Rev. bras. psicoter. 2015; 17(1):83-94
Cordeiro SN, Ortiz ND. Quando o corpo se faz presente como meio de existência do sujeito: um caso de psicossomática. Rev. bras. psicoter. 2015;17(1):83-94
Relatos de Casos
Quando o corpo se faz presente como meio de existência do sujeito: um caso de psicossomática
When the body becomes present as a means of existence of the subject: a case of psychosomatics
Silvia Nogueira Cordeiro1; Natalia Delatim Ortiz2
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Os fenômenos psicossomáticos constituem uma queixa frequente na clínica psicanalítica contemporânea, indicando serem eles manifestaçoes dos novos modos de subjetivaçao da atualidade. Os destinos das emergências do corpo tornam-se um meio de expressao do sofrimento psíquico, deixandose falar por meio das queixas somáticas1,2.
Nas últimas décadas, diversos psicanalistas3 têm se mostrado atentos ao aumento significativo de pacientes que possuem alguma patologia que se liga diretamente ao corpo. Assim sendo, tornam-se fundamentais os relatos e a consequente discussao sobre a maneira como os pacientes lidam com esse sofrimento, que privilegia o sofrimento do corpo biológico em detrimento do sofrimento psíquico, muitas vezes indizível. Entre os diferentes fatores que contribuem para o surgimento de doenças, sabemos que os aspectos emocionais sao elementos importantes que influenciam tanto no surgimento de doenças como no seu agravamento.
Quando a inter-relaçao psique-soma nao se realiza satisfatoriamente, há um distanciamento entre psique e corpo, persistindo uma dissociaçao na organizaçao do ego. Neste sentido, ao adoecer, o paciente tem a possibilidade de restabelecer o vínculo mente-corpo numa tentativa de retomar a consciência corporal1,3.
Neste sentido, o paciente que somatiza nao se caracteriza pela deficiência de vivenciar as emoçoes, mas pela deficiência de suportar a contençao do excesso da experiência afetiva. E mesmo as enfermidades que ameaçam a vida biológica podem indicar, paradoxalmente, uma batalha pela sobrevivência psíquica. Entretanto, na maioria das vezes, os episódios psicossomáticos sao tratados pelas especialidades médicas, que terminam por nao apreender as múltiplas determinaçoes com seus diferentes e complexos sentidos, uma vez que partem do olhar biomédico centrado na noçao de organismo e de patologias8,4.
Com isso, a abordagem dos fenômenos psicossomáticos torna-se complexa, sendo necessários múltiplos olhares sobre o sofrimento e as possibilidades de encaminhamento terapêutico. Reconhecemos a importância do contato multiprofissional para construir o sentido, que inclui o subjetivo no fenômeno do adoecer. Este trabalho teve como objetivo discutir um caso de uma paciente adulta a partir da fundamentaçao teórico-clínica da psicanálise, que faz referência aos conceitos de pensamento operatório9,5, mentalizaçao6 e desafetaçao4. Tal propósito justifica-se tendo em vista que os autores apresentam importantes contribuiçoes à psicossomática psicanalítica que ainda nao foram devidamente incorporados à literatura científica da área.
Portanto, para situar e contextualizar o desenvolvimento teórico, serao utilizados alguns recortes de situaçoes clínicas advindas da experiência de supervisao do atendimento em psicoterapia de uma paciente que relatava muitos problemas orgânicos, apresentando dificuldades para entrar em contato com seu sofrimento psíquico, mostrando um tipo peculiar de funcionamento em terapia. No final serao abordados alguns aspectos da intervençao psicodinâmica que permitiram a possibilidade de reposicionamento do sujeito na relaçao com seu próprio corpo, retranscrevendo as inscriçoes enraizadas no corpo para o campo simbólico.
APRESENTAÇAO DO CASO CLINICO
Joana tem 32 anos de idade e, por 3 anos, fez psicoterapia em uma clínica-escola. A paciente procurou terapia logo que se divorciou, pois após a separaçao ficou com "depressao": chorava muito, nao queria trabalhar ou fazer qualquer outra atividade. Simultaneamente à terapia, começou a ser acompanhada por um psiquiatra, que a medicou com ansiolítico e antidepressivo.
Na primeira sessao, a paciente iniciou sua fala justificando seu atraso devido a seus problemas de saúde: "acabei de fazer uma biópsia, porque estou com suspeita de lúpus. Além disso, tenho depressao, bronquite, pressao alta e um problema na coluna. Estou afastada do trabalho há quase um ano por causa da coluna".
