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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2014; 16(3):86-98



Relato de Caso

Adoçao do ponto de vista da criança

Adoption from the child's point of view

Maria Elizabeth Barreto Tavares dos Reis

Resumo

As necessidades, frustraçoes, desejos e dificuldades enfrentadas pelos pais adotivos sao constantes nos estudos sobre adoçao. Todavia, a maneira como o filho adotivo vivencia a sua doaçao e a adoçao tem sido pouco considerada. O presente trabalho aborda o tema considerando as vicissitudes enfrentadas pelos pais e convoca a refletir sobre as emoçoes vivenciadas pelo filho adotivo. Sao apresentadas algumas reflexoes teóricas motivadas pelo atendimento de uma criança de três anos em psicoterapia psicanalítica. O objetivo consiste em analisar as vinhetas clínicas relativas à adoçao e buscar compreendê-las à luz da teoria existente. Ao manifestar as suas dores e questionamentos, a criança pode ressignificar o processo de adoçao, viver de forma mais harmônica consigo mesma e com seus pais adotivos.

Descritores: Adoçao. Criança abandonada. Paternidade.

Abstract

The needs, frustrations, desires and difficulties faced by adoptive-parents are constants in studies on adoption. However, the way the adopted-child experiences adoption has been of little concern. This paper addresses the issue considering the vicissitudes faced by parents and summons to reflect on the emotions experienced by the adopted-child. Some theoretical reflections motivated by the attendance of a three-years-old child in psychoanalytic psychotherapy are presented. The goal is to analyze the clinical vignettes related to adoption and seek to understand them in the light of existing theory. To express his/her pain and questions, the child may reframe the adoption process, live more harmoniously with him/herself and his/her adoptive-parents.

Keywords: Adoption. Abandoned child. Parenting.

 

 

INTRODUÇAO

Ao verificar a bibliografia a respeito da adoçao do ponto de vista da criança nas bases de dados SciELO, Lilacs, PePsic, BVsalud, percebe-se que a legislaçao vigente quanto aos pré-requisitos exigidos aos pais adotantes, os motivos que levam à adoçao e as características desejadas nos possíveis filhos adotivos têm sido bastante estudados por diversas áreas, inclusive pela psicanalítica atual. Por outro lado, detecta-se carência de estudos sobre os aspectos emocionais vivenciados pela criança antes, durante e após o processo de adoçao. O tema, quando mencionado, geralmente faz parte daqueles que abordam as questoes parentais vivenciadas nas famílias adotivas e a necessidade de melhor preparar os casais candidatos à adoçao. A maneira como a adoçao é percebida pela criança adotada tem sido pouco analisada.

Tendo em vista a exiguidade de estudos a respeito da percepçao da criança sobre a adoçao, neste estudo serao apresentados, inicialmente, temas encontrados na literatura psicológica sobre a adoçao considerando a legislaçao vigente no Brasil, os desejos, as expectativas e os temores vivenciados pelos pais adotivos. Posteriormente, serao apresentados alguns aspectos que têm sido analisados nos poucos estudos encontrados, na atualidade, sobre a percepçao da própria criança a respeito da adoçao.

Considerando a importância de investigar de que maneira o filho adotivo vivencia o processo, serao apresentadas reflexoes sobre a análise qualitativa das vinhetas clínicas relativas à adoçao do caso de uma criança de 3 anos atendida em psicoterapia psicanalítica, tendo como objetivo buscar compreendê-las à luz da teoria existente.


ADOÇAO

Muitos estudos abordam a legislaçao em diferentes países, mas sao insuficientes quanto às implicaçoes psicológicas envolvidas no processo de adoçao1. No Brasil, as famílias tentam reproduzir o modelo biológico de maternidade, paternidade e laços de consanguinidade ao buscar a adoçao. No entanto, estamos vivendo uma nova cultura em que se deve buscar "uma família para uma criança e nao uma criança para uma família" (p. 425)2. Para que a nova lei brasileira seja realmente aplicada, deve-se estudar e amparar as famílias que deixam seus filhos em acolhimento institucional, pois muitas vezes elas nao participam dos processos que implicam a decisao quanto aos destinos deles3. Além disso, é importante investir no preparo dos profissionais para lidarem com o desamparo daquele ser que foi acolhido nao apenas em instituiçoes governamentais, mas também por famílias.

