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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2014; 16(3):1-15



Artigos Originais

A relaçao terapêutica na psicoterapia psicanalítica. Experiências vividas por ex-pacientes

The therapeutic relationship in psychoanalytic psychotherapy. The experience lived by former patients

Luis Carlos Batista1; Hugo Senra2; Rui Aragao Oliveira3

Resumo

O presente estudo explora as experiências vividas de um processo psicoterapêutico por uma amostra clínica que realizou psicanálise ou psicoterapia psicanalítica. O principal objetivo é analisar e compreender como é que a relaçao entre psicoterapeuta e sujeito num processo psicanalítico ou psicoterapêutico psicanalítico é percebida em diferentes momentos, momentos inicial e final. O design de investigaçao remete para um estudo exploratório, recorrendo-se a um modelo de análise qualitativa de dados obtidos a partir de questionários e/ou entrevistas utilizando-se das recomendaçoes metodológicas do Método de Investigaçao Qualitativa Consensual. Foram contactados cinco psicoterapeutas, e 13 sujeitos foram registrados como tendo aceitado realizar entrevista. Os dados foram recolhidos de 13 sujeitos que terminaram psicoterapia psicanalítica de longo tempo e psicanálise. Os dados revelaram diferentes argumentos acerca da relaçao terapêutica. Quanto ao momento inicial, os sujeitos evocaram mais conteúdos relacionados com questoes/sentimentos acerca do próprio, enquanto que, relativamente ao momento final, os sujeitos evocaram mais conteúdos relacionados com a relaçao terapêutica e com o psicoterapeuta.

Descritores: Processo psicoterapêutico; Relaçao terapêutica; Psicoterapia psicanalítica; Psicanálise.

Abstract

The present study explores lived experiences of the psychotherapeutic process in a clinical sample of those who finished a psychoanalytical psychotherapy or psychoanalysis. The main aim is to analyse and understand how the relationship between patient and therapist in the process of psychoanalytical psychotherapy or psychoanalysis is realized by the patients in different moments, initial and final moments. The research design was an exploratory study using qualitative analysis methodology by resorting to questionnaires and/or interviews, using methodological recommendations from the Consensual Qualitative Research (CQR) method. 5 psychotherapists were contacted, and 13 patients were registered as having agreed to make the interview. Data was collected from the 13 patients who finished a long-term psychodynamic psychotherapy or psychoanalysis. The data has shown different arguments about the therapeutic relationship. Patients evoke more contents related to questions/ feelings about themselves on an initial moment. On the contrary, on a final moment, patients evoke more contents related with the therapeutic relationship and toward psychotherapist.

Keywords: Psychotherapeutic process; Therapeutic relationship; Psychoanalytic psychotherapy; Psychoanalysis.

 

 

INTRODUÇAO

A psicoterapia foi reconhecida como prática profissional no final do século 19. Esse tipo de tratamento de problemas de saúde mental requer uma cura pelo método do diálogo, que busca um conhecimento profundo do paciente. Inicialmente, a psicoterapia adotava o método investigativo da medicina, a fim de produzir dados que pudessem validar e confirmar a efetividade dessa prática profissional. Esse tipo de pesquisa costumava enfocar as ideias do psicoterapeuta em vez de focar as experiências dos pacientes. Dessa forma, alguns autores vêm discutindo como a pesquisa sobre o processo psicanalítico deveria ser feita. Os novos estudos têm levado em consideraçao tanto as experiências vividas pelos pacientes quanto as experiências vividas pelos terapeutas. Focando nessa díade, tentam analisar e compreender algumas características desse processo.

O estudo do processo psicoterapêutico psicanalítico é importante para um conhecimento profundo da relaçao terapêutica e seus aspectos, promovendo o desenvolvimento da metodologia de intervençao clínica.