Joana toma muitos remédios em funçao dos seus problemas de saúde e expressa que, por causa deles, engordou muito e se sente "inchada". Por estar com licença temporária do trabalho, dispoe de muito tempo livre e seus compromissos diários resumem-se a consultas médicas e exames laboratoriais. Demonstra ter pouco contato social, com exceçao do contato com a família e de frequentar a igreja.
No decorrer das sessoes, a paciente demonstrou possuir um funcionamento psíquico precário. Falava muito de seus problemas de saúde e apresentava dificuldades em descrever seu estado subjetivo em relaçao ao que passava em sua vida. Assim, sua fala voltava-se essencialmente aos acontecimentos concretos: parecia haver pouca capacidade para simbolizaçao.
DISCUSSAO DO CASO
Psicanalistas da Escola Psicossomática de Paris cunharam o conceito de "pensamento operatório"13 para definir pacientes que somatizam e que apresentam pensamentos superficiais, desprovidos de valor libidinal, orientados predominantemente para a realidade externa e estritamente vinculados à materialidade dos fatos, com comprometimento da capacidade de simbolizaçao. Esse comprometimento tende a se desdobrar em uma considerável restriçao da atividade fantasmática, ou seja, um significante apagamento da expressividade da ordem mental, o que caracteriza a existência de uma carência funcional do psiquismo10,7. Nesses casos, o adoecimento orgânico pode ser entendido como expressao corporal de afetos nao elaborados psiquicamente.
As diferentes queixas somáticas trazidas por essa paciente nos fizeram refletir sobre esse tipo de funcionamento psíquico, constituindo-se como sujeitos pouco investidos libidinalmente, com pensamentos superficiais voltados eminentemente para a realidade externa8.
Joana apresentava essa precariedade simbólica descrita pelos autores, fato que pôde ser percebido já numa das primeiras sessoes. Ao ser perguntada como ela se sentia em relaçao à suspeita de possuir lúpus, respondeu: "Como assim? Ah, nao sinto nada, nao sei ainda se tenho... Tem que esperar o resultado pra ver. O duro é que vai ser mais remédio. Só nao queria tomar mais remédio". É importante ressaltar que o lúpus eritematoso sistêmico é uma doença autoimune, definida como doença de "autoagressao", que desenvolve reaçoes imunes às células e tecidos do corpo, levando a lesoes localizadas ou sistêmicas9. Tendo em vista a gravidade da doença e a possibilidade de um diagnóstico positivo, a fala descritiva e concreta, em que aparentemente a angústia nao estava presente, demonstra uma clara dificuldade da paciente em descrever seu estado subjetivo.
O conceito de "desafetaçao"4 também é utilizado para explicar este funcionamento chamado de psicossomático. De acordo com a autora, esses indivíduos mostram-se como que "separados" psiquicamente de suas emoçoes e com grande dificuldade de entrar em contato com suas realidades psíquicas. Entretanto, a desafetaçao é considerada pela autora como um processo de defesa, e nao como uma desorganizaçao psíquica.
Joana mostrava-se "desafetada" ou desconectada do afeto, quando, por exemplo, falava de seus problemas emocionais. Quando tocava no assunto, dizia ser "coisa de seu sistema emocional", descrevendo-o tal como outros sistemas orgânicos. Em relaçao à sua depressao, essa era descrita pela paciente como uma doença comum, por meio de um discurso superficial, voltado basicamente aos seus sintomas: "Quando 'peguei' depressao, sentia tonturas, enjoo, e chorava bastante, nao sei dizer o porquê". Utilizava, assim, a expressao "peguei depressao" como se a depressao viesse de alguma instância exterior a ela, excluindo a relaçao com seu funcionamento psíquico. Havia pouca descriçao de sentimentos como tristeza, alegria, medo ou angústia em seu discurso, ou mesmo do fato que poderia ter relaçao com a doença, como se, realmente, ela estivesse "separada" de seus afetos.
O próprio ato de chorar, que, neste caso, poderia ser considerado uma forma de simbolizar seu sentimento, nunca foi demonstrado por Joana em sessao, sendo que ela mesma afirmava nunca chorar, com exceçao do período em que teve depressao. Assim, dizia: "Eu nao choro, guardo tudo pra mim. Mas daí me dá dor de cabeça e na nuca".
É possível inferir que esta paciente apresenta uma depressao cuja característica principal é a falta de um matiz afetivo para a vida, ou seja, sem expressar tristeza, num estado de desvalimento, como descrito por Freud10 no quadro de melancolia, que se configura como um estado depressivo com pouca energia de reserva necessária para a açao. Nesse caso, o princípio de inércia impoe-se à vida pulsional, que aspira o caminho da constância. Esses pacientes costumam expressar seu estado depressivo como algo que se apresenta no físico, como exemplificam os relatos da paciente7.