Num estudo teórico4 sobre a adoçao no contexto latino-americano no período 1998-2008, foram encontrados 124 artigos em periódicos indexados, dos quais 13 foram selecionados para análise. Verificouse que a maioria dos casais busca a adoçao em funçao da esterilidade de um ou ambos, embora haja motivos diversos que levem à decisao de adotar, tais como ferida narcísica causada pela impossibilidade de procriar, vazio existencial, medo da solidao na velhice, desejo de salvar o casamento e possibilidade de escolher o sexo da criança. A esterilidade frustra o casal, que vivencia sentimentos de perda, decepçao e luto5.

A construçao dos laços de parentalidade passa por "momentos de identificaçao e estranhamento" que interferem na construçao dos vínculos (p. 433)2. Os pais adotivos podem antagonizar e rejeitar a criança que apresenta características raciais que os perturbam. Além disso, podem associar expressoes de agressividade e/ou de sexualidade consideradas anormais a um passado de prostituiçao ou criminalidade dos pais genéticos. Há necessidade de os pais lidarem com esses sentimentos antes da adoçao, para poder evitar a atuaçao ou projeçao das suas fantasias inconscientes e sentimentos de raiva sobre o adotado5.

A responsabilidade com os filhos está implícita no lugar parental6. Os pais, e especialmente a mae, devem sobreviver às diferentes formas de destruiçao às quais sao submetidos quando os filhos expoem seus poderes, para que o bebê possa desenvolver confiança nas figuras parentais. A mae suficientemente boa provê nao apenas os cuidados básicos de alimentaçao e higiene, mas também busca perceber os sinais das necessidades do bebê. As maes que nao possuem "essa tendência a prover o cuidado suficientemente bom nao podem ser tornadas suficientemente boas pela simples instruçao" (p. 48)7. Ressalta-se que "Winnicott insiste em que se trata de 'adaptaçao à necessidade' [grifo da autora citada] e nao de satisfaçao de desejos", enfatizando que, para ser suficientemente boa, a mae necessita de algo que vai além da simples vontade de ser mae (p. 133)6.

As mudanças vivenciadas ao longo da gestaçao culminam com a "preocupaçao materna primária" (p. 52)7, através da qual a mae costuma se identificar com o filho que traz em seu ventre, podendo desse modo atingir uma "percepçao muito sensível do que necessita o bebê. Isto é uma identificaçao projetiva". Esse fenômeno8 implica o bebê projetar no objeto partes excindidas do seu self e identificá-las como se fossem do objeto, e nao suas. A identificaçao projetiva pode ser utilizada como uma forma de comunicaçao mae-bebê9, em que a mae capta os sentimentos e emoçoes projetadas, ainda nao pensáveis pelo bebê, as decodifica e devolve ao bebê de forma pensável.

Se durante a gestaçao o psiquismo materno se prepara para receber o bebê, ser capaz de funcionar de forma suficientemente boa e fazer uso da identificaçao projetiva como uma das formas primitivas de comunicaçao no início das relaçoes objetais entre o bebê e sua mae, conforme mencionado anteriormente, pode-se hipotetizar que a mae adotiva enfrenta mais dificuldades em compreender e se adequar às necessidades do filho.

As disposiçoes para os traços físicos e temperamentais podem ser herdadas, o mesmo nao ocorrendo com os valores e as formas de desejar, pensar, agir5. Entretanto, os pais adotivos, muitas vezes, buscam na herança biológica justificativas por toda a angústia causada por nao saber o que ocorre com seu filho. Tem-se a impressao de que os pais adotivos precisam destruir a imagem dos pais biológicos para se afirmarem como pais verdadeiros; por outro lado, há necessidade de o adotivo ter um tempo para aprender e adaptar-se à linguagem dos pais adotantes, para entao se autorizar a ser filho deles10.

