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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2015; 17(1):13-24



Artigos Originais

Alguns aspectos teóricos sobre o campo em uma psicoterapia de orientaçao analítica*

Some theoretical aspects about the analytic field in a psychoanalytic psychotherapy*

Patrícia Ruschel Daudt

Resumo

O conceito de campo introduz um novo olhar sobre o fenômeno da relaçao terapêutica de orientaçao analítica. Ao considerar o analista como participante integral nessa relaçao, a situaçao analítica adquire um caráter complementar, ou seja, nenhum membro desse par pode ser entendido sem o outro. O propósito deste trabalho é o de abordar aspectos identificados no campo analítico em uma psicoterapia de orientaçao analítica. Como forma de ilustraçao apresenta-se uma vinheta clínica.

Descritores: Teoria psicanalítica; Psicoterapia; Relaçoes interpessoais.

Abstract

The concept of analytic field introduces a new way of looking at the therapeutic relationship. When taking the analyst as a full participant in the relationship, no member of the analytic pair can be understood without considering his interaction with the other. The aim of this paper is to address analytical field aspects in a psychoanalytic psychotherapy. A clinical vignete is presented to illustrate them.

Keywords: Psychoanalytic therapy; Psychotherapy; Interpersonal relations.

 

 

INTRODUÇAO

O conceito de campo inaugura um novo olhar sobre o fenômeno da relaçao terapêutica na psicoterapia de orientaçao analítica. Introduzido pelo casal Baranger1,2, apresenta a ideia do analista como participante integral nessa relaçao. Na concepçao dos autores, mesmo que o analista mantenha a necessária neutralidade e passividade, a situaçao analítica adquire um caráter complementar, ou seja, nenhum membro desse par pode ser entendido sem o outro.

Em decorrência disso observam-se mudanças na avaliaçao do andamento do processo terapêutico. Dirigir o olhar, tanto ao analisando quanto ao analista, permite pensar em uma dinâmica que considere as dificuldades surgidas no relacionamento analítico como uma patologia específica dessa estrutura do par.

O propósito deste trabalho é o de abordar aspectos identificados no campo analítico em uma psicoterapia de orientaçao analítica. Como forma de ilustraçao apresenta-se uma vinheta clínica.


CAMPO ANALITICO: CONTRIBUIÇOES TEORICAS

Conforme Bernardi3, a concepçao de campo analítico busca conceituar os fenômenos centrais da análise, entendida por Baranger e Baranger1 como encontro profundo de duas subjetividades, intensamente comprometidas na tarefa de promover as transformaçoes psíquicas do analisando. Em seu trabalho inicial o objetivo dos autores foi de realizar uma observaçao e descriçao detalhada dos aspectos considerados essenciais da situaçao analítica entendida como campo dinâmico1,3.

Além da influência direta de pensadores da época provenientes da psicanálise e psicologia social, encontram-se, também, ideias filosóficas e literárias compondo o contexto em que emergiram tais contribuiçoes. Dentre elas a psicologia da Gestalt, que prioriza a importância da percepçao das estruturas, permitindo descobrir novas dimensoes da realidade, e a abordagem fenomenológica de Merleau-Ponty3. A ênfase em examinar e descrever as características dos fenômenos clínicos, também, tem relaçao com as ideias de Racker ao considerar o analista como um observador participante. Na visao dos autores, amplia-se assim a capacidade perceptiva e reflexiva do analista diante da situaçao interpessoal da análise1.

