Rev. bras. psicoter. 2014; 16(3):1-15
Batista LC, Senra H, Oliveira RA. A relaçao terapêutica na psicoterapia psicanalítica. Experiências vividas por ex-pacientes. Rev. bras. psicoter. 2014;16(3):1-15
Artigos Originais
A relaçao terapêutica na psicoterapia psicanalítica. Experiências vividas por ex-pacientes
The therapeutic relationship in psychoanalytic psychotherapy. The experience lived by former patients
Luis Carlos Batista1; Hugo Senra2; Rui Aragao Oliveira3
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
A psicoterapia foi reconhecida como prática profissional no final do século 19. Esse tipo de tratamento de problemas de saúde mental requer uma cura pelo método do diálogo, que busca um conhecimento profundo do paciente. Inicialmente, a psicoterapia adotava o método investigativo da medicina, a fim de produzir dados que pudessem validar e confirmar a efetividade dessa prática profissional. Esse tipo de pesquisa costumava enfocar as ideias do psicoterapeuta em vez de focar as experiências dos pacientes. Dessa forma, alguns autores vêm discutindo como a pesquisa sobre o processo psicanalítico deveria ser feita. Os novos estudos têm levado em consideraçao tanto as experiências vividas pelos pacientes quanto as experiências vividas pelos terapeutas. Focando nessa díade, tentam analisar e compreender algumas características desse processo.
O estudo do processo psicoterapêutico psicanalítico é importante para um conhecimento profundo da relaçao terapêutica e seus aspectos, promovendo o desenvolvimento da metodologia de intervençao clínica.
Além disso, ao se estudar o processo psicoterapêutico, alguns aspectos devem ser levados em consideraçao de modo prévio, especificamente a influência que uma investigaçao poderia ter no curso de um processo psicoterapêutico psicanalítico e a metodologia de coleta de dados - considerando sua natureza subjetiva. Concluindo, esse é um processo que se dá entre duas pessoas, em um progresso contínuo (terapeuta e paciente), representando uma díade muito importante e fundamental que é realizada na busca pela compreensao dos resultados do estudo5. Essa díade tem papel fundamental para o desenvolvimento do processo psicoterapêutico psicanalítico. Através da interaçao entre o terapeuta e a intersubjetividade do paciente, esse processo representa um papel extremamente importante de mudança do modelo relacional do paciente6. Além disso, os pacientes utilizam essa díade para expandir suas consciências e explorar a si próprios e fortalecer seus egos. Neste sentido, o estudo da relaçao terapêutica se tornou importante quando se estuda um processo terapêutico. A relaçao que é gerada e desenvolvida durante esse processo constitui-se em um apoio essencial para todo o processo terapêutico.
Quando alguém pretende analisar os dados coletados em um processo psicoterapêutico psicanalítico, deveria ter em mente que isso tem uma natureza subjetiva, já que o inconsciente é o principal material de trabalho nessa área. Já foi documentado por vários como sendo diferente das escalas autopreenchíveis e dos questionários, que se limitam a registrar conclusoes.
Como se sabe, a própria relaçao é um dos fatores mais importantes5, sendo muitas vezes considerada no sucesso psicoterapêutico; mesmo assim, é um dos fatores comuns dentre todas as teorias psicanalíticas. No entanto, como parte do modelo psicanalítico, admite-se que a relaçao terapêutica tem um impacto muito maior, porque seu principal foco é parte do próprio modelo terapêutico.
É na relaçao terapêutica que se estabelece e se desenvolve uma comunicaçao inconsciente e é nesse nível que as mudanças ocorrem durante o processo terapêutico. Tais mudanças somente sao reconhecidas na relaçao e percebidas pela expressao consciente. Isso sugeriu que os métodos avaliativos existentes, que sao baseados em dimensoes conscientes, sao incompetentes e inadequados. Sendo assim, ainda existe a necessidade de se criar e adaptar metodologias avaliativas que levem em consideraçao essa natureza subjetiva, em vez de excluí-la.
Uma preocupaçao surgiu no que diz respeito às representaçoes subjetivas do paciente em relaçao ao processo7. Os estudos que enfocam as representaçoes subjetivas geralmente tentam compreender o processo baseados nas representaçoes do psicoterapeuta, e nao nas representaçoes dos pacientes. Dessa forma, tais estudos nao evidenciam uma compreensao real das experiências dos pacientes, nem como eles analisam o processo. Por essa perspectiva, torna-se crucial o estudo focando também nas experiências subjetivas dos pacientes, assim como feito por Levander e Werbart3, Lilliengren e Werbart8, Lindgren, Werbart e Philips9, Philips, Wennberg e Werbart10.
Atualmente, a questao que tem sido levada à discussao pela comunidade psicanalítica diz respeito à natureza dos métodos de pesquisa que deveriam ser conduzidos e utilizados nesse tema em particular. Buscando discutir isso, alguns autores (e.g., 4,7,9-13) desenvolveram novas abordagens. Eles se concentram nas teorias pessoais tanto dos pacientes quanto dos terapeutas a respeito do processo psicanalítico, visando coletar dados específicos e valiosos sobre as ideias formuladas a esse respeito.