Na base da adoçao existe uma história de rompimento precoce de vínculos afetivos. Espera-se que os pais substitutos venham a suprir as necessidades do filho adotivo e contribuir para a elaboraçao de traumas decorrentes da ruptura daqueles laços afetivos iniciais através de uma base segura na nova família4. A vivência do nascimento é duplamente traumática para a criança adotiva, pois ela experimenta dois desprendimentos, intra e extrauterino, da mae biológica5. O bebê perde todo o vínculo corporal anteriormente vivido e necessita aprender a linguagem e os sinais de outro corpo. Ressalta-se que esse "hiato biológico fica gravado como um engrama de sensaçoes corporais desagradáveis vinculadas a desproteçao e fragilidade" (p. 44)5, que surge quando a criança ainda nao recebeu quaisquer informaçoes a respeito de sua origem. A descontinuidade do vínculo pode contribuir para maior sensibilidade a situaçoes de separaçao e medo latente de ser abandonado. As fantasias de roubo vivenciadas pelos pais adotivos, como se o filho tivesse sido usurpado de sua família biológica, podem estar relacionadas a conflitos edípicos ligados aos desejos inconscientes de roubos dos bebês de seus pais (p. 59)5. Essa sensaçao de parentalidade ilícita permaneceria como "pano de fundo inconsciente", influenciando as relaçoes familiares e o aparecimento de excesso de zelo e medo extremado de perder a criança adotada. Ela se manifesta tanto no temor pela conduta retaliativa dos pais biológicos, tentando reverter a adoçao, quanto no ciúme e receio de que o próprio terapeuta possa vir a roubar a criança. Vários estudos abordaram a questao da fantasia de roubo e temor à retaliaçao pelos pais biológicos4. Além disso, os pais adotivos temem que a revelaçao da adoçao ao filho possa levar a consequências nefastas ao psiquismo da criança. Entretanto, o nao contar pode dificultar o processo de desenvolvimento psicológico, interferindo na formaçao da identidade da criança e de sintomas psicopatológicos.


A CRIANÇA ADOTIVA

Em estudo11 em que foram descritos três atendimentos clínicos de crianças adotivas e seus respectivos pais, verificou-se a importância nao apenas de a criança saber que é adotada, mas também de conhecer a história pregressa e possibilitar que toda a família fale sobre os questionamentos referentes ao processo vivenciado. O adotivo vivencia dramas e temores diversos, desde o questionamento sobre o seu lugar no mundo e das particularidades da sua história até a formaçao da própria identidade5. Por outro lado, adultos adotados na infância apresentam melhor desenvolvimento pessoal, social e econômico do que aqueles que cresceram em instituiçoes ou lares de acolhimento12.

Muitas crianças desenvolvem fantasias de serem adotivas e de que os pais biológicos seriam melhores do que os atuais, o que pode ser exacerbado naquelas, de fato, adotadas. Os filhos, inclusive biológicos, precisam se decepcionar com os seus pais para entao percebê-los com características mais reais em vez de pais super-heróis fantasiados13.

O adotivo costuma apresentar medo e desejo de ser devolvido; julga ser ainda querido pelos pais biológicos, os quais também sao temidos como possíveis raptores, que poderiam levá-lo de volta5. Pode ainda acreditar que nao foi considerado suficientemente bom pela família biológica em funçao de expressoes de agressividade, voracidade, ciúmes e instintividade de forma geral. Na mesma medida, teme que a família adotiva também o rejeite. O adotivo vivencia fantasias tanto de abandono quanto de agressao em relaçao à mae biológica, acreditando ser ela a pessoa responsável pelo seu desaparecimento. Também apresenta sentimentos persecutórios quanto à possibilidade de vir a ser roubado. Em contrapartida, também pode fantasiar que seja, ele próprio, filho adotivo, o responsável pela esterilidade da mae adotiva5.

As marcas psíquicas deixadas na criança através das relaçoes iniciais com a mae biológica podem ser agravadas, mantidas e/ou ressignificadas a partir do contato com os pais adotivos14. No início da vida do bebê, a mae biológica apresenta a preocupaçao materna primária7, tao necessária à compreensao do que se passa com seu bebê. Todavia, a mae adotiva nao vivenciou da mesma forma esse fenômeno, fato que pode contribuir para as dificuldades de adaptaçao inicial mae-filho. Essa desadaptaçao e o medo de ser abandonado, vivenciados pelo adotivo, contribuem para a formaçao de uma parte de si mesmo extremamente preocupada quanto à sua aceitaçao pelo ambiente, levando à cisao de uma parte de si mesmo que precisa ser mantida, escondida ou reprimida em funçao do temor de ser novamente rejeitado5.

