes da psicoterapia, a normalizaçao da desativaçao do córtex frontal e da hiperativaçao amígdalo-hipocampal que estavam presentes, antes, quando os pacientes estavam sintomáticos.

Portanto, um dos cenários que se acreditava como dos mais importantes para a consolidaçao do futuro das psicoterapias - o desenvolvimento de pesquisas baseadas em evidências, tanto da sua eficácia como na identificaçao de alguns dos seus mecanismos de açao cerebral - já está em parte presente no panorama atual dos tratamentos psicológicos disponíveis. Consequente com essas evidências, em 2008 o Conselho de Acreditaçao de Educaçao Médica dos EUA estabeleceu, como pré-requisitos nos seus melhores programas de residência psiquiátrica, a inclusao do treinamento em psicoterapias de apoio, psicodinâmica e cognitivo-comportamental na prática individual de terapias breves e de longo prazo, assim como a exposiçao dos médicos-residentes a terapias de família, casais, grupos e outras terapias baseadas em evidência15.

Além disso, diante do frequente achado clínico de que muitos pacientes (e seus familiares) nao gostavam de "tomar remédios", pesquisas que investigaram esses dados16,17 mostraram que, de fato, a maioria dos pacientes deprimidos estudados preferiam psicoterapia às medicaçoes.

Quanto aos psicofármacos, sabe-se que nenhuma medicaçao realmente nova foi introduzida nos últimos 60 anos: o lítio foi descoberto, como estabilizador do humor, em 1949; as demais moléculas psicoativas básicas foram quase todas sintetizadas na década de 1950: a imipramina e os IMAO no início dos anos 50; a clorpromazina, em 1952; o clordiazepóxido, em 1954; o haloperidol e a clozapina, em 1959; e a "mais nova" dessas drogas, a fluoxetina, em 1970. Portanto, desde entao as notícias importantes mais recentes sobre psicofármacos foram estudos que concluíram que os antidepressivos eram apenas marginalmente superiores ao placebo no tratamento das depressoes18, que os antipsicóticos, mesmo os atípicos, poderiam ter efeitos adversos graves a longo prazo no volume cerebral19, e que os ISRS, quando usados em crianças e adolescentes, podiam aumentar o risco de suicídio20.

Paradoxalmente, apesar desse cenário atual favorável, as psicoterapias se encontram em franco declínio nos EUA, enquanto as medicaçoes se mantêm em seu aumento crescente21,22. De 1998 a 2007 a psicoterapia, como tratamento único, caiu de 15,9% para 10,5% entre a populaçao dos pacientes ambulatoriais estudados (22.953 vs. 29.370), e a psicoterapia, combinada com medicaçao, recuou de 40,0% para 32,1%, enquanto a medicaçao, isoladamente, aumentou de 44,1% para 57,4%. O mais desencorajador desses números, no entanto, é que muitos dos fatores envolvidos na sua causa têm pouco a ver com evidências científicas: o fato determinante para os psiquiatras norte-americanos oferecerem menos psicoterapias a seus pacientes deve-se às políticas dos seguros-saúde, que pagam quatro vezes mais a "hora" de consultas farmacológicas (aceitam até quatro consultas de 15 minutos por hora) do que a hora de psicoterapia (apenas uma sessao de psicoterapia permitida a cada 60 minutos!). Além disso, quem mais prescreve psicotrópicos nos EUA, atualmente, sao os médicos de atençao primária, principal alvo da propaganda da indústria farmacêutica - que gasta US$ 5 bilhoes por ano em propaganda direta aos consumidores, induzindo-os a solicitar a medicaçao promovida a seus médicos assistentes - que tendem a satisfazê-los22.

Aumentaram também as prescriçoes sem base em evidências, chamadas de "off label"2**, como o uso de antipsicóticos em Transtornos de Ansiedade23, uso de polifármacos com pobres perfis de risco-benefício22, ou antidepressivos para depressoes leves ou subclínicas, em que a melhor indicaçao seria a psicoterapia. De acordo com Olfson & Marcus22, o aumento do uso de psicotrópicos é mais evidente em populaçoes também mais vulneráveis, como crianças e adolescentes, como os antipsicóticos sendo indicados para o TD/HA, Transtornos Pervasivos do Desenvolvimento e Transtornos de Conduta. Dessas crianças tomando antipsicóticos, apenas 41% haviam recebido uma avaliaçao para psicoterapia no último ano.