A evoluçao de uma dimensao unipessoal para bipessoal tem se dado na concepçao do tratamento analítico que envolve a ideia de um trabalho de caráter intersubjetivo. Conforme Baranger2, quando se fala de campo analítico, entende-se este como uma estrutura, produto dos dois integrantes da relaçao, e que, por sua vez, os envolve num processo dinâmico e eventualmente criativo. No mesmo trabalho a autora refere sobre a evoluçao de uma concepçao mais objetivante para uma mais intersubjetiva nos trabalhos de Freud, especialmente quando este descobre a contratransferência2,4. Cabe lembrar que Freud4 introduziu o conceito de contratransferência em 1910 e que mesmo considerando esta um obstáculo ao processo terapêutico, abriu a possibilidade (mesmo que décadas depois) de se entender melhor esse fenômeno e como utilizá-lo como ferramenta no processo analítico. Houve uma notável ampliaçao desse conceito com os trabalhos de Racker e Heinmann, em que o analista nao é visto como um continente vazio à espera de ser preenchido pelas projeçoes do paciente5. Mesmo partindo dos pressupostos desenvolvidos por esses autores sobre contratransferência, nota-se ainda que o casal Baranger refere-se a um fenômeno que transcende as manifestaçoes específicas da mente do paciente ou do analista3,6. Levar em conta a contratransferência juntamente com a transferência e ainda falar de transferência-contratransferência como unidade é diferente daquilo que desejam exprimir com o conceito de campo, pois partem da "intersubjetividade como evidência de base"2.

Para Baranger e Baranger1, o fato de considerarem o conceito de campo na descriçao da situaçao analítica se deve às características estruturais dessa situaçao de caráter temporal e espacial, orientada por linhas de força e dinâmicas determinadas, com suas leis evolutivas próprias e com finalidades de caráter geral e momentâneo. Sendo assim, o campo se estrutura em três níveis, a moldura funcional da análise, o diálogo analítico e a estrutura dinâmica inconsciente que subjaz a esse diálogo1,2.

Essa configuraçao básica da situaçao analítica também pode ser chamada de relaçao psicoterapêutica bipessoal; no entanto, observam os autores, esta só é bipessoal no plano da descriçao perceptiva comum. Outras pessoas sempre intervêm no relato do paciente, em sua fantasia, por exemplo. Dessa forma, na situaçao terapêutica bipessoal, com a organizaçao básica do campo, vao se fazendo e desfazendo as estruturas tri e multipessoais, em mudança constante1.

Baranger1 considera que tanto as vivências contratransferenciais do analista como as manifestaçoes transferenciais do paciente têm origem na mesma fonte, ou seja, em uma fantasia inconsciente básica que, enquanto criaçao do campo, tem suas raízes no inconsciente de cada participante. Bernardi3, ao revisar esse conceito na obra dos Baranger, aponta suas diversas fontes, citando as contribuiçoes de Susan Isacs, que considerou a fantasia expressao das diversas formas da vida psíquica (impulsos, sentimentos e defesas), a noçao de identificaçao projetiva de Melanie Klein7 e as conceituaçoes de Bion, quando fala do suposto básico do funcionamento grupal3,1.

Para Bion, por exemplo, a situaçao analítica corresponde a uma metapsicologia do par em vez de uma psicologia do indivíduo8. Ao traduzir para a situaçao analítica individual o que foi descrito para o grupo como suposto básico, entende-se a fantasia inconsciente básica que surge na situaçao analítica criada pela mesma situaçao de campo, ou seja, pela estrutura da relaçao, que por sua vez contribui em cada momento para estruturá-la6. Esta surge na situaçao analítica em seu processo, enraíza-se no inconsciente de cada um dos integrantes, incluindo suas histórias e personalidades, e assume, de acordo com o momento, distintas funçoes imaginárias. Por meio destas e a partir de suas transformaçoes, quando se entende e interpreta, se produz a dinâmica do processo e assim sucessivamente vao se criando novas estruturas que nao existiam previamente, construindo a fantasia do par analítico8.

Outro aspecto do campo, intimamente relacionado com a manifestaçao da fantasia inconsciente da dupla analítica, é a presença do caráter ambíguo no campo. Todo acontecimento dentro do campo analítico é vivido de acordo com a categoria de "como se"1. Essa ambiguidade "essencial" permite que a dimensao real da relaçao analítica seja concebida numa relaçao dialética com os aspectos inconscientes fantasiados, em que todas as coisas ou acontecimentos no campo podem, por sua vez, ser outra coisa1,3.