Em entrevistas realizadas com crianças a respeito da adoçao15, verificou-se que o próprio nome da família adotante é percebido como forma de pertencimento, sendo que a demora em recebê-lo pode motivar inseguranças e dificuldades nas relaçoes familiares. Por outro lado, a construçao dos laços familiares nao ocorre de forma instantânea e depende das redes de significaçoes vivenciadas pelos adotivos em cada família. Em estudo16 sobre artigos que abordam a adoçao e as queixas em atendimento psicoterápico de crianças, constatou-se novamente a carência de estudos relacionados à criança adotiva. Verificou-se, também, que o desconhecimento sobre a própria história pode contribuir para sentimentos de vazio, dificuldades de aprendizagem e de relacionamento, que o segredo da adoçao, além de levar a sentimentos de culpa e ansiedade nos pais adotivos, pode favorecer a ocorrência de dificuldades de aprendizagem e que a ansiedade dos pais pode levar ao aparecimento de outros sintomas de ordem afetivo-emocional.

Quando a criança é colocada num novo lar, ela inicialmente pode reagir de forma boa; entretanto, à medida que for se tornando mais confiante, pode "sentir-se furiosa com o colapso ambiental já ocorrido" (p. 204)18. Assim, os pais adotivos poderao perceber que se tornam alvo do ódio da criança, necessitando suportar, entender e nao desanimar. Os oficiais responsáveis pelo cuidado infantil devem saber, mas nao culpar os pais adotivos pela situaçao de possíveis histórias de maus-tratos relatadas pelos adotivos. Elas podem ser fruto apenas de suas fantasias, e nao da realidade vivida17.

O que se percebe na atualidade é que a criança é a pessoa menos ouvida, seja em situaçao de abrigamento, acolhimento ou adoçao. Verifica-se ainda que, mesmo ao serem cuidadas, muitas vezes as crianças têm os seus direitos violados18. Nesse sentido, parece pertinente a realizaçao de estudos sobre a maneira como a criança adotada vivencia o processo e os possíveis desdobramentos.

Uma das maneiras de compreender o que se passa no mundo interno desses pequenos é por meio da observaçao das fantasias expressas através do brincar nas sessoes de psicoterapia psicanalítica infantil. A seguir será apresentada a análise qualitativa dos relatos de sessoes realizadas através de psicoterapia psicanalítica com uma criança de 3 anos, nos quais o tema "adoçao" estava presente.


ESTUDO DE CASO

O casal, diagnosticado com problemas de infertilidade, adotou Jade (nome fictício) com 20 dias de nascida. Os pais aparentavam ter bom relacionamento, ambos comprometidos em cuidar da criança e preocupados em prevenir problemas futuros. No relato a seguir, algumas características da criança foram modificadas e os dados específicos da família foram omitidos para garantir o anonimato e o sigilo.

Aos 3 anos, Jade era considerada agressiva e arredia e nao sabia medir as próprias forças para brincar ou agredir. Os pais apresentavam extrema preocupaçao com as possíveis consequências da herança biológica em seu psiquismo e o pai especialmente temia que viesse a se tornar uma criminosa. Tais fatos mostram-se de acordo com as pesquisas realizadas e/ou mencionadas por diferentes autores2,5.

Desde as primeiras sessoes, foi possível perceber que Jade apresentava ansiedade extrema, agressividade e dificuldade em se adequar aos limites do setting terapêutico: batia os carrinhos entre si e/ou contra os outros brinquedos, por vezes jogava tudo para o alto, demonstrava prazer em tentar destruir coisas, chegando a questionar a terapeuta se poderia pisar nos brinquedos. Ao desenhar, excedia os limites do papel e dizia "nao tem importância, é só um pouquinho...". Parecia que um furacao havia passado pela sala! Tamanha confusao provavelmente demonstrava o caos existente no seu mundo interno. Embora apresentasse muita dificuldade em manter-se dentro de qualquer limite, na sala de espera, os pais insistiam para que demonstrasse educaçao e gentileza, denotando assim uma certa estranheza entre a filha imaginada e a real enquanto construíam os laços da parentalidade2.

