Rev. bras. psicoter. 2014; 16(3):70-85
Pettenon M. Resgatando a resiliência de famílias em crise. Rev. bras. psicoter. 2014;16(3):70-85
Relato de Caso
Resgatando a resiliência de famílias em crise
Rescuing the resilience of families in crisis
Márcia Pettenon
Resumo
Abstract
1 INTRODUÇAO
Em nossa cultura, sabemos que os momentos de crises nos acompanham desde os primeiros estágios do desenvolvimento. No que tange à cultura chinesa, por exemplo, o símbolo de crise direciona a dois polos: perigo ou oportunidade. Nao raro, as crises sao marcadas por importantes transiçoes de uma etapa para a seguinte, agregando novas formas de enfrentamentos e podendo transformar um iminente perigo em propósito para evoluçao1,2,3.
Teóricos identificam, amparados no conceito da física4, indivíduos, famílias e, ainda, determinada sociedade como resilientes5,6. Tomando como objetos de análise o indivíduo e a família, estudos apontam diferentes formas de visualizaçao da resiliência diante de crises e, consequentemente, distintos desfechos clínicos7,8. Aqueles indivíduos que, frente às adversidades da vida, reconhecem em si e/ou em sua família possibilidades de superaçao, conseguem se recuperar mais rapidamente do que aqueles que percebem a crise com uma postura de fracasso e que atribuem o acontecido a forças que estao além de seus recursos9,10.
Sujeitos e famílias, após o processo do tratamento de suas feridas dolorosas, apropriam-se de suas vidas e seguem adiante para usufruírem o que lhes é caro; sao, portanto, considerados resilientes3. Esse processo parece também estar intimamente associado ao conceito de autoestima e a uma visao otimista da vida11. Os "sobreviventes", por sua vez, nao sao necessariamente considerados resilientes, pois ficam enclausurados em posiçao de vitimizaçao, fazendo de seus sofrimentos a sua principal fonte de nutriçao e, consequentemente, ficando impedidos de crescer em decorrência de sentimentos acumulados, como raiva ou culpa. Salienta-se que a resiliência somente será percebida diante da adversidade, e nao apesar dela12.
Na literatura, existem poucos estudos sobre o processo de resgate da resiliência familiar utilizando a técnica sistêmica; no entanto, existem diversas demonstraçoes sobre a eficácia do tratamento familiar ou de casal em diferentes contextos clínicos13,14,15. É interessante destacar que o psicoterapeuta de família exerce um papel importante durante esse processo, podendo ajudar a mudar a perspectiva com que a família encara seu contexto e, consequentemente, suas próprias dificuldades. Esse profissional pode mudar a perspectiva com que as famílias enfrentam os problemas a partir da visualizaçao da resiliência intrínseca em seu ambiente familiar. Em vez de rotulá-las de incapazes, impotentes porque estao em crise, ele irá identificá-las como batalhadoras que estao desafiando o perigo, corroborando, assim, para o seu potencial para a reconstruçao e para o amadurecimento. Este estudo teve como objetivo descrever o processo de resgate da resiliência em três famílias, em diferentes crises, para que elas próprias pudessem explorar seus recursos e compartilhar a confiança na superaçao das adversidades.
2 MÉTODO
2.1 Delineamento: relato de caso familiar
2.2 Amostra
A amostra foi constituída por três famílias. A fim de preservar a identidade das famílias, os dados que contemplam nomes, profissoes e as cidades de origem foram alterados. Foram utilizados os seguintes símbolos para identificar as três famílias: a primeira foi identificada de família XX, a segunda como família YY e a terceira como família XY. Essas famílias buscaram tratamento no Instituto da Família de Porto Alegre (INFAPA) no ano de 2012. Todas as famílias vivem no estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
2.3 Descriçao da família XX
2.3.1 Dados sociodemográficos dos membros familiares
- Mae: Luana, 47 anos, é divorciada e arquiteta.
- Pai: Rui, 49 anos, é divorciado, possui segundo grau completo e trabalha com vendas.
- Filho: Paulo, 13 anos, sétima série (repetente), estudante em escola particular.
- Filho: Pedro, 14 anos, oitava série (repetente), estudante em escola particular.
- Todos moradores de Canoas/RS e de etnia branca.
2.3.2 Breve histórico contextualizando a busca de tratamento
Em junho de 2012, a mae veio em busca de atendimento familiar no INFAPA, instituiçao indicada pelo Conselho Tutelar. Todas as estratégias do tratamento psicoterápico foram estruturadas dentro de um plano de psicoterapia familiar sistêmico-integrativo, mesmo sem a presença contínua dos demais integrantes. A mae abriu um processo judicial, há cinco anos atrás, contra o pai, pois em uma discussao o marido admitiu ter tido desejos sexuais em relaçao ao filho Paulo. O pai alega inocência. Por sua vez, o pai abriu um processo judicial, há dois anos, contra a mae, acusando-a de agredir fisicamente o filho Pedro em uma discussao familiar. A mae alega legítima defesa.
2.3.3 Focos do tratamento
- Comportamento agressivo dos filhos Paulo e Pedro contra a mae.