Além disso, ao se estudar o processo psicoterapêutico, alguns aspectos devem ser levados em consideraçao de modo prévio, especificamente a influência que uma investigaçao poderia ter no curso de um processo psicoterapêutico psicanalítico e a metodologia de coleta de dados - considerando sua natureza subjetiva. Concluindo, esse é um processo que se dá entre duas pessoas, em um progresso contínuo (terapeuta e paciente), representando uma díade muito importante e fundamental que é realizada na busca pela compreensao dos resultados do estudo5. Essa díade tem papel fundamental para o desenvolvimento do processo psicoterapêutico psicanalítico. Através da interaçao entre o terapeuta e a intersubjetividade do paciente, esse processo representa um papel extremamente importante de mudança do modelo relacional do paciente6. Além disso, os pacientes utilizam essa díade para expandir suas consciências e explorar a si próprios e fortalecer seus egos. Neste sentido, o estudo da relaçao terapêutica se tornou importante quando se estuda um processo terapêutico. A relaçao que é gerada e desenvolvida durante esse processo constitui-se em um apoio essencial para todo o processo terapêutico.

Quando alguém pretende analisar os dados coletados em um processo psicoterapêutico psicanalítico, deveria ter em mente que isso tem uma natureza subjetiva, já que o inconsciente é o principal material de trabalho nessa área. Já foi documentado por vários como sendo diferente das escalas autopreenchíveis e dos questionários, que se limitam a registrar conclusoes.

Como se sabe, a própria relaçao é um dos fatores mais importantes5, sendo muitas vezes considerada no sucesso psicoterapêutico; mesmo assim, é um dos fatores comuns dentre todas as teorias psicanalíticas. No entanto, como parte do modelo psicanalítico, admite-se que a relaçao terapêutica tem um impacto muito maior, porque seu principal foco é parte do próprio modelo terapêutico.

É na relaçao terapêutica que se estabelece e se desenvolve uma comunicaçao inconsciente e é nesse nível que as mudanças ocorrem durante o processo terapêutico. Tais mudanças somente sao reconhecidas na relaçao e percebidas pela expressao consciente. Isso sugeriu que os métodos avaliativos existentes, que sao baseados em dimensoes conscientes, sao incompetentes e inadequados. Sendo assim, ainda existe a necessidade de se criar e adaptar metodologias avaliativas que levem em consideraçao essa natureza subjetiva, em vez de excluí-la.

Uma preocupaçao surgiu no que diz respeito às representaçoes subjetivas do paciente em relaçao ao processo7. Os estudos que enfocam as representaçoes subjetivas geralmente tentam compreender o processo baseados nas representaçoes do psicoterapeuta, e nao nas representaçoes dos pacientes. Dessa forma, tais estudos nao evidenciam uma compreensao real das experiências dos pacientes, nem como eles analisam o processo. Por essa perspectiva, torna-se crucial o estudo focando também nas experiências subjetivas dos pacientes, assim como feito por Levander e Werbart3, Lilliengren e Werbart8, Lindgren, Werbart e Philips9, Philips, Wennberg e Werbart10.

Atualmente, a questao que tem sido levada à discussao pela comunidade psicanalítica diz respeito à natureza dos métodos de pesquisa que deveriam ser conduzidos e utilizados nesse tema em particular. Buscando discutir isso, alguns autores (e.g., 4,7,9-13) desenvolveram novas abordagens. Eles se concentram nas teorias pessoais tanto dos pacientes quanto dos terapeutas a respeito do processo psicanalítico, visando coletar dados específicos e valiosos sobre as ideias formuladas a esse respeito.


A RELAÇAO TERAPEUTICA

Se voltarmos à época de Freud4, poderemos facilmente perceber que, naquele tempo, a relaçao terapêutica era considerada o fator primordial no processo psicanalítico. Nessa relaçao, os pacientes podem expor suas teorias internas e seus materiais inconscientes. Em outras palavras, os pacientes podem reproduzir suas construçoes internas de significado no setting terapêutico, através dos mecanismos de transferência e contratransferência, revelando suas estruturas internas ao terapeuta4. Tal comunicaçao somente é possível se o terapeuta tiver um bom conhecimento de suas próprias construçoes internas de significado, para que possa compreender o investimento colocado pelo paciente em suas relaçoes.