Na segunda sessao, ela deu uma mamadeira a um bebê que estava com fome. Depois disse que o bebê chorou porque sua mae morreu. Chupou a chupeta do bebê e disse que estava fedida. Jade parecia mencionar a dor pela perda da mae biológica, que, em fantasia, teria morrido, dando notícia das dores emocionais causadas pelas rupturas intra e extrauterinas no relacionamento mae-bebê no início de vida dos adotivos5.

Nas sessoes seguintes, as brincadeiras de mamae-filhinha ou papai-filhinha eram constantes. Por vezes, as figuras parentais cuidavam de forma carinhosa, mas, quase em seguida, apareciam cenas em que um grande batia no pequeno. Numa delas, os bebês tinham as cabeças decepadas e/ou o coraçao ferido. Jade dizia que ficava triste com o que acontecia a eles. Representava assim fantasias de agressao e abandono que costumam estar presentes no imaginário dos adotivos em relaçao à mae biológica5. Por vezes dizia que nao batia em seus próprios pais, mas que tinha vontade de fazê-lo. As cenas em que o bebê tinha a cabeça decepada se repetiram em algumas sessoes; ocasionalmente, o bebê chorava e reclamava que doía.

Os bebês eram sempre cuidados de forma agressiva, e os maus-tratos e o abandono estavam sempre presentes. Jade parecia demonstrar o seu sofrimento causado pelo rompimento precoce de vínculos afetivos com a separaçao da mae biológica4. Na relaçao transferencial, demonstrava amor e ódio, agradando ou agredindo a terapeuta, inclusive fisicamente.

Ocasionalmente, Jade pedia para ver a mae na sala de espera. Certa vez, a mae avisou à terapeuta que iria sair por alguns minutos. Durante a sessao a criança pediu para ir à sala de espera e se desesperou com a ausência da mae.

Nos primeiros meses, os pais manifestavam angústia e desespero, pois Jade se comportava de forma muito diferente da que esperavam, sendo agressiva com os pais, primos, tios e avós. A mae alegou questionar a si mesma "será que adotei um bicho?". Depois sentia-se culpada. A mae demonstrava ao mesmo tempo a tentativa de adequaçao à filha, antes tao desejada, e o estranhamento por nao atender às suas expectativas2. Após seis meses de psicoterapia, os pais estavam otimistas. Jade estava serena, menos agressiva, mais obediente e carinhosa.

Nas sessoes terapêuticas, as atividades passaram a ser diferentes - ela usava massa de modelar para fazer bonecos-bebês. Parecia surgir a construçao de uma vida, e nao mais a tentativa de destruiçao e/ou abandono, possivelmente retratando a reestruturaçao simbólica que ela estava desenvolvendo em si mesma10. Por vezes, a figura materna aparecia como cuidadora enquanto o pai era mantido a distância, considerado como uma ameaça à integridade física do boneco-bebê.

Houve cenas em que o pai e a mae ora cuidavam e ora disputavam a criança, dizendo "ele é meu nenê". Embora nomeasse as figuras como pai e mae, ficava a impressao de ser uma disputa entre duas maes pela posse do filho. Jade parecia expressar o medo e o desejo de ser devolvida à família biológica5.

Certa vez, um bebê-bicho foi ferido e hospitalizado longe dos pais, sendo cuidado por outras pessoas. A cena parecia noticiar a situaçao em que fora deixada para a adoçao. O "abandono em hospital" se repetiu durante três ou quatro meses, situaçoes em que ela demostrava medo, desespero e sofrimento. Jade dizia haver muitas pessoas querendo cuidar daquele bebê, mas "ele só queria ficar com a sua mamae".

Nesse momento, pôde-se refletir sobre o antagonismo entre a alegria dos pais adotivos ao conseguir uma criança e o sofrimento que o adotivo vivencia pelos laços afetivo-emocionais rompidos, lembrando que o adotivo perde todo o vínculo corporal com a mae biológica e precisa aprender as linguagens e os sinais daquela que o adota5.

Em casa, ela desafiava os pais e chegava a ser punida por isso, dando pouca importância às consequências. Parecia confirmar as ideias de que, ao sentir-se mais confiante no vínculo atualmente estabelecido, a criança carente pode demonstrar a fúria pelo colapso ambiental vivenciado anteriormente e expressar até ódio pelos pais adotivos17, situaçao em que os pais precisam suportar, compreender e sobreviver aos ataques.