A possibilidade de o par analítico vivenciar todos os demais pares imagináveis e nao atuar em nenhum deles permite observar os diversos usos do processo de identificaçao projetiva. O par analítico depende do processo de identificaçao projetiva, e a fantasia inconsciente do campo bipessoal é um interjogo de identificaçoes projetivas e introjetivas, assim como de contraidentificaçoes1,9.

Ao longo da análise será possível acompanhar os passos de um processo que tanto analista como analisando sairao modificados, embora de modo e graus diferentes2. Cabe lembrar ainda que, devido à assimetria do relacionamento, o processo de subjetivaçao e conhecimento sobre si deve ser mais significativo e amplo no polo do paciente do que no polo do analista10.

A vantagem de poder pensar as coisas em termos de campo está no fato de que a dinâmica da situaçao analítica e seus inevitáveis entraves nao resultam da resistência do paciente ou do analista, mas representam a existência de uma patologia específica dessa estrutura2. Há, portanto, uma grande mudança do enfoque no trabalho do analista, que procurará conhecer qual é a fantasia básica ativa no campo e como cada um se relaciona e se posiciona nessa estrutura, de modo a permitir uma oscilaçao entre alienaçao e subjetivaçao a cada ciclo de cristalizaçao/movimento do e no campo. Nessa contínua oscilaçao entre abertura e repetiçao, entre paralisaçao e movimento no campo, forma-se uma estrutura inconsciente presente em todo relacionamento terapêutico, o baluarte1.

O conceito de baluarte refere-se a uma formaçao defensiva do campo, em que estao envolvidos paciente e analista3. A palavra baluarte se refere a um tipo específico de fortificaçao que se projeta para fora a partir das muralhas de uma fortaleza, permitindo aos defensores atacar quem quer que tente avançar sobre as muralhas, tornado assim mais difícil o ataque à estrutura principal11. Na dinâmica da situaçao analítica o campo se move e o analista pode intervir de forma mais eficaz quando o analisando se arrisca, mas especialmente em relaçao àqueles aspectos da vida pessoal ou da fantasia que o analisando considera como seu baluarte e que, em geral, é o refúgio inconsciente de fantasias poderosas de onipotência1. Nao existiria analisando sem baluartes, assim como a medida do êxito da análise depende em grande parte da medida que o analisando consiga aceitar analisá-los, ou seja, aceitar perdê-los e, com eles, as fantasias básicas de onipotência1.

Outro caráter do baluarte é a forma diversa que pode se apresentar entre uma pessoa e outra. Assim, o baluarte, provavelmente, está presente nos limites terapêuticos de cada dupla; seu enfrentamento e a eventual desmistificaçao e destruiçao dependem das possibilidades de cada par terapêutico ao elaborar suas angústias de caráter mais primitivo1. Isso, no entanto, será possível se o analista for capaz de observar-se, junto com seu paciente, como participante da fantasia imobilizadora e, a partir desse segundo olhar, formular sua interpretaçao. Neste sentido, a formaçao de baluartes no campo sao obstáculos importantes, pois, na medida em que possam ser identificados pelo analista e, também, compreendidos, se tornam fatores propulsores do processo de análise1,3.

Parece consenso, ao se revisar a literatura, que o conceito de campo analítico trouxe com ele mais complexidade ao trabalho, assim como mais possibilidade de compreensao quanto ao que ocorre na sessao analítica10. Neste sentido, Baranger8 refere que a teoria de campo, citada ou nao como tal, forma parte do pensamento atual e de muitos analistas. A característica comum desses autores é de descentrar o estudo da psicopatologia do paciente para a consideraçao da relaçao analítica e seu processo, revelando assim os fenômenos que a constituem, que favorecem ou dificultam a meta final da análise. A autora cita, por exemplo, Ogden, o casal Botella, Bollas e Green, que, ao desenvolverem seus conceitos, têm em comum considerarem que algo se produz na sessao a partir de um contato emocional estreito entre analista e paciente, o que nao seria possível ocorrer fora do enquadramento analítico, ou seja, sem as regras que estruturam essa relaçao particular e única entre a dupla paciente-analista8,10.

