Rev. bras. psicoter. 2014; 16(3):16-29
Souza FR, Mosmann CP. Crianças e adolescentes encaminhados para psicoterapia pela escola: características e percepçoes de maes e professores sobre os problemas emocionais e de comportamento. Rev. bras. psicoter. 2014;16(3):16-29
Artigos Originais
Crianças e adolescentes encaminhados para psicoterapia pela escola: características e percepçoes de maes e professores sobre os problemas emocionais e de comportamento
Children and adolescents referred to psychotherapy by the school: characteristics and perceptions of mothers and teachers on the emotional and behavioral problems
Fernanda Ribeiro de Souza1; Clarisse Pereira Mosmann2
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
O presente estudo situa-se na atuaçao de uma das autoras, psicóloga clínica, no sistema escolar de um município do RS, que atende a demanda de quatro escolas de ensino fundamental. Recebe encaminhamentos para psicoterapia realizados por distintos profissionais, como neurologistas e pediatras, pela família e por professores. Estes últimos sao responsáveis pelo maior número de encaminhamentos ao serviço de psicologia devido à especificidade de seu contato diário com os alunos em sala de aula. Os professores identificam dificuldades diversas nos alunos, entretanto predominam as queixas relativas aos problemas de aprendizagem. Inúmeros estudos nacionais apontam os altos índices de encaminhamentos para clínicas-escola e serviços de psicologia de crianças e adolescentes com determinados problemas de aprendizagem identificados na escola1. Muitas vezes os docentes identificam outros sintomas, como comportamentos agressivos, de relacionamento interpessoal e de atençao, os quais também se associam e se expressam em dificuldades de aprendizagem2. Todos esses indicativos sao avaliados pelos professores como concernentes ao campo de atuaçao da psicologia e derivada sua soluçao ao profissional inserido na escola. Entretanto, muitas vezes essa avaliaçao nao é corroborada pelas famílias.
Essas diferenças de percepçao estao documentadas na literatura nacional e internacional e apresentam dados contraditórios que podem ser decorrentes de inúmeras variáveis. No que concerne à comparaçao da avaliaçao de pais e professores sobre os sintomas emocionais e de comportamento das crianças e adolescentes, algumas pesquisas nacionais indicam que os docentes identificam maior incidência de ansiedade, depressao, agressividade e problemas de atençao3,4 em comparaçao aos pais. Por outro lado, pesquisas nacionais indicam que os pais, na avaliaçao dos sintomas dos filhos, identificam mais problemas como ansiedade e depressao nas crianças quando comparados aos professores5. No contexto internacional, um estudo buscou comparar a percepçao de pais e professores em relaçao aos problemas emocionais e de conduta de crianças encaminhadas para um serviço de psiquiatria6. A amostra contou com pais e maes de crianças com idades entre 6 e 12 anos e seus professores. Responderam ao questionário 52,3% das maes, 37,8% dos pais e 10% de ambos. As análises foram conduzidas de forma a comparar a percepçao dos pais como um todo em relaçao aos professores, nao havendo comparaçao entre as percepçoes de pai e mae, separadamente, e as dos professores. Os resultados mostram que os pais avaliaram maiores escores nas oito subescalas de problemas de comportamento, sendo a variância 0,17. Chama atençao que a realizaçao da avaliaçao das percepçoes dos pais é realizada separadamente, já a comparaçao é realizada contemplando a percepçao dos pais como um todo em relaçao aos professores.
A literatura aponta que as diferenças de percepçoes dos informantes sao atribuídas à sua inserçao em diferentes contextos7. Dessa forma, compreende-se que pais e professores convivem em distintos ambientes com as crianças e os adolescentes e as características desses meios provavelmente se expressam na percepçao e avaliaçao que fazem dos problemas emocionais e de comportamento destes. Ainda assim, poucos estudos caracterizam as famílias e os professores ao investigar suas percepçoes acerca das crianças e dos adolescentes. As pesquisas centram-se em fazer levantamentos dos tipos de sintomas mais frequentes, assim como comparar as avaliaçoes de pais e professores. Estima-se que caracterizar através de variáveis sociodemográficas tanto as famílias quanto os professores poderia conferir maior precisao na avaliaçao das demandas recebidas pelo serviço de psicologia através da escola.