O temor de ser abandonada em hospital e/ou jogada no lixo continuava. Muitas vezes nomeava a si mesma ou a mae, que julgava poder salvá-la, de "filha da puta". Parecia sentir-se como uma pessoa considerada de menos valia e, por isso, abandonada. Em outros momentos, a "mae-puta-malvada", que nao teria sido suficientemente boa para dela cuidar, era culpada pelo abandono. Muitas vezes ela questionava se a mae estaria esperando por ela ou se seria deixada ali com a terapeuta, demonstrando que o temor pelo abandono da mae adotiva era constante, corroborando as ideias mencionadas por alguns autores19.

Surgiram novos personagens. Um bebê-fantasma assustava/assombrava os pais biológicos e adotivos. O bebê-fantasma parecia representar o filho que os pais biológicos imaginavam ter morrido e o luto vivenciado por esses pais. Noutros momentos, parecia significar que a sua presença como filha adotiva estava sendo percebida como um fantasma, espelhando o luto pelo filho biológico que os pais adotivos nao conseguiram ter. Havia também um caçador que tentava matar o nenê. Por vezes a própria mae o ameaçava e noutras era ela quem pedia ajuda ao filho. Noutras situaçoes ambos eram caçados e ameaçados com tiros. Por essa época, foi levantada a hipótese de fantasias de aborto e também de tentativas de assassinato ao recém-nascido.

Após um ano de psicoterapia, ela começou a solicitar que a mae participasse da sessao. O tema adoçao estava cada vez mais presente e parecia que Jade necessitava da presença real da mae para tentar compreender algumas coisas. Assim, seguiram-se alguns atendimentos com a dupla mae-filha e ocasionalmente pai-filha.

Jade expressava suas fantasias sobre ser ou nao ser aceita pelos pais, por nao se perceber como menina boazinha. Nessas situaçoes, a mae sempre relatava algum fato da vida familiar, tentando justificar o assunto. Aos poucos, a mae se mostrou mais receptiva e compreensiva às formas simbólicas que a criança utilizava para expressar suas emoçoes, ansiedades e temores.

Numa das sessoes, pediu que a mae ficasse com o boneco-nenê e a boneca-mae, enquanto ela ficava com o boneco-policial. O policial queria o nenê, bateu na porta da casa e a mae abriu. O policial pediu o nenê e a mae o defendeu dizendo que nao deixaria levá-lo. O policial entao se voltou para o pai, que havia bebido muita cerveja, e o levou para a cadeia. A mae e o nenê foram visitar o pai e acabaram todos presos. A terapeuta assinalou que o bebê estava preso, mas que alguém tinha a chave para deixálos sair dali. O policial-Jade ria e debochava, dizendo que apenas ele tinha a chave. A terapeuta assinalou que ele poderia libertá-los, se tivesse a chave do mistério da adoçao que os mantinha aprisionados. Em seguida, o policial abriu a cadeia e os libertou. O policial foi visitar a família, mas nao encontrou lugar para se sentar. Pediu para morar com eles, caso contrário teria que morar na rua. A mae, respondendo pelo boneco-mae, acolheu friamente o policial. Pouco depois, Jade assumiu o papel de uma menina que chegou pedindo abrigo. Por vezes se aconchegava ao boneco-policial, que nesse momento foi colocado por Jade no papel de um pai-policial-cuidador. Entretanto, o pai fazia uma série de manobras com uma nave espacial e o boneco-menina verbalizava estar com medo, fato assim interpretado pela terapeuta: embora os pais a acolhessem, sentia-se amedrontada e sem saber qual era o seu lugar naquela família.

A terapeuta auxiliava o boneco-menina a reconstruir a sua história de rompimento de vínculo com a mae biológica e a construçao do seu lugar no relacionamento junto aos pais adotivos. A princípio, Jade tampava as orelhas, negando-se a ouvir, mas minutos mais tarde olhava para a terapeuta, tirava as maos, abaixava a voz e ficava atenta às interpretaçoes. Finalmente, solicitou à mae que a ajudasse a se defender dos perigos. A terapeuta interpretou dizendo que, embora se sentisse sozinha ao se separar da maebarriga, estava percebendo que conseguiu conquistar uma família para si e foi nomeando: pai, mae, avós, tios e primos. Jade entao mostrava-se serena, aparentando compartilhar/concordar com as interpretaçoes.