A relaçao terapêutica será baseada na confiança, proximidade e segurança, fazendo com que os pacientes se sintam confortáveis em compartilhar seus pensamentos3. Essa é uma relaçao em que paciente e terapeuta pensam juntos o self do paciente, do mesmo modo que pensam o self de outros. Assim, os terapeutas assumem um papel importante nessa díade, estando disponíveis e capazes de conter várias atitudes relativas à diversidade de aspectos da personalidade de seus pacientes, mesmo quanto ao ataque à relaçao que eles podem fazer nessa nova díade. Com esse entendimento, é possível que se obtenha um relacionamento (paciente/terapeuta) no qual o paciente demonstre progresso sem qualquer tipo de julgamento por parte de seu terapeuta3. A partir dessa relaçao terapêutica, os pacientes podem extrapolar as experiências vivenciadas com os terapeutas para fora do setting terapêutico, adotando uma atitude de desejo por relacionamentos que, em retorno, possam satisfazer suas necessidades. Essa ideia foi confirmada em muitos estudos (e.g., 3,14-17).

A relaçao terapêutica é uma relaçao privilegiada que possibilita ao paciente apresentar o desenvolvimento necessário para que possa expandir seu bem-estar psicológico e obter uma melhor percepçao de seu self18. Contudo, existe uma assimetria. Ou, em outras palavras, os terapeutas ainda assumem o papel de responsáveis19, pois o terapeuta deve ser sensível ao modelo relacional do paciente, às suas necessidades de relacionamento e, através dessa relaçao, criar as condiçoes necessárias e a disponibilidade para atender às necessidades do paciente. É facilmente compreensível que, assim como o terapeuta, o paciente também assume um papel importante. Com esse discernimento, estamos agora analisando a experiência subjetiva dos pacientes.

A experiência subjetiva nao começa apenas quando o processo terapêutico inicia. Isso é algo que começa antes do início do processo, contendo todas as ideias que o paciente tem sobre o processo em si. Um dos questionamentos que deveriam ser feitos refere-se ao que os pacientes pensam a respeito do desenvolvimento do processo e como isso poderia ajudá-los a solucionar seus problemas. Esse ponto específico parece ser muito significativo e deveria ser avaliado pelo psicoterapeuta/psicanalista, porque ele pode contribuir e influenciar o processo psicoterapêutico.

Uma das vantagens de estudar o processo psicanalítico a partir das experiências subjetivas dos pacientes é a oportunidade de entendê-los como uma pessoa única, permitindo o acesso a suas características pessoais. Isso leva à compreensao de que determinadas características (aquelas em análise) atendem às características do modelo terapêutico, estabelecendo uma relaçao entre o paciente e as características do modelo20.

O principal objetivo do presente estudo é o de explorar as experiências subjetivas de uma série de pacientes que já vivenciaram um processo psicanalítico/psicoterapêutico. A finalidade específica desta pesquisa é a de tentar analisar a mudança de percepçao sobre a relaçao terapêutica em dois momentos diferentes (momentos inicial e final) do processo psicanalítico/psicoterapêutico, em relaçao à percepçao dos pacientes um ano ou mais após o término do processo.

Este artigo faz parte de um estudo mais abrangente sobre experiências vividas dentro do processo psicoterapêutico em psicanálise e psicoterapia psicanalítica21.


MÉTODO

Amostra


O processo de seleçao da amostra ocorreu em uma clínica privada de psicanálise, psicoterapia psicanalítica e psiquiatria, localizada em Lisboa. Assim, a populaçao-alvo desta pesquisa é de pacientes adultos que tenham iniciado e finalizado uma psicoterapia psicanalítica ou psicanálise em um contexto de clínica privada. Os terapeutas foram notificados a respeito do objetivo geral do estudo e de seus procedimentos, que deveriam ser seguidos ao selecionarem seus pacientes. Foi também solicitado que eles consultassem suas anotaçoes para que escolhessem, dentre os pacientes de psicoterapia e/ou psicanálise, aqueles que tivessem tido alta da terapia em comum acordo (com alta de psicoterapia clínica) há pelo menos um ano. Sendo assim, temos uma amostra conveniente baseada em pacientes que se submeteram à psicoterapia psicanalítica ou psicanálise em prática privada.