Em uma revisao sobre campo e intersubjetividade, Favalli12 apresenta certos aspectos das tendências que a teoria do método psicanalítico tem sofrido. Essas tendências, por exemplo, estao presentes nos conceitos de campo e de intersubjetividade. Autores atuais como Ferro e Ogden representam algumas das versoes contemporâneas desses conceitos em psicanálise.

Nos trabalhos de Ferro13 encontra-se uma confluência das conceitualizaçoes de Bion e Baranger e Baranger1. A presença do caráter de campo bipessoal aparece de forma constante, no qual somente é possível conhecer-se a fantasia inconsciente da dupla pelas contribuiçoes da vida mental do paciente e analista, através da mediaçao das identificaçoes projetivas recíprocas12,13. Entre paciente e analista constitui-se um campo relacional e emocional no interior do qual se criam áreas de resistência da dupla. Além do trabalho do analista em desfazer essa resistência, o analista conta, também, com o paciente, que é seu melhor colega (inspirado em Bion), pois assume a funçao de apontar continuamente tudo o que acontece no campo, consentindo uma verdadeira transformaçao das forças emocionais presentes e que constituem o próprio campo13.

Ferro13 se refere à importância da identificaçao projetiva, entendida a partir de seu caráter fortemente emocional, como algo que permite uma contínua troca de elementos emocionais que encontrarao, aos poucos, acesso às palavras. As identificaçoes projetivas estabelecem o "estatuto emocional específico e subterrâneo" do par, que deverá encontrar a capacidade de narrar com sonhos, desenhos, anedotas, tudo o que acontece nas "profundezas da troca relacional"13.

Outros conceitos (da narratologia), como de "personagens", revelam, por exemplo, as inúmeras possibilidades de histórias expressando, sempre no momento atual, o que se passa entre as duas mentes da relaçao analítica. Os personagens do diálogo, dentre outros, sao testemunhas da elaboraçao feita pelas mentes das identificaçoes projetivas recíprocas, sendo o modo pelo qual se pode comunicar em imagens e em histórias compartilháveis tudo o que está acontecendo no par. Neste sentido os personagens brotam como necessidade do texto relacional de exprimir emoçoes e afetos12,13.

Ao enfatizar os sentimentos do presente, sendo estes passíveis de se conhecer, considera que uma outra história está sendo construída em conjunto. Para isso utiliza-se tanto da transferência/contratransferência como da "relaçao" que se constitui pela experiência intersubjetiva inédita. A ênfase no polo da relaçao evidencia-se, dentre outros, nas interpretaçoes narrativas a partir das "interpretaçoes fracas" devido ao seu conteúdo insaturado e ao seu caráter aberto, permitindo ulteriores contribuiçoes do paciente12,13. A ideia central é de que o encontro analítico deva construir-se em um espaço gerador de uma experiência emocional da dupla, que ao adquirir um significado mútuo se transforma em uma nova história cuja narrativa é sempre "composta a quatro maos"12.

Ogden apresenta o tema da intersubjetividade com certa independência em relaçao ao conceito de campo. Essa abordagem, com marcada influência de Klein, Bion e Winnicott, apresenta uma forma de pensar que baseia seus princípios na dialética de Hegel12,14. Para Ogden14, os sujeitos da psicanálise mantêm entre si uma relaçao dialética, de maneira que analisando e analista nao podem ser pensados como entidades separadas que tomam um ao outro como objetos. Neste sentido, nao se refere a um campo em que se processam os fenômenos bipessoais, mas sim à geraçao de um terceiro sujeito (o terceiro sujeito intersubjetivo), que passa a interagir dialeticamente com os participantes da dupla. Neste contexto, analista e analisando, enquanto criadores do terceiro analítico, destroem-se e recriam-se mutuamente, mantendo uma constante tensao dialética entre esse terceiro elemento e as individualidades separadas de cada um dos componentes da dupla14.