O movimento de cura do filho adotivo pode ocorrer a partir da transformaçao de resquícios mnêmicos do início da vida em uma construçao histórica20. Por essa época, o atendimento psicoterápico contribuía também para o fortalecimento do vínculo criança-pai-mae, tao importante na intervençao clínica infantil21.

Após uns seis meses, Jade deixou de solicitar que a mae participasse das sessoes. Parecia ter compreendido e aceitado a ideia de que os pais a desejaram e acolheram em vez de a terem roubado da mae biológica. Assim voltou a ser atendida individualmente.

Os temas versavam sobre a busca por algo desaparecido num mundo distante. Brincava de escondeesconde, sendo que, nos locais onde se escondia, a terapeuta era proibida de procurá-la. Numa das sessoes, foi interpretado que ambas "pareciam estar em mundos diferentes ou eram invisíveis, pois a terapeuta nao podia encontrá-la em lugar nenhum". Logo em seguida, ela disse ter encontrado um lugar legal - estava numa nave espacial e convidou a terapeuta para viajar com ela, dizendo que era uma "ninja disfarçada". Foi até "Marte" e incentivou a terapeuta a conhecer o lugar dizendo ser onde nascera. Disse que era legal, mas, logo depois, que era ruim, enfatizando que nem água tinha. Assim que aterrissou naquele lugar, riu sarcasticamente e abandonou a terapeuta lá dizendo que ela encontraria comida e água. Mais tarde, falou que haviam retirado tudo de lá, entao a personagem-terapeuta foi atacada por vários ninjas até que veio um amigo dela (Jade) e a salvou, levando-a de volta à nave.

A hipótese interpretativa foi de que Marte representava a mae biológica da qual havia sido separada e que ainda era idealizada. A criança parecia ao mesmo tempo desejar e temer reencontrá-la, pois nao sabia se ela poderia ser suficientemente boa para dela cuidar ou tao ruim a ponto de querer atacá-la até a morte. A nave que acolheu o personagem que havia sido abandonado foi interpretada como os pais adotivos que a resgataram e acolheram. É possível conjecturar que os pais biológicos imaginários de Jade eram ao mesmo tempo desejados e temidos, fato considerado tao comum nos adotivos4.

Numa das últimas sessoes em que o tema da adoçao esteve presente, Jade solicitou à terapeuta que contasse até 40, enquanto ela se escondia. Pediu que interrompesse a contagem em 30, pois "precisava encontrar alguma coisa...". Jade se escondia em diferentes locais da sala, colocando obstáculos para se ocultar. A terapeuta associou o número 40 às semanas necessárias à gestaçao de um bebê humano e foi fazendo comentários a respeito da mae-barriga onde Jade havia estado antes de nascer. Ela pediu que a terapeuta continuasse a contagem com os olhos fechados, o que foi realizado mais lentamente até o término - 40. Enquanto isso, ela fazia barulhos e se escondia. A terapeuta ia dizendo "Jade, cadê você? Será que está perto ou longe de mim?", até que ela permitiu ser encontrada.

As interpretaçoes versaram sobre os possíveis desejos da mae biológica em saber onde ela estava, bem como a procura dos pais adotivos, tentando encontrá-la em outras maes-barrigas. Jade parecia aceitar as interpretaçoes e repetia as cenas diversas vezes. De certa forma, Jade parecia estar ressignificando o processo de rompimento de vínculo com a mae biológica e de acolhimento pelos pais adotivos14.

Posteriormente, na mesma sessao, Jade solicitou que a terapeuta fosse uma menina de rua que era escorraçada de todos os lugares em que tentava entrar e que eram frequentados por "crianças que tinham casa" (tema presente em diversas sessoes anteriores). Até que apareceu um guarda (policial) bonzinho, representado por Jade, que se dispôs a cuidar da menina de rua e disse que poderia se sentar perto dele. Entao a terapeuta falou para o guarda: "Acho que o conheço. Você nao é aquele bebê que ficava junto comigo? Será que você é mesmo um guarda?" De repente, ela sorriu e disse: "Eu também sou uma menina de rua. Eu estava só fingindo que era guarda. Todos esses guardas que estao me ajudando sao meninos e meninas de rua também". Seguiu-se entao uma conversa entre ambas sobre o receio/desejo de Jade em saber de qual mae-barriga ela veio antes de estar com os pais adotivos.

