Rev. bras. psicoter. 2015; 17(1):69-82
Pinéa ACF, Sei MB. Falso self e gesto espontâneo na psicoterapia psicanalítica de uma criança adotiva. Rev. bras. psicoter. 2015;17(1):69-82
Relatos de Casos
Falso self e gesto espontâneo na psicoterapia psicanalítica de uma criança adotiva
False Self and spontaneous gesture in psychoanalytic psychotherapy of an adopted child
Ana Carolina Freitas Pinéa1; Maíra Bonafé Sei2
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Este trabalho se utilizou da psicanálise winnicottiana como referencial teórico e teve como foco discutir, a partir de um caso de adoçao, a relaçao existente entre o conceito de falso self e a inibiçao do gesto espontâneo e da criatividade no brincar. Por meio da metodologia qualitativa, buscou-se apresentar conceitos psicanalíticos pertinentes ao assunto, tendo como base um caso clínico infantil atendido em um serviço-escola de Psicologia de uma universidade pública.
Participou deste estudo uma criança do sexo feminino, com sete anos de idade, a qual foi atendida em psicoterapia psicanalítica de crianças, com frequência semanal, ao longo de oito meses. Esse tipo de intervençao configura-se como uma adaptaçao do método psicanalítico à linguagem da criança, que faz uso de recursos gráficos e lúdicos para a comunicaçao de conteúdos de seu mundo interno1,2. A psicoterapia foi acompanhada por encontros de orientaçao à mae, com o intuito de contribuir para que esta pudesse organizar-se de maneira a melhor ofertar um ambiente suficientemente bom para a paciente em questao3.
Trata-se de um estudo qualitativo pautado no método de estudo de caso a partir de um referencial psicanalítico4, por assim ser possível um maior aprofundamento da compreensao acerca do tema em questao. Quanto à psicanálise, acredita-se que esta possibilita o empreendimento de um olhar focado na relaçao sujeito-sujeito, nao sujeito-objeto, ou seja, se preocupa em compreender as relaçoes intersubjetivas e os significados/sentidos dos fenômenos estudados sem precisar generalizar os resultados nem buscar constantemente relaçoes causais entre os eventos5.
No que se refere ao tema a ser abordado, considera-se que, atualmente, muitas sao as reflexoes em torno da complexidade do assunto da adoçao, inclusive nos meios midiáticos e jurídicos. De acordo com Krahl, Moreira e Roldo6, "a adoçao implica algumas peculiaridades que devem ser levadas em conta inicialmente e durante o processo de desenvolvimento da criança" (p. 163). Considerando um referencial psicanalítico, deve-se destacar o fato de que
"os pais devem buscar conhecer seus desejos internos de exercer uma funçao parental identificando suas reais possibilidades de se doarem efetivamente a uma criança que possui uma história pré-adotiva e que agora necessita ser cuidada e amada por uma nova família, a qual progressivamente assumirá os papéis e registros dos primeiros cuidadores, tornando-se a provedora de novas significaçoes e ressignificaçoes no psiquismo infantil" (p. 163)6.Além da importância de se trabalhar as fantasias inconscientes e de se tentar reconhecer o verdadeiro desejo dos pais em relaçao ao filho adotivo, um aspecto essencial no que concerne à escolha pela adoçao refere-se à "capacidade da família de cuidar de uma criança, adaptando-se às necessidades desta ao longo de seu amadurecimento" (p. 52)7.
"o conceito de falso self proposto por Winnicott é de grande valia para se pensar nos relatos recorrentes de pessoas que procuram análise ao viverem episódios de angústia intensa e esvaziamento do sentido da vida, ao mesmo tempo em que nao encontram, seja em seus relacionamentos afetivos, seja em sua vida profissional, nada que justifique este sentimento de irrealidade e vazio" (p. 50)8.Retornando à questao da adoçao, Winnicott11 argumenta que "é melhor que uma criança ou seja criada nos primeiros estágios por sua mae biológica [...] ou que os pais adotivos assumam os cuidados o mais cedo possível no período inicial, talvez já nos primeiros dias de vida" (p. 124). A importância do cuidado oferecido pela mae biológica liga-se ao estado de preocupaçao materna primária desenvolvido ao final da gestaçao e que a deixa mais sensível às necessidades do bebê, algo essencial nesses primeiros meses de vida.
"É o pai ser necessário para dar à mae apoio moral, ser um esteio para a sua autoridade, um ser humano que sustenta a lei e a ordem que a mae implanta na vida da criança. Ele nao precisa estar presente o tempo todo para cumprir essa missao, mas tem de aparecer com bastante frequência para que a criança sinta que o pai é um ser vivo e real" (p. 129).Todavia, sabe-se que há situaçoes nas quais se tem a separaçao conjugal dos pais. Diante da separaçao de pais adotivos, como no caso de Gabriela, Winnicott11 indica que "a fragmentaçao de uma família adotiva necessariamente seria desastrosa; mas [...] eu nao encontrei nas crianças adotadas assim afetadas maior perturbaçao do que em outras crianças" (p. 136).