A identificaçao projetiva nessa abordagem é entendida mais como uma forma específica do terceiro analítico do que seu caráter universal. Para Ogden14 a identificaçao projetiva comporta, portanto, um paradoxo central: os indivíduos envolvidos nessa forma de relaçao subjugam-se inconscientemente a um terceiro intersubjetivo mutuamente produzido (o sujeito da identificaçao projetiva). A nova entidade intersubjetiva que é criada, o terceiro analítico subjugador, torna-se um veículo por meio do qual pensamentos podem ser pensados, sentimentos sentidos, sensaçoes vivenciadas, experiências estas que existiam de forma potencial para cada um dos indivíduos desse processo psicológico-interpessoal. A resultante disso pode ser um colapso parcial do movimento dialético da subjetividade e intersubjetividade12,14.

Nessa abordagem, para que ocorra crescimento psicológico, deve haver superaçao desse terceiro subjugador e o restabelecimento de uma dialética nova e mais geradora de unicidade e dualidade, similaridade e diferença, subjetividade individual e intersubjetividade. Um processo analítico bem-sucedido envolve a superaçao desse terceiro e a reapropriaçao das subjetividades transformadas pelos participantes como indivíduos separados e, ainda assim, interdependentes. Isso ocorre através de um ato de mútuo reconhecimento que, muitas vezes, é mediado pela interpretaçao, por parte do analista, da transferência e contratransferência e do uso que o analisando faz da interpretaçao do analista14.


ILUSTRAÇAO CLINICA

C., sexo masculino, 38 anos, buscou psicoterapia por estar terminando um relacionamento com o namorado. Sentia-se ansioso, associando a isso o fato de seu relacionamento estar desgastado pelos frequentes desentendimentos. C. tem orientaçao homossexual.

Os pais de C. se separaram quando tinha 6 anos de idade, a mae casou-se novamente, havendo mudança para outra localidade. Assim, o novo companheiro da mae assumiu, também, o papel de pai/padrasto. Essa situaçao foi marcada pelo afastamento físico da figura parental e por recordaçoes de uma situaçao "tensa" que se instalava quando o pai biológico fazia contato telefônico. Segundo C., nesse contato o pai expressava seu ressentimento pelo afastamento, por vezes mostrando desespero.

Com o andamento do tratamento, C. pôde mostrar mais profundamente os momentos de vazio e de desesperança que tomavam conta dele. Muitas vezes substituía essa sensaçao pelas entradas em banheiros públicos ou olhares na rua que facilmente poderiam se transformar em encontros com finalidade sexual.

C. mostra-se bastante vinculado à psicoterapia, raramente faltando ao longo dos anos de atendimento. Pelo lado da terapeuta também se observa uma disposiçao em atender C. e um interesse em estudar o caso, levando-o à supervisao, por exemplo. Uma característica comum ao longo dos atendimentos era a presença de um estado de busca conjunta de entendimento e de uma expectativa de construçao pela dupla paciente-terapeuta do que era trazido à sessao. Pode-se dizer que um clima de confiança foi se instalando cada vez mais na dupla, por parte de C., ao trazer mais livremente os aspectos referidos, e por parte da terapeuta, pela maior confiança no método e no entendimento mais amplo do processo psicoterápico que se instalava.