- Mae com sérias dificuldades no manejo de regras e limites com os filhos.
- Mae com sentimento de impotência diante de agressoes físicas e psicológicas dos filhos.
- Filhos desqualificando o papel materno apoiados pelas atitudes do pai.
- Filhos furtando dinheiro da mae.
- Evasao de escolar.
- Vandalismo no condomínio, que gera sucessivas multas à mae.
O tratamento foi realizado no período de junho de 2012 a fevereiro de 2013, com sessoes semanais (uma vez por semana).
2.4 Descriçao da família YY
2.4.1 Dados sociodemográficos dos membros familiares
- Mae: Eva, 45 anos, viúva e advogada.
- Filho: Anderson, 18 anos, estudante em conclusao do ensino médio (realizando vestibular para engenharia).
- Filho: Alan, 14 anos, estudante do primeiro ano do ensino médio em escola particular.
-Todos moradores de Novo Hamburgo/RS e de etnia branca.
2.4.2 Breve histórico contextualizando a busca de tratamento
Em março de 2012, a família sofreu um sério acidente automobilístico, culminando com a morte do pai (aos 55 anos), que conduzia o veículo. O pai chegou ao hospital sem vida. A mae, que estava sentada no banco traseiro, atrás do condutor, teve várias fraturas e teve que passar por cirurgias imediatamente. O filho Anderson, que estava sentado ao lado do pai, teve ferimentos graves e também necessitou permanecer no hospital. O filho Alan foi o único que nao ficou hospitalizado. Foi ele o representante de sua família que acompanhou os rituais fúnebres do pai. Alan contou com apoio de outros familiares, como avós maternos e avó paterna e tios(as), além de colegas de trabalho do pai e amigos da família. A mae veio buscar tratamento psicoterápico familiar no início de outubro de 2012, pois considerava que o luto pela morte do marido ainda nao havia sido elaborado e acreditava que seus filhos também tinham muitas dificuldades para lidar com a morte repentina do pai. O tratamento foi realizado no período de outubro de 2012 a fevereiro de 2013, com sessoes semanais (uma vez por semana).
2.4.3 Focos do tratamento
- Elaboraçao do luto.
- Reestruturaçao dos papéis dos membros familiares.
2.5 Descriçao da família XY
2.5.1 Dados sociodemográficos dos membros familiares
- Mae: Bia, 43 anos, casada e trabalha como administradora.
- Pai: Jorge, 50 anos, casado, segundo grau completo, trabalha como técnico em informática.
- Filho: Marcelo, 20 anos, estudante do segundo semestre de arquitetura em faculdade particular.
- Filho: Renato, 14 anos, estudante do primeiro ano do ensino médio, em escola particular.
- Todos moradores de Viamao/RS e de etnia branca.
2.5.2 Breve histórico contextualizando a busca de tratamento
O casal já havia sido atendido no INFAPA, de dezembro de 2011 a abril de 2012, e interromperam tratamento. Em junho do mesmo ano, Jorge buscou novo tratamento. Inicialmente foram realizadas três sessoes individuais com o paciente para avaliaçao e sugestao de terapia de casal. Jorge aceitou e convidou sua esposa para as sessoes seguintes. Bia veio às sessoes relatando muitas dificuldades de convivência entre o casal e na relaçao familiar. Segundo Bia, o marido tratava de forma diferenciada o filho Marcelo por nao ser seu filho biológico. O marido negou essa diferenciaçao e sugeriu a vinda de parentes próximos para confrontarem essa informaçao. Bia faz uso abusivo de maconha, o que, segundo ela, nao lhe faz mal algum. Ela fuma escondida no banheiro alegando que ninguém fica sabendo. Diz que a maconha a leva para um "lugar tranquilo" e dessa forma nao precisa pensar em seus problemas. Jorge sugere que Bia conte ao filho Marcelo sua verdadeira história, pois acredita que a revelaçao fortalecerá tanto a relaçao do casal quanto a da família. Bia nao cogita essa hipótese, pois diz ter muito medo da reaçao do filho. Teme que ele se revolte, saia de casa, nao a perdoe pela omissao e procure o pai biológico, abandonando sua família e sua faculdade. O tratamento foi realizado no período de junho de 2012 a fevereiro de 2013 (em julho de 2012, duas vezes semanais; nos demais meses, uma vez por semana).
2.5.3 Focos do tratamento
- Crises conjugais.
- Segredo familiar: Marcelo nao sabe que nao é filho biológico do pai (marido da mae) e que o pai biológico o rejeitou desde a gravidez da mae.
3. PAPEL DO PESQUISADOR
Por se tratar de um tratamento psicoterápico familiar, além de psicoterapeuta, a pesquisadora também exerceu o papel de investigadora, no sentido de transcrever as sessoes, selecionar as vinhetas mais significativas inseridas nos objetivos do tratamento, analisar seu conteúdo e associar os dados averiguados com a literatura durante o processo terapêutico das famílias.
4 RESULTADOS
As análises das vinhetas selecionadas serao expostas durante a discussao, a fim de correlacionar os conteúdos selecionados com a literatura.