Cinco terapeutas, quatro mulheres e um homem, indicaram 21 pacientes para participar do estudo. É importante ressaltar que todos esses terapeutas sao formados em psicologia ou psiquiatria, com especializaçao em psicoterapia e com mais de cinco anos de experiência em prática clínica supervisionada.

Dos 21 pacientes, apenas 13 efetivamente concordaram em participar. Suas idades variam de 29 a 63 anos, sendo dez deles mulheres e três homens; oito pacientes fizeram psicoterapia psicanalítica e cinco com abordagem psicanalítica; o processo psicoterapêutico foi realizado com casos que variaram de um ano e seis meses a sete anos de processo.

Modelo de pesquisa

O modelo de pesquisa consistiu-se de um estudo exploratório, utilizando a metodologia de análise qualitativa através de questionários e/ou entrevistas. Após longa reflexao do time sobre a relevância dos métodos para as metas estabelecidas, escolhemos seguir as recomendaçoes metodológicas do Método de Pesquisa Qualitativa Consensual (CQR)22,23. Ao contrário de algumas abordagens fenomenológicas, que desencorajam a consulta na literatura, baseando-se no fato de que esta possa influenciar a análise de dados, esta abordagem discute o fato de que a consulta literária sobre o assunto nao tem, necessariamente, uma influência negativa. Uma vez que esta facilita a exploraçao de áreas pouco estudadas dentro de um determinado tema, auxilia o desenvolvimento de novas formas de exame de tópicos antigos e, fundamentalmente, permite uma melhor definiçao dos tópicos da pesquisa, assim como uma melhor concepçao do protocolo de entrevistas/questionários.


PROCEDIMENTOS

Concepçao do questionário/guia da entrevista com os pacientes


Com a finalidade de compreender o tipo de questoes/áreas que foram abordadas, examinamos artigos sobre pesquisas a respeito da eficácia da psicoterapia em que a metodologia qualitativa tenha sido utilizada para a análise das entrevistas de pacientes, denominada de Pesquisa Qualitativa Consensual22,23.

Após isso, fez-se um esboço inicial contendo perguntas que poderiam ser feitas. Esse esboço foi posteriormente discutido e modificado de acordo com as áreas que decidimos focalizar (como o relacionamento com o terapeuta, além de outros que nao sao mencionados no corrente artigo).

Foram feitas duas versoes do protocolo: uma a ser aplicada em entrevistas, e a outra no formato de Word, para ser enviada através de correio eletrônico. Optamos por configurar o questionário no formato Word em vez de utilizar um questionário on-line, por diversas razoes, a saber: 1) isso permitiria que os pacientes salvassem seus textos, à medida que os escrevessem, visto que, com esse software, os pacientes poderiam também salvar seus textos em caso de queda de energia; 2) isso permitiria que eles respondessem ao questionário gradualmente, caso nao houvesse tempo ou vontade de fazê-lo de uma só vez; 3) haveria a possibilidade de utilizar a opçao restaurar ("undo") uma informaçao escrita, caso a mesma fosse apagada acidentalmente.

Os pacientes seriam contatados primeiramente por seus terapeutas para saber sobre o seu interesse em participar deste estudo. Se a resposta fosse afirmativa, eles seriam contatados posteriormente por um investigador independente, que os questionaria sobre qual método de coleta de dados que eles prefeririam de modo a proteger totalmente a identidade dos terapeutas e/ou pacientes.

Desenvolvimento do questionário para os profissionais

O questionário a ser preenchido pelos clínicos consistia de: 1) dados do psicoterapeuta/psicanalista; 2) procedimento de contato com o paciente; e 3) dados do paciente. As perguntas incluem dados como idade, gênero, grau, ano de conclusao de curso de graduaçao, a universidade onde se formou, estudos avançados, locais de treinamento em psicoterapia e/ou psicanálise, o contexto da prática profissional, os anos de prática clínica, a frequência de prática clínica, frequência de supervisao e atendimento (passado ou presente) de psicoterapia pessoal.