Recentemente o tema da relaçao com o pai biológico voltou à cena. Este casou-se novamente. C. refere bom relacionamento com a madrasta, que admira por ser uma "pessoa conciliadora", agindo de forma pacificadora nas relaçoes familiares. Após uma ligaçao telefônica do pai biológico para C., este refere que às vezes pensa numa conversa imaginária com o pai: "fico pensando o que ia falar etc... fico imaginando a gente, sentado numa mesa conversando". Pergunto como seria essa conversa, e ele diz que "acaba nao pensando muito". Lembrou-se, também, de como a mae passava uma mensagem "ambígua", ou seja, de ela esperar que tivessem mais intimidade com o padrasto como se "ele fosse o nosso pai" ao mesmo tempo que o recordava das datas importantes, como o aniversário do pai biológico e das férias com este. Na sequência acrescenta que só lembra o que ocorreu depois da separaçao. Segue o seguinte diálogo: T - Chama a atençao nao guardares nada de antes... Algo muito intenso que faz a gente pensar em seu oposto... C - Eu sempre pensei que queria ter sido conciliador, como vejo que a minha madrasta é, mas acabei sendo um miniadulto... Também nao sei como teria sido se fosse mais criança... T - E o que fez com esta separaçao, com as saudades, pensando no vínculo que tinhas e que era com o pai [biológico]... Nessas alturas o clima da sessao estava emocionalmente intenso, ele com os olhos totalmente mareados, algo bastante raro de se observar. Eu senti fortemente essa emoçao (a emoçao da tristeza e da dor provocadas pelo afastamento vivido e a possibilidade de o paciente conectar tais sentimentos) e bem mais de leve senti meus olhos também umedecerem e revelarem essa emoçao vivida ali junto com C. Ele continua: "parece que nem é a minha vida, nao lembro de ter saudades...". Digo que talvez estivesse sentindo assim justamente porque fora bom, das coisas boas. "É, da rotina normal", diz ele. Estava no final da sessao e refiro que "isso" era muito forte mesmo.

A sessao seguinte apresenta um segmento da repercussao dessa experiência. C. diz que lembrou da sessao passada, que foi intensa, que eu (terapeuta) havia me emocionado, também. Ficou com isso durante o dia, por vezes chorando um pouco. Refiro que estava falando da minha reaçao, estimulo a vermos como foi isso para ele. "Foi algo diferente e ver que tu também sentiu...". Confirmo essa percepçao de que foi uma sessao intensa, que ele teve uma experiência forte (de sentir a dor, a tristeza ocasionadas pelo afastamento do pai biológico) e que eu estava passando isso junto com ele, reforçando a ideia de uma experiência emocional vivenciada "junto", mas que nao deixava de ter o caráter individual dele ali. Bastante emocionado, refere que sentiu como algo "bem verdadeiro" e diz "quando te emocionaste também, vi melhor isso." Legitimando sua percepçao, falo: "Me vendo assim, pudeste ver concretamente o teu sofrimento". E responde: "É como um espelho...".

Para a manutençao do sigilo no relato acima, utilizaram-se os métodos de disfarce de características pessoais e fornecimento mínimo de informaçoes, ao mesmo tempo que se preservaram os dados necessários ao entendimento dinâmico do caso, conforme Gabbard15.


DISCUSSAO

Coube ao casal Baranger1 lançar um novo olhar para o processo analítico ao caracterizar este como um campo dinâmico, com suas funçoes e características específicas. Levou-se em conta, na ilustraçao clínica, as descriçoes sobre o paciente, bem como o processo que incluiu a dupla e a terapeuta.