"Renunciam à imagem do filho biológico, que se pareceria com eles, e empreendem sua incursao no mundo da adoçao. Encontramos casais que puderam elaborar de maneira satisfatória sua limitaçao biológica, mas muitas vezes a esterilidade é sentida como uma ferida narcísica, que castra a fantasia de continuidade biológica e imortalidade dos pais. Nestes casos, pode haver sentimentos ambivalentes em relaçao ao filho adotivo, ou até uma hostilidade inconsciente, já que ele representa a lembrança inquestionável da limitaçao dos pais" (p. 25).
"O falso self ou o verdadeiro self se fundem nas primeiras relaçoes objetais, quando a mae interage com o lactente física e simbolicamente. As alucinaçoes sensoriais do lactente produzem o gesto espontâneo que se efetiva nas reaçoes motoras, dando a ilusao de onipotência para o bebê. Se a mae é inábil e nao percebe as necessidades do seu filho e nao propicia a expressao de sua "onipotência" em gestos espontâneos, isso funda o falso self. Ao contrário, quando o lactente é bem acolhido ele inicia a constituiçao do verdadeiro self e isso vai lhe possibilitar acreditar na realidade externa. É dessa forma que as açoes e reaçoes do bebê, desenvolvidas pela coesao do sistema sensório-motor através da espontaneidade do gesto, vai demandar da mae que lhe cuida identificaçao para com ele, o bebê, a fim de propiciar-lhe o acolhimento adequado para a formaçao do verdadeiro self" (p. 20)16.
"O principal aspecto do falso self é a submissao e a imitaçao, pois o bebê constrói um conjunto de relacionamentos falsos. Por meio de introjeçoes, se torna igual à figura dominante externa do momento, como forma de adaptar-se e preencher suas expectativas e obter seu amor. Essa configuraçao gera no observador uma sensaçao de irrealidade e futilidade. No entanto, se torna inevitável para o bebê, pois mostrar o verdadeiro self seria equivalente a aniquilá-lo [...]. Em outras palavras, é "melhor" para a criança manter a organizaçao do falso self do que nao sobreviver às condiçoes anormais do ambiente" (p. 83)17.A criança parecia ter dificuldade em se deixar conhecer e a confiar na terapeuta. Provavelmente também era difícil confiar nos cuidados da mae, já que esta se atrasava com frequência para as sessoes de psicoterapia, usando sempre o trabalho como justificativa nao só para os atrasos, mas também para quando faltava sem avisar previamente. A dinâmica da terapia ficou comprometida em várias sessoes devido ao pouco tempo que restava com a criança. Assim, diante de uma média de 20 minutos de atraso por sessao, as sessoes inicialmente estabelecidas como tendo sempre 50 minutos passavam a ter entre 25 e 30 minutos de duraçao.
"se adaptar ao ambiente, se preocupar com o que se espera dela, pois este último nao se mostra preparado suficientemente para lhe proporcionar a qualidade de cuidado que necessita. [...] o medo de ser novamente abandonada pode contribuir para que a criança adotiva desenvolva uma parte de si mesma excessivamente artificial, ou desvinculada de sua personalidade nuclear" (p. 23)18.Entendendo que "a possibilidade de confiar é uma premissa indispensável para uma entrega, para estar com um outro que nao seja ameaçador e nao iniba o próprio gesto" (p. 54)8, pode-se também dizer que Gabriela parecia ter dificuldade para confiar em sua própria capacidade criativa, pois muitas vezes ficava esperando que a terapeuta lhe dissesse o que fazer em vez de buscar recursos internos e externos próprios. Acredita-se que aquilo que Winnicott9 chamou de falso self possa ter a ver com essa dificuldade de criar, de se utilizar de recursos lúdicos e gráficos sem regras repetitivas/mecânicas e de conseguir brincar sem a necessidade de se submeter o tempo todo ao que o outro quer. Cabe apontar que vários sao os graus de falso self existentes, que abrangem desde um comportamento social, sem caráter patológico,
"no sentido da renúncia à onipotência e garantia do convívio social - presente na saúde - até o falso self que se implanta como real, em total submissao, onde o self verdadeiro permanece oculto, o que implica na ausência do que poderíamos chamar de gesto espontâneo. No grau extremo existe um sentimento de vazio, de que a vida nao vale a pena, que nao há razao para viver" (p. 53)8.Sendo "o meio ambiente facilitador que constrói na criança a possibilidade de acreditar no mundo e em si mesma" (p. 19)16, procurou-se, em algumas sessoes específicas, priorizar atividades nas quais a paciente pudesse se manifestar mais ativamente, pois várias vezes argumentava um nao saber fazer que nao era verdadeiro. Deste modo, para nao ficar apenas nos jogos e tentar buscar a expressao de um gesto mais espontâneo, numa das sessoes foram levados materiais diversos (miçangas, canutilhos, pedrarias, purpurina, pedaços de tecido florido, rendas diversas, fitas de cetim coloridas, novelos de la, palitinhos de madeira/hashis, linha, agulha) para que ela confeccionasse o chaveiro que portava a chave de sua gaveta, a qual somente ela e a terapeuta tinham acesso. No entanto, ela deu a ideia de que fosse feita uma boneca, a qual nunca foi terminada, pois a criança sempre preferia os jogos.
"o 'bom adotado', aquela criança comportada que se ajusta em demasia ao que se espera dela, aparentemente tranquiliza os pais e a si mesmo com sua forma de organizaçao psíquica. Ele também nao se expoe a todos com questionamentos sobre sua origem biológica, sua história e suas dúvidas" (p. 24)18.
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