A segunda seçao - Procedimento de Contato com os Pacientes - consiste de uma tabela com informaçoes que explicam adequadamente os critérios utilizados para a seleçao de pacientes e sugere um guia de procedimento geral que os terapeutas deveriam seguir ao fazerem o primeiro contato telefônico com seus pacientes. Assim, os terapeutas foram instruídos para contatar pacientes que tivessem se submetido à psicoterapia psicanalítica ou psicanálise, e cuja terapia tivesse terminado, por comum acordo, há, pelo menos, um ano. Em relaçao à conversa telefônica, foi sugerido que os pacientes deveriam ser informados primeiramente que a clínica estaria conduzindo um estudo de investigaçao/pesquisa sobre as experiências dos pacientes em relaçao ao processo psicoterapêutico e, caso eles aceitassem fazer parte, um pesquisador independente entraria em contato com eles posteriormente. Nesse momento, eles receberiam informaçoes mais detalhadas sobre o estudo e receberiam um questionário. Os terapeutas também foram instruídos a esclarecer a seus pacientes sobre a natureza anônima de suas participaçoes.

Finalmente, a terceira seçao - Dados dos Pacientes - consiste de uma série de formulários preenchidos pelos terapeutas contendo informaçoes sobre os pacientes com quem eles contataram formalmente e quais deles aceitaram participar da pesquisa. Perguntou-se, para cada paciente, seus nomes (para contatos futuros), sexo, idade, tipo de intervençao psicoterapêutica (psicoterapia/psicanálise frente a frente), início e final da terapia, a frequência semanal das sessoes, além de um espaço para notas e comentários que os clínicos quisessem adicionar.

Para obter a análise da meta: analisar a mudança de percepçao da relaçao terapêutica em dois momentos diferentes (inicial e final) no processo psicanalítico/psicoterapêutico em relaçao à percepçao dos pacientes depois de um ano ou mais de o processo ter sido finalizado. Nós analisamos as perguntas: "É possível para você descrever como sentiu e/ou sente seu terapeuta? Como você vivenciou a relaçao com seu terapeuta durante o processo terapêutico?". Essas análises foram feitas pelos autores, todos os psicólogos clínicos e um psicanalista.


RESULTADOS

Para a análise dos dados, consideramos dois momentos diferentes, a fim de obter os resultados que respondessem a nossos objetivos. Assim, dividimos as entrevistas (n=13) em momento inicial e momento final. A partir daí, analisaremos primeiramente esses dois momentos separadamente e, entao, os compararemos.

Momento inicial

Começando pela análise do momento inicial, surgiram seis unidades de significado divididas em três componentes da estrutura, como podemos ver na Tabela 1.




A partir da análise das entrevistas dos pacientes, nove entre dez pacientes falaram sobre o momento inicial do processo psicoterapêutico/psicanalítico, como se tivessem evocado os conteúdos subjetivos, seis pacientes evocaram os conteúdos objetivos, e quatro pacientes evocaram os conteúdos relacionados com o psicoterapeuta, os últimos três dos 13 pacientes nao mencionaram qualquer tipo de conteúdo a respeito do momento inicial da relaçao. Dos nove pacientes que mencionaram os conteúdos subjetivos, seis evocaram conflitos internos, três evocaram sentimentos a respeito da relaçao e dois evocaram sentimentos relacionados ao self. Dos seis pacientes que citaram os conteúdos objetivos, três evocaram as atitudes do psicoterapeuta, assim como evocaram fatos do processo psicoterápico. Finalmente, quatro pacientes que se referiram aos conteúdos relacionados ao psicoterapeuta haviam evocado sentimentos quanto ao psicoterapeuta. É importante mencionar que a maioria dos pacientes (n=7) evocou mais de uma unidade de significado.