Mais tarde, transformou-se numa menina rica que atirava flechas na casa da menina de rua. Entretanto, logo em seguida jogou para ela o arco (da flecha), de forma que agora a menina de rua também podia atirar flechas na casa da menina rica. Em vez de agressao, a cena parecia espelhar o desejo de estabelecer alguma comunicaçao entre as duas partes de sua vida, antes e depois da adoçao, nao mais fugindo, mas tentando melhor entender suas origens.

Jade parecia ter compreendido que nao fora roubada pelos seus pais adotivos, e sim que a procuraram para que pudessem ser seus pais. Em vez de sentir-se como um bebê-lixo desprezado e abandonado pela mae biológica, percebia que ela nao tinha condiçoes financeiras para dar a Jade o que precisava; por isso, preferiu que alguém a adotasse e provesse sua sobrevivência. A adoçao permitiu que tivesse uma família cuidadora, o que evitou que se tornasse uma menina de rua, com todas as privaçoes de alimento, casa e cuidados por ela imaginados.

Após 3 anos de psicoterapia, apresentava-se mais serena, mais bem integrada ao mundo e às expectativas dos pais adotivos. Pairavam ainda dúvidas a respeito da origem biológica, que, aliás, era desconhecida também pelos pais adotivos. Entretanto, demonstrava a certeza de que os pais a adotaram movidos nao apenas pelo desejo de ser pais, mas também por amor a ela e que nao pretendiam abandonála. Além disso, manifestava maior confiança no afeto dos pais em relaçao a ela, sem que precisasse a todo momento desafiá-los para testar se suportariam os seus defeitos.


CONSIDERAÇOES FINAIS

A adoçao implica nao apenas aliviar a dor narcísica do casal causada pela impossibilidade de procriar e vivenciar a parentalidade biológica. Adotar implica lidar com o luto pelo filho nao gerado e também em lidar com os temores advindos de acolher uma criança cuja origem biológica é desconhecida e temida5. Por outro lado, a criança adotiva sofre precocemente o rompimento do vínculo físico e emocional com a mae biológica e precisa se adaptar aos cuidados10 e sinais físicos e emocionais dos novos pais.

Jade inicialmente mostrava-se irritada e agressiva. Aos 3 anos demonstrava a revolta pelo abandono e a falta de confiança nos pais adotivos, os quais precisaram ser suficientemente bons para suportar a revolta da criança17 e sobreviver aos seus ataques. A psicoterapia psicanalítica permitiu que ela fosse ouvida e resgatasse sua história. Embora nao tenha participado das decisoes iniciais quanto ao seu destino3, Jade se tornou o agente da adoçao ao ressignificar14 o trauma pelo afastamento da mae biológica5, compreender e aceitar os pais adotivos como seus, autorizando-se a ser sua filha10.

A análise do caso relatado permite refletir sobre as angústias e temores vivenciados pelo filho adotivo enquanto tenta compreender as causas de sua doaçao pela mae biológica e adoçao pelos novos pais. A constataçao de que a mae biológica abdica do filho para que ele tenha uma vida melhor e que os pais adotivos, movidos pelo amor, o salvam de uma situaçao crítica em que a pobreza, a privaçao e a possibilidade de maus-tratos reinavam contribui para que a criança deixe uma posiçao passiva - ser adotado - para assumir uma atitude ativa na medida em que adota aquela mae e aquele pai como seus.

A mudança de posiçao de filho adotivo para filho adotante da nova família contribui para a elevaçao da autoestima e aprimoramento do vínculo criança-pais.


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Doutora. Docente na Universidade Estadual de Londrina. Londrina, PR, Brasil

Instituiçao: Departamento de Psicologia e Psicanálise. Centro de Ciências Biológicas. Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil.

Correspondência
Maria Elizabeth Barreto Tavares dos Reis
Av. Gil de Abreu e Souza, n. 2335, casa 227
86058-100 - Londrina, Paraná
bethtavaresreis@gmail.com

Submetido em: 21/07/2014
Solicitaçao de reformulaçoes em: 10/09/2014
Retorno da autora em: 23/09/2014
Aceito em: 24/09/2014

 

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