Além disso, pode-se refletir sobre a capacitaçao que os docentes possuem para avaliar efetivamente os sintomas dos alunos. Isso se evidencia nos estudos que indicam que a maior parte dos encaminhamentos realizados pelos professores para as clínicas-escola apontam dificuldades de aprendizagem ou sintomas que se associam à mesma causa, como problemas de atençao, concentraçao e agitaçao1. Estudo realizado recentemente8, com o intuito de identificar a prevalência de transtornos mentais em pacientes atendidos em ambulatório de psiquiatria infantil, analisou prontuários de registros de atendimentos, realizados por médicos residentes e docentes, referentes aos anos de 2009 e 2010. Os resultados apontam maior incidência do sexo masculino e do transtorno de déficit de atençao/hiperatividade na amostra investigada. Sabe-se da complexidade em realizar uma avaliaçao precisa dos sintomas apresentados em sala de aula, os quais sempre sao resultado de inúmeros fatores pessoais, sociais, familiares e também da relaçao professoraluno. Além disso, existem as características pessoais dos professores, sua formaçao, remuneraçao, tempo de trabalho, carga horária, assim como conhecimento acerca de psicologia clínica e do desenvolvimento. Pelo papel que desempenham no contato diário com os alunos, os docentes sao demandados a realizarem essas avaliaçoes comportamentais dos alunos, especialmente porque elas se refletem no processo de ensino-aprendizagem.
Neste contexto, algumas pesquisas indicam que os professores tendem a avaliar sua participaçao na vida das crianças, como no processo ensino-aprendizagem, como muito mais positiva do que a influência que avaliam ser exercida pela família, como um estudo que objetivou levantar as crenças de maes e professoras sobre o desenvolvimento da criança que frequenta o ambiente de creche e identificar se as crenças se dirigem para as características de competências ou de disfunçoes9. Participaram desse estudo 16 maes e 12 professoras, que trabalhavam com crianças na faixa etária de 0 a 3 anos que frequentavam ambientes de creche. Os resultados indicam que, segundo as professoras, a inserçao da criança na creche contribui positivamente para o desenvolvimento da criança, enquanto que as famílias sao as responsáveis pelas possíveis dificuldades que as crianças possam apresentar.
Entretanto, sabe-se da multiplicidade de demandas que os professores enfrentam diariamente no ensino e as consequências disso em sua vida pessoal e profissional. Estudos apontam para altos índices de estresse dos professores, que estao associados a condiçoes precárias de trabalho, elevada carga horária, inclusive extraclasse, e baixa remuneraçao. Os dados ressaltam a necessidade de investimento em formaçao e atualizaçao constantes. Entretanto, quando comparados a outros profissionais, os docentes têm menor remuneraçao, embora tenham maior qualificaçao10.
Estudo de Monteiro e Vedovato11 teve o objetivo de caracterizar o perfil sociodemográfico, estilos de vida, condiçoes de saúde e de trabalho de professores. Participaram da pesquisa 258 professores de nove escolas estaduais de Campinas e Sao José do Rio Pardo. A amostra foi composta por mulheres (81,8%) e homens (18,2%), sendo 60,8% casados e 66,3% com filhos. Os professores exerciam sua funçao em média há 14,2 anos, e na mesma escola há 4,6 anos. Cerca de 54,7% dos professores entrevistados apresentaram uma faixa salarial entre de R$ 800,00 e R$ 1.499,00, e 20,9% recebiam até R$ 799,00. A carga horária média semanal dos professores em apenas uma escola era de 26,2 horas, e a jornada média de trabalho semanal em mais de uma escola era de 35,1 horas. Aproximadamente 95,7% dos professores concluíram o ensino superior e, desses, 15,1% cursaram pós-graduaçao. Consideraram seu trabalho estressante 96,6% dos docentes, e 20,9% referiram ter algum diagnóstico psiquiátrico, especialmente depressao.
Nesta perspectiva, questiona-se o quanto a avaliaçao que os professores realizam do desempenho dos alunos, bem como dos possíveis problemas emocionais e de comportamento, assim como o encaminhamento para psicoterapia, nao reflete também todas as vicissitudes do trabalho e do contexto em que o docente está inserido. Uma pesquisa aponta dados interessantes nessa direçao, com o intuito de analisar a relaçao entre professores com sofrimento psíquico e crianças escolares com problemas de comportamento12. Participaram da pesquisa 151 professores, que avaliaram os problemas de comportamento em 372 alunos, através da escala TRF. Os resultados mostram percentuais mais elevados na identificaçao de problemas internalizantes pelas professoras que apresentam sofrimento psíquico. Problemas de atençao/hiperatividade e problemas externalizantes nao foram percebidos por essas professoras.
Retomando a concepçao de que as diferenças de avaliaçao dos informantes estao associadas a sua inserçao em diferentes contextos7 e identificando os desafios que configuram o meio pessoal e laboral em que vivem os docentes, questiona-se como se caracteriza o contexto familiar. Dados de pesquisas apontam que os docentes associam os problemas emocionais e de comportamento das crianças como resultado de relaçoes familiares problemáticas e do nível socioeconômico familiar. Famílias em situaçao de vulnerabilidade e baixa renda teriam filhos com maiores dificuldades comportamentais e de aprendizagem13.