Fazendo uma análise detalhada sobre o que surgiu do momento inicial, e sempre sustentando as unidades de significado com exemplos vindos das entrevistas dos pacientes1*, todos os aspectos lembrados pelos pacientes em relaçao a eles mesmos ou relacionados diretamente com eles foram incluídos no componente da estrutura dos conteúdos subjetivos. Desses componentes da estrutura, três unidades de significado surgem: a) conflitos internos, por exemplo: "Minha primeira reaçao, quando eu comecei a terapia, foi pensar que eu nunca falaria a respeito dos meus sentimentos profundos, minha tristeza ou preocupaçoes, para alguém desconhecido para mim. Eu nunca falo sobre meus sentimentos"; b) sentimentos quanto à relaçao, por exemplo: "Nossa relaçao foi ótima desde o início. Foi uma experiência muito agradável"; e, finalmente, c) sentimentos em relaçao ao self, por exemplo: "Foi através de um amigo que me deu o contato, e quando eu finalmente encontrei a coragem para ligar, foi muito mais fácil do que eu pensara".

O segundo componente da estrutura que apareceu foram os conteúdos objetivos, que incluem os aspectos objetivos pertencentes ao processo terapêutico. Desse componente de estrutura, duas unidades de significado surgem, a saber: a) atitudes do psicoterapeuta, por exemplo: "Sua atitude amável e seu cuidado em relaçao a sua disponibilidade e presença [...]"; e, por último, b) fatos do processo psicoterapêutico, por exemplo: "[...] no começo, quando estávamos frente a frente, era como uma consulta com perguntas e respostas, mas quando nao mais frente a frente [backturned], somos 'obrigados' a falar [...]".

Finalmente, o último componente da estrutura que apareceu foram os conteúdos relacionados ao psicoterapeuta, que incluem sentimentos desencadeados pelos pacientes em contato com seus terapeutas, como parte do processo psicoterapêutico/psicanalítico. Nesse componente da estrutura, apenas um significado surgiu, a) sentimentos para com o psicoterapeuta, por exemplo: "Sinceramente, minha primeira reaçao quando conheci ele/ela, pensei nele/nela como sendo alguém de coraçao frio e definitivamente antipático(a) [...]".

Momento final

No momento final, podemos compreender como os pacientes vivenciam a relaçao terapêutica com seu terapeuta nesse momento particular do processo, a partir das representaçoes subjetivas dos pacientes. Assim como fizemos na análise anterior, também faremos agora uma análise detalhada, dando exemplos de todas as unidades de significado a partir das respostas dos pacientes.

A partir dessa análise, percebemos que todos os pacientes (n=13) evocaram os conteúdos subjetivos, cinco pacientes evocaram os conteúdos objetivos e três pacientes evocaram os conteúdos relacionados ao psicoterapeuta. Dos 13 pacientes que evocaram os conteúdos subjetivos, seis pacientes evocaram os sentimentos relacionados ao psicoterapeuta; seis pacientes evocaram os sentimentos quanto ao self; quatro pacientes evocaram os sentimentos quanto à relaçao; e, por fim, quatro pacientes evocaram a idealizaçao.

Em relaçao aos cinco pacientes que evocaram os conteúdos objetivos, todos os pacientes (n=5) evocaram fatos do processo psicoterapêutico; um paciente evocou as atitudes do psicoterapeuta; para concluir, um paciente evocou o aprendizado.

Finalmente, em relaçao ao paciente que evocou os conteúdos relacionados ao psicoterapeuta, este evocou precisamente os sentimentos relacionados ao psicoterapeuta.

Como podemos ver na Tabela 2, em relaçao ao momento final, do qual oito unidades de significados surgiram a partir das entrevistas com os pacientes, esses estao agrupados em três componentes de estrutura. Especificamente, o primeiro componente de estrutura, os conteúdos subjetivos, como referido previamente, inclui todos os aspectos que os pacientes mencionam sobre si próprios ou que sao pessoalmente relacionados a eles. As primeiras quatro unidades a surgir sao as seguintes: a) sentimentos quanto à relaçao, por exemplo: "A relaçao com meu psicoterapeuta foi marcada pela empatia, cuidado e desenvolvimento"; b) sentimentos relacionados ao psicoterapeuta, por exemplo: "Alguém que se importa e me respeita e eu certamente estou contente por tê-lo/tê-la conhecido [...]"; c) idealizaçao, por exemplo: "[...] em meu atendimento, ele/ela foi ótimo(a) e atingiu minhas expectativas"; e, por último, d) sentimentos relacionados ao self, por exemplo: "[...] algumas vezes me sentia bem e confortável, outras vezes eu me sentia frustrado [...]".