Outros fatores considerados que tem contribuído para a mudança de hábitos na distribuiçao das diferentes modalidades terapêuticas para os distúrbios mentais incluiriam: (1) ao contrário da indústria farmacêutica, que gasta bilhoes de dólares anuais promovendo medicaçoes para os médicos e o público em geral, nao existe nenhuma entidade de influência ou visibilidade comparáveis para promover as psicoterapias; (2) enquanto o Federal and Drug Administration (FDA), nos EUA, trabalha para assegurar a eficácia e a segurança das medicaçoes que autoriza, nao há nenhuma agência federal ou organizaçao nacional proeminente que certifique a efetividade das psicoterapias disponíveis no mercado; (3) informaçoes confiáveis sobre as medicaçoes sao rapidamente disponíveis ao público, ao contrário de informaçoes de igual qualidade sobre as psicoterapias; (4) há um desacordo permanente entre psicoterapeutas que propoem técnicas baseadas em evidências científicas e os que advogam modelos teóricos mais intuitivos, ideológicos ou persuasivos, o que gera confusao e incerteza em pacientes que têm que decidir por suas opçoes; e, finalmente, 5) nao há nenhum órgao ou instituiçao oficialmente reconhecido que estabeleça critérios de proficiência profissional dos psicoterapeutas que oferecem seus serviços.

Por outro lado e apesar de tudo, o percentual da populaçao norte-americana que buscou psicoterapia nao mudou significativamente no período estudado - 3,37% em 1998, comparado com 3,18% em 2007 -, o que mantém uma base populacional estável de interesse nesse tipo de tratamento. Como capitalizá-la a nosso favor? É certo que nos faltam os bilhoes de dólares para promover a psicoterapia e influenciar parlamentares para aumentar investimentos em pesquisa na área das intervençoes psicossociais. E também nos falta uma atitude mais madura para definir e operacionalizar nossa prática psicoterapêutica - apesar do pluralismo contemporâneo irreversível dos modelos teóricos que influenciam a prática, persiste o paroquialismo provinciano na defesa de supremacias ultrapassadas de um tipo de psicoterapia sobre outros. Consequentemente, mesmo que a prática diária com pacientes graves, no consultório privado ou na rede pública, demande modelos integrados e ecléticos de atendimento, poucos de nós os defendem abertamente a fim de evitar a excomunhao do nosso grupo de iguais.

Finalizando essas breves consideraçoes, sugiro que nos falte, como já ocorre em países mais desenvolvidos, a construçao de uma Organizaçao Nacional de Psicoterapeutas, independente das associaçoes profissionais de classe, que inclua especialistas de diferentes origens profissionais, com força e condiçoes de consenso para lutar em estabelecer pelo menos quatro tipos de parâmetros: (1) pré-requisitos de graduaçao acadêmica superior para se tornar um psicoterapeuta reconhecido (medicina, psicologia, serviço social, enfermagem); (2) um currículo nacional mínimo para a pós-graduaçao de especialistas em psicoterapias que sejam baseadas em evidências, (3) construçao da influência política necessária para definir uma identidade regulamentada para a profissao de psicoterapeuta e programar políticas que determinem a obrigatoriedade da rede pública de oferecer, universalmente, esse tipo de atendimento, e (4) imposiçao aos convênios privados de uma remuneraçao adequada às psicoterapias baseadas em evidências - incluindo um número mais realista de consultas mensais e anuais. No final, talvez devêssemos nos sentir mais otimistas do que já estivemos em relaçao ao futuro das psicoterapias: tendo algumas formas de psicoterapia atingido aceitável maturidade e credibilidade científicas, falta-nos desenvolver, como psicoterapeutas em exercício, uma correspondente maturidade política e institucional para apenas consolidá-las em termos públicos, acadêmicos e interinstitucionais.


REFERENCIAS

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Psiquiatra, Psicanalista, Professor Titular do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. Coordenador dos Cursos de Especializaçao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica do Centro de Estudos Luís Guedes. Preceptor e supervisor na Residência Médica de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Professor do Instituto de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre

Correspondência
Sidnei S. Schestatsky
schestat@terra.com.br

Submetido em: 14/01/2015
Aceito em: 04/02/2015

* Incluem, em geral, a Psicoterapia Cognitivo-Comportamental (e suas variantes), a Psicoterapia Psicodinâmica, a Psicoterapia Baseada na Mentalizaçao, a Psicoterapia Interpessoal, a Psicoterapia de Apoio e as Psicoterapias de Grupo e Família.

** Aquelas que sao testadas, aprovadas e liberadas ao mercado pelo FDA com um propósito original (como os anticonvulsivantes para a epilepsia) e passam a ser usadas para outras patologias (por ex., como estabilizadores do humor), sem necessariamente se submeterem a nova aprovaçao do FDA.

 

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