Um dos conceitos enfatizados nesse enfoque recai sobre a ideia de fantasia básica ativa no campo, como cada um se relaciona e se posiciona nessa estrutura, permitindo momentos de movimento e cristalizaçao do processo terapêutico1. Observa-se no relato acima o clima emocional intenso que se estabeleceu a partir de uma conversa imaginária do paciente com seu pai biológico e da repercussao no campo de algo em movimento, mais do que de cristalizaçao. Pode-se pensar também sobre o que antecedeu esse processo, a presença de um baluarte e das fantasias presentes. Acredita-se que essas fantasias dizem respeito à possibilidade e/ou impossibilidade de a dupla entrar em contato com a dor e poder suportá-la. Cabe, também, a cada dupla o enfrentamento do baluarte, assim como sua eventual desmistificaçao e destruiçao dependem das possibilidades de cada par terapêutico ao elaborar suas angústias de caráter mais primitivo1. Traduzindo para o caso essas emoçoes primitivas, como a dor psíquica, pensa-se como para esse paciente expressar sua dor representaria sentir-se humilhado e rechaçado devido a seu caráter narcisista, atitude esta também reforçada pela experiência real do comportamento do pai biológico quando ligava "desesperado". Pela parte da terapeuta pode-se pensar na dificuldade em enfrentar tais sentimentos e/ou suportá-los junto ao paciente, assim como pelo fato de estar adquirindo mais conhecimento e confiança na prática do método psicoterápico de orientaçao analítica. Pensa-se que em alguma medida essas fantasias puderam ser enfrentadas e aceitas, dando assim oportunidade para ocorrência de novos movimentos bem como de futuras e novas cristalizaçoes.

A importância para Ferro13,16 da identificaçao projetiva recai sobre seu forte caráter emocional, permitindo-se uma contínua troca de elementos emocionais e que aos poucos encontrarao acesso às palavras. O paciente foi expressando e projetando sua dor e a terapeuta contraidentificada sentindo isso com ele. Nesse contexto, a dor do paciente pôde ser expressa pelo choro, que na sequência da interaçao da dupla fez parte uma nova narrativa composta a "quatro maos".

O conceito de personagens do mesmo autor, decorrente das identificaçoes projetivas recíprocas, pelos quais se pode comunicar tudo o que está acontecendo no par (como emoçoes e afetos), surgiram na sessao com o paciente16. Dentre as inúmeras possibilidades de histórias, observa-se no relato personagens como o pai biológico, a mae ambígua e a madrasta conciliadora. Pode-se pensar que o contato e a experiência relacional mais próxima proporcionados pela psicoterapia permitiram ao paciente conversar sobre temas pouco explorados em sua vida e expressar esses sentimentos com a terapeuta, que assumiu um caráter nesse contexto menos "ambíguo" (no sentido da mae), mas como possível "conciliadora" (como a madrasta) e promotora da expressao desses sentimentos, que puderam aparecer de forma menos cindida.

Para Ferro12,17, há outra história a ser conhecida que está sendo construída em conjunto. Para isso utiliza-se tanto da transferência/contratransferência como da "relaçao" que se constitui pela experiência intersubjetiva inédita. No relato, o sentimento contratransferencial de uma emoçao forte (de tristeza e dor provocadas pelo afastamento vivido e a possibilidade de o paciente conectar tais sentimentos) remetia a terapeuta a pensar na autenticidade de tais sentimentos, sendo diferente do vazio frequentemente relatado nas sessoes pelo paciente e reconhecido por este quando diz que sentiu como algo "bem verdadeiro".

Essa situaçao também pode ser relacionada ao estado de receptividade materna, designada como rêverie por Bion18, quando a mae/terapeuta, ao captar os sentimentos projetados, permanece numa atitude de recebimento e de acolhida (recebe e processa), na busca de nomear e dar significando às angústias do paciente/bebê.

Conforme Ferro13, a ênfase no polo relacional se expressa nas narrativas a partir das "interpretaçoes fracas" devido ao seu conteúdo insaturado e de caráter aberto por permitir ulteriores contribuiçoes do paciente. No relato pode-se observar, por exemplo, que as expressoes usadas sao de forma coloquial. Por fim, o paciente em momento posterior fala do efeito dessa vivência da dupla e, ao dar sua impressao sobre isso, refere-se ao "espelho". Observa-se aqui a ideia do caráter aberto e possivelmente insaturado de tal intervençao12,13.

As contribuiçoes de Ogden sobre intersubjetividade se baseiam nos princípios da dialética, de maneira que analista e analisando nao podem ser pensados como entidades separadas. Assim, a geraçao de um terceiro no campo analítico é que passa a interagir dialeticamente com os participantes da dupla12,14.