O segundo componente de estrutura que surgiu foi o conteúdos objetivos, também referido previamente, onde se encontram todos os aspectos do objeto que fizeram parte do processo psicoterapêutico/psicanalítico. Três unidades de significado surgiram: a) fatos do processo psicoterapêutico, como em: "[...] com a distância necessária, mesmo que isto tenha me incomodado, às vezes, devido ao caráter pessoal e a fragilidade deste processo, sei e senti que este é o caminho que deveria tomar, nao estamos lá para socializar, nem para fazer amigos, estamos lá para fazer terapia e eu sempre senti uma relaçao terapêutica com o paciente"; b) as atitudes do psicoterapeuta, por exemplo: "[...] me sentia frustrado muitas vezes quando via o paciente olhando seu relógio"; a última se refere a c) aprendizado, por exemplo: "[...] meu terapeuta era um professor e me ensinou muito bem, tao bem, na realidade, que aplico seus ensinamentos hoje em dia".

Finalmente, o último componente de estrutura que surgiu refere-se aos conteúdos relacionados ao psicoterapeuta. Como descrito previamente, este se relaciona aos sentimentos desencadeados pelos pacientes em contato com os terapeutas no processo psicoterapêutico/psicanalítico. Nesse componente de estrutura, somente um significado surgiu: a) sentimentos quanto ao psicoterapeuta, por exemplo: "foi um privilégio ter tido este psicoterapeuta, ele/ela foi excepcional e teve paciência com alguns comportamentos menos elegantes por todos estes anos, a saber, meus atrasos e ausências sem informar".

É importante observar que, assim como havia ocorrido no momento inicial e no momento final, a maioria dos pacientes (n=12) se referiu a mais de uma unidade de significado.


MOMENTO INICIAL X MOMENTO FINAL

A partir da análise anterior, parece haver uma diferença na forma como os pacientes percebem a relaçao terapêutica entre os momentos inicial e final de um processo terapêutico (Gráfico 1).


Gráfico 1: Comparaçao dos conteúdos evocados nos momentos inicial e final.



Em ambos os momentos, o inicial e o final, os pacientes relatam mais conteúdos subjetivos; entretanto, a natureza dos conteúdos evocados parece apresentar uma mudança durante o processo psicoterapêutico/psicanalítico.

Em um momento inicial, os pacientes evocaram mais conteúdos relacionados a perguntas/sentimentos sobre eles mesmos. Entretanto, quando se considera um momento final, os pacientes evocam mais conteúdos relacionados à relaçao terapêutica e ao psicoterapeuta. Apesar de os pacientes terem evocado conteúdos com uma natureza objetiva, esses tipos de conteúdos têm uma tendência a serem desvalorizados durante o processo. Ainda assim, parece haver uma certa valorizaçao em relaçao ao processo psicoterapêutico para o qual há uma tendência a ganhar alguma relevância durante esse processo. Olhando para o Gráfico 1, o nível dos conteúdos relacionados com o psicoterapeuta, que foram evocados pelos pacientes, é o menor, em comparaçao a todos os outros conteúdos. Os conteúdos objetivos e os relativos aos psicoterapeutas tendem a ser os menos mencionados, quando se considera os momentos inicial e final.

Um dos aspectos destacados da análise de dados refere-se à consciência dos pacientes quando referidos a seus mundos internos, assim como uma internalizaçao da funçao terapêutica, através do avanço do processo terapêutico. Isso sugere entao uma mudança de entendimento da relaçao terapêutica.


DISCUSSAO

Um dos fenômenos que pode ser percebido é que existe uma mudança na natureza dos conteúdos que os pacientes relatam em relaçao aos momentos inicial e final. Essas mudanças foram também verificadas por Arnold, Farber e Geller24, que também encontraram diferenças entre as representaçoes dos momentos inicial e final, quando pediram aos pacientes que falassem a respeito desses dois momentos do processo terapêutico. Os autores24 encontraram correlaçoes entre as diferenças acima e o gênero e tempo de duraçao das variáveis do processo terapêutico. Essas variáveis nao foram consideradas na análise de dados do presente estudo, uma vez que o número da amostra é pequeno, o que nao permitiu uma análise de correlaçao dessas variáveis diferentes.