Em relaçao às representaçoes psíquicas de sujeitos que apresentam fenômenos psicossomáticos, o conceito de "mentalizaçao"5 é utilizado para concernir à quantidade e à qualidade dessas representaçoes dos indivíduos, sendo que um grau pobre de mentalizaçao deixa o corpo biológico desprotegido, entregue à linguagem somática. Esse detrimento da mentalizaçao, que se refere à baixa capacidade de simbolizar, é uma das características principais de pacientes psicossomáticos, de acordo com o autor. Ocorre neles uma substituiçao da simbolizaçao pela reaçao biológica, como no caso de Joana.
Por outro lado, para pesquisadores do Centro Anna Freud, em Londres, o conceito de mentalizaçao seria "a capacidade para compreender e interpretar o comportamento humano levando em conta os seus estados mentais subjacentes"11. Essa capacidade se desenvolve quando um indivíduo experimentou a si mesmo na mente de um outro durante a infância, num contexto de apego seguro, contexto que, segundo os autores, seria condiçao para seu amadurecimento12.
Nessa perspectiva, a mentalizaçao envolve a capacidade de transformar impulsos em sentimentos e representar, simbolizar, sublimar, abstrair, refletir e extrair significados deles11. E é essa capacidade que a paciente nao apresentou.
Outra característica desse tipo de funcionamento é que a energia psíquica desses sujeitos se encontra livre e fomenta a utilizaçao de caminhos mais rápidos de seu escoamento, o que provoca também uma propensao à açao em detrimento da simbolizaçao, tornando o aparelho sensório-motor como a via principal de exteriorizaçao das demandas pulsionais. Pacientes com essas características apresentam, portanto, condutas pouco elaboradas psiquicamente e utilizam palavras desvinculadas de elementos simbólicos como via de descarga de tensao10,13.
Quanto a esse agir impulsivo, sem vinculaçao simbólica, Joana descrevia situaçoes em que atuava dessa maneira: "As vezes eu sou muito impulsiva, sabe? Quando eu vejo já fiz. Uma vez minha irma e o namorado estavam discutindo e eu fiquei tao nervosa com a situaçao que dei um tapa na cara dele! Nem pensei, sabe?". É um agir descrito pela própria paciente como impulsivo, sem planejamento prévio.
O mecanismo de desafetaçao4 também é regido por esse mecanismo de descarga na açao, visto que esses pacientes encontram no próprio ato o caminho de escoamento de suas tensoes, tal como descrito na situaçao relatada acima, diferenciando-se, portanto, dos neuróticos, que o fazem através do trabalho mental. Os pacientes que utilizam o mecanismo de desafetaçao sao pacientes que procuram compensar a falta de simbolizaçao por um agir compulsivo e se distinguem como indivíduos voltados essencialmente para o "fazer", e nao para o "ser"4,14.
A paciente também se utilizava da palavra como meio de descarga de tensao, atuando na mesma ordem do agir impulsivo. Descrevia, em sessao, situaçoes em que andava "estressada", dando "patadas" nas pessoas de sua convivência, afirmando ter dito essas palavras sem pensar ou sem querer. McDougall4 também assinala essa característica, pontuando que esses pacientes sao marcados por palavras desafetadas, que nao apresentam sua funçao de ligaçao pulsional, de significaçao; sao palavras desprovidas de afeto.
Como explicaçao para o funcionamento psicossomático que percebemos na paciente, pode-se dizer que o indivíduo desafetado4 tende a "ejetar" brutalmente do campo consciente as representaçoes carregadas de afeto, levando-o a agir como se nunca tivesse realmente tido acesso ao material repudiado. Esse afeto "ejetado" se perde sem nenhum tipo de compensaçao psíquica, reduzindo-se à expressao somática, única via possível de escoamento dessa energia "solta", ocorrendo, assim, a ressomatizaçao do afeto, tal como ocorre na primeira infância.
O desenvolvimento de uma organizaçao psicossomática, como descrita acima, se dá ainda na infância de acordo com o processo de organizaçao pulsional que a criança desenvolve nesse momento fundamental de constituiçao do sujeito. Desde o momento do nascimento, a criança, através do suprimento materno, experimenta nao só a satisfaçao fisiológica, mas também algo a mais produzido pela sensaçao de prazer. Essas duas experimentaçoes, as satisfaçoes de suas necessidades e o prazer de ser desejada pela mae, juntamente com os gestos, palavras e fantasias, promovem a erogenizaçao do corpo infantil. Nesse momento, o sujeito tentará superar a ordem fisiológica pela ordem psíquica através do surgimento do "corpo erógeno"3.