A RELAÇAO TERAPEUTICA
Se voltarmos à época de Freud4, poderemos facilmente perceber que, naquele tempo, a relaçao terapêutica era considerada o fator primordial no processo psicanalítico. Nessa relaçao, os pacientes podem expor suas teorias internas e seus materiais inconscientes. Em outras palavras, os pacientes podem reproduzir suas construçoes internas de significado no setting terapêutico, através dos mecanismos de transferência e contratransferência, revelando suas estruturas internas ao terapeuta4. Tal comunicaçao somente é possível se o terapeuta tiver um bom conhecimento de suas próprias construçoes internas de significado, para que possa compreender o investimento colocado pelo paciente em suas relaçoes.
A relaçao terapêutica será baseada na confiança, proximidade e segurança, fazendo com que os pacientes se sintam confortáveis em compartilhar seus pensamentos3. Essa é uma relaçao em que paciente e terapeuta pensam juntos o self do paciente, do mesmo modo que pensam o self de outros. Assim, os terapeutas assumem um papel importante nessa díade, estando disponíveis e capazes de conter várias atitudes relativas à diversidade de aspectos da personalidade de seus pacientes, mesmo quanto ao ataque à relaçao que eles podem fazer nessa nova díade. Com esse entendimento, é possível que se obtenha um relacionamento (paciente/terapeuta) no qual o paciente demonstre progresso sem qualquer tipo de julgamento por parte de seu terapeuta3. A partir dessa relaçao terapêutica, os pacientes podem extrapolar as experiências vivenciadas com os terapeutas para fora do setting terapêutico, adotando uma atitude de desejo por relacionamentos que, em retorno, possam satisfazer suas necessidades. Essa ideia foi confirmada em muitos estudos (e.g., 3,14-17).
A relaçao terapêutica é uma relaçao privilegiada que possibilita ao paciente apresentar o desenvolvimento necessário para que possa expandir seu bem-estar psicológico e obter uma melhor percepçao de seu self18. Contudo, existe uma assimetria. Ou, em outras palavras, os terapeutas ainda assumem o papel de responsáveis19, pois o terapeuta deve ser sensível ao modelo relacional do paciente, às suas necessidades de relacionamento e, através dessa relaçao, criar as condiçoes necessárias e a disponibilidade para atender às necessidades do paciente. É facilmente compreensível que, assim como o terapeuta, o paciente também assume um papel importante. Com esse discernimento, estamos agora analisando a experiência subjetiva dos pacientes.
A experiência subjetiva nao começa apenas quando o processo terapêutico inicia. Isso é algo que começa antes do início do processo, contendo todas as ideias que o paciente tem sobre o processo em si. Um dos questionamentos que deveriam ser feitos refere-se ao que os pacientes pensam a respeito do desenvolvimento do processo e como isso poderia ajudá-los a solucionar seus problemas. Esse ponto específico parece ser muito significativo e deveria ser avaliado pelo psicoterapeuta/psicanalista, porque ele pode contribuir e influenciar o processo psicoterapêutico.
Uma das vantagens de estudar o processo psicanalítico a partir das experiências subjetivas dos pacientes é a oportunidade de entendê-los como uma pessoa única, permitindo o acesso a suas características pessoais. Isso leva à compreensao de que determinadas características (aquelas em análise) atendem às características do modelo terapêutico, estabelecendo uma relaçao entre o paciente e as características do modelo20.
O principal objetivo do presente estudo é o de explorar as experiências subjetivas de uma série de pacientes que já vivenciaram um processo psicanalítico/psicoterapêutico. A finalidade específica desta pesquisa é a de tentar analisar a mudança de percepçao sobre a relaçao terapêutica em dois momentos diferentes (momentos inicial e final) do processo psicanalítico/psicoterapêutico, em relaçao à percepçao dos pacientes um ano ou mais após o término do processo.
Este artigo faz parte de um estudo mais abrangente sobre experiências vividas dentro do processo psicoterapêutico em psicanálise e psicoterapia psicanalítica21.
MÉTODO
Amostra
O processo de seleçao da amostra ocorreu em uma clínica privada de psicanálise, psicoterapia psicanalítica e psiquiatria, localizada em Lisboa. Assim, a populaçao-alvo desta pesquisa é de pacientes adultos que tenham iniciado e finalizado uma psicoterapia psicanalítica ou psicanálise em um contexto de clínica privada. Os terapeutas foram notificados a respeito do objetivo geral do estudo e de seus procedimentos, que deveriam ser seguidos ao selecionarem seus pacientes. Foi também solicitado que eles consultassem suas anotaçoes para que escolhessem, dentre os pacientes de psicoterapia e/ou psicanálise, aqueles que tivessem tido alta da terapia em comum acordo (com alta de psicoterapia clínica) há pelo menos um ano. Sendo assim, temos uma amostra conveniente baseada em pacientes que se submeteram à psicoterapia psicanalítica ou psicanálise em prática privada.