Um dos aspectos que podem ser discutidos refere-se à mudança que ocorre de um momento para outro, o que representa por si um pré-requisito para a alta em psicoterapia. Se considerarmos o modelo psicanalítico das metas da intervençao clínica, como Gabbard5 mencionou e como Arnold, Farber e Geller24 encontraram, as mudanças levantadas no presente estudo pertencem aos critérios e metas que deveriam ser alcançados para o término e sucesso do processo terapêutico.

A relaçao analítica é considerada como sendo um dos fatores principais que originam as mudanças ocorridas do momento inicial até o momento final. Como destacada por Lilliengrenand Werbart3, Lyons-Ruth6 e Spillius25, a relaçao analítica tem características específicas, o que faz com que essa relaçao seja diferente de todas as outras, e também o terapeuta se envolve nesse processo, facilitando a maturaçao e desenvolvimento dos indivíduos nos processos de transferência e contratransferência. Esse relacionamento com suas próprias características permite que os pacientes vivam seus mundos internos, recebendo um feedback através do comportamento nao verbal do terapeuta, assim como das interpretaçoes que podem desencadear um autoconhecimento e uma consciência do processo terapêutico.

A díade entre o paciente e o terapeuta cria as condiçoes para desencadear insights na interpretaçao de fantasias inconscientes, mas também uma mudança visando "criar um novo indivíduo que nao existia antes"5 (p. 219). Sendo assim, mais do que uma simples resoluçao de conflito sintomático e inconsciente, atualmente a psicanálise está buscando desenvolver processos de descoberta e clarificaçao, assim como promover a expansao da compreensao do fenômeno mental - tornando-se mais próximo ao que Bion concebeu como o mecanismo do pensamento26.

Em suma, o presente estudo se torna importante para a pesquisa sobre os processos psicoterapêuticos psicanalíticos, pois os métodos de coleta de dados permitem que nao haja uma perda da complexidade natural dos dados, e também devido ao objeto de estudo - representaçoes subjetivas do processo terapêutico a partir de pacientes que vivenciaram e finalizaram um processo.

Todavia, pode-se encontrar algumas limitaçoes no presente estudo, a saber: o método qualitativo de análise nao é objetivo e depende da perspectiva do investigador. De tal modo, seria interessante que, em estudos futuros, o método de análise quantitativa também fosse utilizado. Além disso, a análise retrospectiva pode ser influenciada pela forma como o processo terapêutico ocorreu. Assim, seria interessante que em estudos futuros houvesse pacientes em tratamento e que se tivessem a experiência subjetiva no momento em que ocorresse. Também seria importante, em estudos futuros, que se analisasse a experiência subjetiva dos pacientes em relaçao à relaçao terapêutica, dentre os pacientes que finalizaram a terapia sem acordo mútuo.

Como foi observado neste estudo, as relaçoes terapêuticas fornecem dados muito valiosos sobre o processo psicoterapêutico/psicanalítico buscando uma compreensao profunda sobre o próprio processo. Sendo assim, a partir do estudo da relaçao terapêutica, muitos aspectos relacionados ao processo podem ser analisados.

"Todos os exemplos apresentados aqui, a partir das entrevistas com os pacientes, foram vertidos do português para a língua inglesa."


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1. Mestre. Psicólogo clínico
2. PhD. Psicólogo clínico
3. PhD. Psicólogo clínico, membro da IPA, Clinipinel, UISP/Lisboa

Instituiçao: Universidade de Évora

Correspondência
Rui Aragao Oliveira
Clinipinel, Largo da Andaluz, nº 15, 2º esq.
Lisboa, Portugal 1050-004
raragao@clinipinel.com

Submetido em 21/02/2014
Solicitaçao de reformulaçoes em 05/08/2014
Retorno dos autores em 19/08/2014
Aceito em 10/09/2014

 

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