Esse estudo teve como objetivo investigar a relaçao entre o contexto familiar e o desempenho escolar pobre13. Participaram meninos e meninas, com idade entre 7 e 11 anos, encaminhados para atendimento com dificuldades escolares. As crianças foram divididas em dois grupos: um com crianças sem problema de comportamento, totalizando 30, outro com crianças com problema de comportamento, sendo formado por 37 indivíduos. As maes de todas as crianças foram entrevistadas. No grupo de crianças sem problemas de comportamento, identificaram-se seis maes analfabetas, 27 que frequentaram de um a quatro anos a escola, 40 maes que estudaram de cinco a oito anos e 24 que estudaram durante nove anos ou mais. Já no grupo de crianças com problemas de comportamento, três maes denominaram-se analfabetas, 51 estudaram de um a quatro anos, 24 frequentaram a escola num período de cinco a oito anos e 22 maes estudaram durante nove anos ou mais. No que se refere à escolaridade do pai, no grupo sem problemas de comportamento, seis eram analfabetos, 33 estudaram pelo período de um a quatro anos, 24 frequentaram a escola entre cinco a oito anos, e houve um número considerável de pais que frequentaram por nove anos ou mais a escola12. No grupo com problemas de comportamento, apenas cinco pais frequentaram a escola por nove anos ou mais, 27 por cinco a oito anos, 46 pelo período de um a quatro anos e cinco pais denominaram-se analfabetos. Outro aspecto importante é a jornada de trabalho, nesse estudo focado no trabalho da mae. Nao houve diferença significativa entre ambos os grupos no que se refere a maes que trabalham em casa. O grupo de crianças com problemas de comportamento era composto por 42 maes que trabalham em casa, já no grupo sem problemas comportamentais eram 41. Havia um número alto de maes que trabalham acima de oito horas, sendo 31 maes no grupo sem problemas e 33 no outro. Esses resultados sao elucidativos porque expressam uma diversidade na caracterizaçao familiar tanto no grupo de crianças com problemas de comportamento quanto no grupo que nao apresentava sintomas.
Nesta direçao, outra pesquisa avaliou o contexto familiar e as associaçoes com a saúde mental infantil, através de um estudo quantitativo com 100 crianças com idades entre 6 e 12 anos e seus familiares14. Os resultados indicam nao haver diferença nos problemas de comportamento das crianças conforme a idade e o sexo. Entretanto, a instabilidade financeira familiar mostrou ser preditora positiva de hiperatividade e negativa de todos os demais problemas de comportamento, assim como o estresse materno mostrou ser preditor positivo de problemas gerais na saúde mental das crianças. Alguns desses resultados nao corroboram estudos anteriores que apontam como características prevalentes da clientela de clínicas-escola nacionais crianças do sexo masculino, entre 6 e 11 anos de idade, com problemas escolares associados ao comportamento15. Por outro lado, é congruente em termos do nível socioeconômico familiar, sendo o maior número de crianças provenientes de famílias de baixa renda16.
Considerando as divergências encontradas na literatura em termos das variáveis sociodemográficas e familiares das crianças que possam estar associadas aos problemas de comportamento, e assumindo algumas evidências dessas relaçoes, é relevante conhecer suas características no sentido de encontrar subsídios para um melhor encaminhamento da demanda psicoterapêutica. Da mesma forma, a caracterizaçao socioeconômica dos docentes que trabalham diariamente com as crianças poderia fornecer subsídios para a elaboraçao de propostas interventivas e preventivas, adaptadas ao contexto socioeconômico e cultural dessas famílias. Neste sentido, o objetivo de presente estudo foi caracterizar, de maneira sociodemográfica, as maes e professores de crianças e adolescentes encaminhados para psicoterapia pela escola em município do RS, bem como analisar possíveis associaçoes entre essas variáveis e suas avaliaçoes dos problemas emocionais e de comportamento.
MATERIAL E MÉTODO
Esta pesquisa utilizou uma abordagem quantitativa e descritiva. A amostra foi composta por maes e professores de 87 alunos matriculados em quatro escolas da rede municipal de um município do RS que foram encaminhados para psicoterapia. Os genitores foram convidados a comparecer à escola para participar do estudo, entretanto, como o maior número de respondentes foram as maes, elas foram utilizadas neste estudo, nao sendo analisados os dados dos pais. Foram considerados como critérios de inclusao que o genitor residisse com o filho e que este tivesse sido encaminhado para psicoterapia pela escola. Dessa forma, os grupos de alunos já estavam definidos, a priori, pelo encaminhamento da escola. As maes e os docentes responderam os instrumentos referentes a cada aluno(a). A Tabela 1 traz uma breve caracterizaçao das maes e professores que estao incluídos neste estudo.
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