4.1 Resultados pós-tratamento da família XX
A mae, ao sentir-se desautorizada e ameaçada fisicamente pelos filhos, chama a Brigada Militar de madrugada. Procedimento trabalhado anteriormente nas sessoes mediante técnica de role-playing.
4.1.1 Síntese do relato da mae ao manejar a agressividade dos filhos, resgatando sua autoridade parental com apoio da rede social (Brigada Militar)
Mae Luana: Eu me lembrei muito do que conversamos aqui e de nossos ensaios. Entao, na noite passada, novamente tentei pedir aos meninos que saíssem do meu quarto de madrugada e eles riam da minha cara e me chamavam de louca. Entao, eu fiz conforme combinamos aqui: eu me posicionei de uma forma firme e disse que, se eles nao saíssem do meu quarto, eu chamaria a Brigada, mas eles continuaram a me desqualificar. Entao, eu liguei na frente deles e pedi ajuda à Brigada. Vieram dois brigadianos, um fez o papel de bonzinho e outro de mauzinho com os meninos, e sabe que eles se assustaram muito? Na verdade, eu também, com minha força para fazer isso... (sorriso).
4.1.2 Consequências do ato e de sucessivas medidas de manejo visando ao resgate da autoridade da mae durante seu tratamento (com abordagem sistêmico-integrativa)
No que diz respeito aos resultados vistos após a intervençao citada, podem-se observar:
4.2 Resultados do tratamento da família YY- repercussoes positivas em outras situaçoes semelhantes;
- o fortalecimento gradativo da mae, que busca dentro de si recursos e habilidades maternas no processo de reestruturaçao familiar;
- o reforço da autoridade materna apoiada por figuras sociais que representam a lei;
- elogios da mae a seus filhos após essa fase e mediante comportamentos positivos na convivência familiar;
- a busca da mae por recursos internos ressignificados, com o objetivo de reconhecer-se como uma mae "suficientemente boa", que apoia, elogia, é afetiva e que também é forte quando precisa transmitir limites e regras de convivência familiar e social, através do diálogo;
- a nova participaçao do pai às sessoes, ao ver a mae retomando sua autoridade materna e entendendo que o comportamento agressivo dos filhos estava em um movimento crescente. Luana se posiciona firme com o pai de seus filhos, nao aceitando ser desqualificada como mae e pede que ele colabore no sentido de transmitir a mesma mensagem aos filhos sobre as questoes relativas às normas familiares e sociais. O pai participa de algumas sessoes, mas nao adere de forma sistemática;
- a percepçao dos filhos em relaçao à mae. Eles a veem mais fortalecida e, ao mesmo tempo, resgata-se o afeto entre eles;
- a percepçao dos filhos em relaçao ao pai, que desqualificava o comportamento da mae. Nota-se que ele nao cumpre seu dever de contribuiçao financeira nos gastos mensais com escola, alimentaçao e transporte;
- o respeito dos filhos para com a mae no convívio,
- ao perceberem que ela se posiciona de modo seguro, reforçada pela autoridade pública (Brigada Militar e Conselho Tutelar), os filhos passam a respeitá-la e iniciam um novo processo de relacionamento familiar;
- a gratificaçao da mae pelo reconhecimento de seu papel perante os filhos. Assim, ela própria reconhece-se como uma mae com habilidades eficientes, resgatando o vínculo afetivo entre eles e sua autoridade parental.
4.3.1 Síntese de uma sessao do casal: 08 de novembro (mae relata como revelou o segredo)- questoes individuais de Jorge, como: sua postura autoritária frente à esposa e aos filhos, exaltando seu poder financeiro e depreciando a profissao da esposa;
- fortalecimento do papel materno (nas quatro sessoes da Bia) com intuito de trabalhar seus medos de ser abandonada e condenada pelo filho por ter omitido a verdadeira identidade do pai;
- desconstruçao de um perfil ideal de filho com 20 anos - que more sozinho, trabalhe e se sustente - nas sessoes do casal;
- os pais sao preparados para contar ao filho Marcelo sua história relacionada à rejeiçao do pai biológico.
- a compreensao de Marcelo em relaçao ao pai, o que proporcionou um processo de reaproximaçao, ressignificando o vínculo entre pai e filho;
- respeito à individualidade dos membros e estabelecimento de novas formas de comunicaçao e combinaçoes familiares;
- a aceitaçao entre irmaos ocorreu naturalmente, em relaçao ao que nao é mais um segredo, permanecendo fortalecido o vínculo fraterno;
- o pai pondera as palavras ao se expressar com os filhos, especialmente com Marcelo, e começa a valorizar o papel profissional da esposa;
- Bia também é encaminhada para avaliaçao psiquiátrica;
- melhora da comunicaçao entre o casal e reforço do vínculo afetivo;
- volta da conexao entre o casal, visto que Marcelo é retirado da coalizao com a mae, que interpretava que precisava protegê-lo de qualquer sofrimento;
- Jorge se apropria novamente de seu papel, cuidador de Marcelo com vínculo ressignificado, e Bia consegue interromper o uso de maconha.
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