O surgimento do corpo erógeno implica transformaçoes importantes para o desenvolvimento do sujeito, tais como a passagem do instinto para a pulsao, da necessidade para o desejo, da excitaçao para a experiência de angústia, do sono fisiológico para o sonho. Portanto, o desenvolvimento dessa dimensao é essencial para o estabelecimento de um equilíbrio psicossomático15,16.
A estruturaçao do corpo além do fisiológico depende de como se caracterizam as primeiras relaçoes objetais do sujeito. Dessa forma, perturbaçoes nesse desenvolvimento podem comprometer os recursos erógenos do bebê, que se manterá preso na fisiologia de seu corpo, nao encontrando, assim, outras vias de expressao e satisfaçao de suas necessidades15,17.
No início da vida do bebê, a importância da mae é fundamental. Sua funçao é a de apresentar o mundo à criança e é sobre esse alicerce que se constrói a subjetividade dela. Portanto, é a mae quem garantirá a vida desse bebê, suprindo suas necessidades biológicas, mas também atuando como uma "película" de proteçao contra estímulos que o bebê ainda nao pode assimilar de maneira adequada4,8.
Essa funçao de "película" ou para-excitaçao19,10 serve como uma barreira de contato, sendo ela muito importante para um desenvolvimento adequado do aparelho psíquico do bebê. O corpo materno "circunda" o bebê com um envelope externo feito de mensagens e que se ajusta com flexibilidade para deixar espaço ao envelope interno, à superfície do corpo do bebê, lugar e instrumento de emissao de mensagens: "ser um Eu é sentir a capacidade de emitir sinais ouvidos pelos outros"18. Dessa forma, a mae assume o papel de intérprete das reaçoes de seu filho, que ainda nao tem a capacidade de simbolizar. Através dessa gerência materna, a criança tem a possibilidade de adquirir competências específicas e desenvolver-se de maneira autônoma aos níveis mais evoluídos de funcionamento.
Outros autores falam sobre a funçao reflexiva dos pais como um importante suporte ao estado mental da criança. A funçao reflexiva e a capacidade de mentalizaçao parecem ser fatores importantes para a organizaçao do self (personalidade) e a regulaçao do afeto. Essas capacidades sao adquiridas no contexto dos relacionamentos sociais primitivos da criança19.
Apesar de discordâncias4,13 entre os autores em relaçao ao tema da psicossomática, eles estao em consonância no que diz respeito à importância da relaçao mae-bebê e de sua funçao na formaçao psíquica da criança. Observam14 que:
[...] nos casos em que a figura materna nao cumpre de forma apropriada a funçao de para-excitaçao, os sinais pré-verbais que o bebê emite nao sao inseridos em um código linguístico. As experiências que a criança vive nao serao, portanto, devidamente simbolizadas, e seu corpo se apresentará como a via privilegiada de exteriorizaçao de seus conflitos, engendrando o desenvolvimento de somatizaçoes.Trazendo essas consideraçoes para o caso de Joana, ela sempre relatava sobre sua mae, demonstrando manter uma ligaçao intensa com ela, contando tudo o que acontecia em sua vida para a mae, demonstrando uma forte dependência em relaçao a esta e às opinioes dela sobre sua vida.
Psicóloga: Você acha que o aparecimento dessas manchas justamente agora pode ter alguma relaçao com algo que você está passando na sua vida? Como já discutimos antes, você apresentou muitos problemas orgânicos em momentos em que você teve que lidar com alguma separaçao significativa, tal como na sua infância, na separaçao com seu pai, ou ainda no seu divórcio.Como vemos, por meio desse tipo de intervençao Joana conseguiu colocar em palavras o que a incomodava e o que poderia estar relacionado com o aparecimento das manchas. Assim, o fato de Joana ter começado a dar expressao ao seu sofrimento, em relaçao aos processos de separaçao que vivenciava, pode ter proporcionado um início de simbolizaçao dessas separaçoes, inscrevendo-as no seu psíquico e possivelmente aliviando o soma. Nesse caso, suas manchas começaram a diminuir.
Joana: Hum... eu entendi o que você está falando. Eu nao sei, mas quando você falou, lembrei que minha irma vai se casar. Eu posso nao aparentar, mas está bem complicado pra mim, minha vida vai mudar bastante...
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