No caso observa-se o terceiro subjetivo quando terapeuta e paciente estao constantemente construindo sua interaçao, tecendo a intersubjetividade típica e única desse par analítico. A emoçao do choro e da dor, ali representada, projetada nos participantes do setting, e a ameaça de sua vivência no campo aparecem com um terceiro subjugador que, ao ser superado (expresso e compreendido), dá lugar para que se reestabeleça a individualidade de cada participante e a nova intersubjetividade do par.

Ogden14 refere ainda que nesse processo cada indivíduo, ao se projetar na outra pessoa e vivenciar o outro como a si mesmo, precisa ainda superar este estado de "estar-fora-de-si-mesmo". Quando o paciente recorda a sessao anterior, refere que esta havia sido intensa e que eu havia me emocionado também. Um pouco mais adiante refere que "foi algo diferente, ver que tu [a terapeuta] também sentiu...". A terapeuta refere da "forte emoçao vivida", redefinindo o que é da dupla e o que é específico do paciente ao dizer "estar passando isto [que é dele] junto com ele". Com isso se reestabelecem os aspectos subjetivos individuais, bem como se criam novos movimentos de intersubjetividade da dupla. O paciente continua seu relato dizendo que sentiu essa experiência como algo "bem verdadeiro", pois "quando te emocionaste também, vi melhor isso...". Reconhece essa experiência como algo que lhe ajudou a se ver melhor... Ao que a terapeuta complementa: "Me vendo assim, pudeste ver concretamente o teu sofrimento", novamente na busca de devolver a ele seus aspectos individuais. Por fim, o paciente diz: "... como um espelho". Assim, parece que foi possível ver-se através dessa experiência compartilhada e de reconhecimento mútuo, pois, além de "ver melhor a sua dor", reconhece a terapeuta como mediadora dessa experiência, oferecendo essa vivência tal qual um espelho que reflete aqueles aspectos que lhe pertencem (por diversas vezes negados e rechaçados em si mesmos).


CONSIDERAÇOES FINAIS

O conceito de campo analítico possibilitou um novo olhar sobre o fenômeno da relaçao terapêutica. A leitura do tema em seus pormenores revela sua complexidade, ao mesmo tempo que amplia a compreensao do trabalho terapêutico. Ficam evidentes as contribuiçoes que se refletem na atitude do terapeuta como um observador participante deste processo de profunda interligaçao de duas subjetividades, os movimentos e paralisaçoes no campo, as fantasias inconscientes do par e os baluartes.

Nas contribuiçoes de Ferro e Ogden observa-se a forma aberta e inovadora com a qual concebem o processo terapêutico de cunho essencialmente intersubjetivo. Já o exercício da integraçao de alguns aspectos da teoria e da prática, a partir de uma ilustraçao clínica, foi rico em termos de aprendizagem, justificando as dificuldades inerentes à sua exposiçao.

A busca em alcançar uma melhor compreensao do fenômeno terapêutico e seus processos parece intrínseca à atividade do profissional desta área. Outras contribuiçoes poderiam se somar a essa busca, mas fugiriam à proposta deste trabalho. O que parece fértil nesta discussao é justamente a manutençao constante de um diálogo no qual o profissional pode variar o "vértice de sua escuta", aprimorando seus recursos de auxílio a quem lhe procura.


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Psicóloga. Mestre em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS). Terapeuta de família (Infapa). Especialista em Psicoterapia de Orientaçao Analítica (Celg/UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil

Correspondência
Patrícia Ruschel Daudt
Av. Taquara, 110, conj. 403
90460-210 - Porto Alegre, RS
pardaudt@gmail.com

Submetido em: 12/11/2014
Aceito em: 30/12/2014

* Trabalho de conclusao do 2º ano do Curso de Especializaçao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica do Centro de Estudos Luis Guedes - 2013 - Orientador: Matias Strassburger

 

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