Cinco terapeutas, quatro mulheres e um homem, indicaram 21 pacientes para participar do estudo. É importante ressaltar que todos esses terapeutas sao formados em psicologia ou psiquiatria, com especializaçao em psicoterapia e com mais de cinco anos de experiência em prática clínica supervisionada.
Dos 21 pacientes, apenas 13 efetivamente concordaram em participar. Suas idades variam de 29 a 63 anos, sendo dez deles mulheres e três homens; oito pacientes fizeram psicoterapia psicanalítica e cinco com abordagem psicanalítica; o processo psicoterapêutico foi realizado com casos que variaram de um ano e seis meses a sete anos de processo.
Modelo de pesquisa
O modelo de pesquisa consistiu-se de um estudo exploratório, utilizando a metodologia de análise qualitativa através de questionários e/ou entrevistas. Após longa reflexao do time sobre a relevância dos métodos para as metas estabelecidas, escolhemos seguir as recomendaçoes metodológicas do Método de Pesquisa Qualitativa Consensual (CQR)22,23. Ao contrário de algumas abordagens fenomenológicas, que desencorajam a consulta na literatura, baseando-se no fato de que esta possa influenciar a análise de dados, esta abordagem discute o fato de que a consulta literária sobre o assunto nao tem, necessariamente, uma influência negativa. Uma vez que esta facilita a exploraçao de áreas pouco estudadas dentro de um determinado tema, auxilia o desenvolvimento de novas formas de exame de tópicos antigos e, fundamentalmente, permite uma melhor definiçao dos tópicos da pesquisa, assim como uma melhor concepçao do protocolo de entrevistas/questionários.
PROCEDIMENTOS
Concepçao do questionário/guia da entrevista com os pacientes
Com a finalidade de compreender o tipo de questoes/áreas que foram abordadas, examinamos artigos sobre pesquisas a respeito da eficácia da psicoterapia em que a metodologia qualitativa tenha sido utilizada para a análise das entrevistas de pacientes, denominada de Pesquisa Qualitativa Consensual22,23.
Após isso, fez-se um esboço inicial contendo perguntas que poderiam ser feitas. Esse esboço foi posteriormente discutido e modificado de acordo com as áreas que decidimos focalizar (como o relacionamento com o terapeuta, além de outros que nao sao mencionados no corrente artigo).
Foram feitas duas versoes do protocolo: uma a ser aplicada em entrevistas, e a outra no formato de Word, para ser enviada através de correio eletrônico. Optamos por configurar o questionário no formato Word em vez de utilizar um questionário on-line, por diversas razoes, a saber: 1) isso permitiria que os pacientes salvassem seus textos, à medida que os escrevessem, visto que, com esse software, os pacientes poderiam também salvar seus textos em caso de queda de energia; 2) isso permitiria que eles respondessem ao questionário gradualmente, caso nao houvesse tempo ou vontade de fazê-lo de uma só vez; 3) haveria a possibilidade de utilizar a opçao restaurar ("undo") uma informaçao escrita, caso a mesma fosse apagada acidentalmente.
Os pacientes seriam contatados primeiramente por seus terapeutas para saber sobre o seu interesse em participar deste estudo. Se a resposta fosse afirmativa, eles seriam contatados posteriormente por um investigador independente, que os questionaria sobre qual método de coleta de dados que eles prefeririam de modo a proteger totalmente a identidade dos terapeutas e/ou pacientes.
Desenvolvimento do questionário para os profissionais
O questionário a ser preenchido pelos clínicos consistia de: 1) dados do psicoterapeuta/psicanalista; 2) procedimento de contato com o paciente; e 3) dados do paciente. As perguntas incluem dados como idade, gênero, grau, ano de conclusao de curso de graduaçao, a universidade onde se formou, estudos avançados, locais de treinamento em psicoterapia e/ou psicanálise, o contexto da prática profissional, os anos de prática clínica, a frequência de prática clínica, frequência de supervisao e atendimento (passado ou presente) de psicoterapia pessoal.
A segunda seçao - Procedimento de Contato com os Pacientes - consiste de uma tabela com informaçoes que explicam adequadamente os critérios utilizados para a seleçao de pacientes e sugere um guia de procedimento geral que os terapeutas deveriam seguir ao fazerem o primeiro contato telefônico com seus pacientes. Assim, os terapeutas foram instruídos para contatar pacientes que tivessem se submetido à psicoterapia psicanalítica ou psicanálise, e cuja terapia tivesse terminado, por comum acordo, há, pelo menos, um ano. Em relaçao à conversa telefônica, foi sugerido que os pacientes deveriam ser informados primeiramente que a clínica estaria conduzindo um estudo de investigaçao/pesquisa sobre as experiências dos pacientes em relaçao ao processo psicoterapêutico e, caso eles aceitassem fazer parte, um pesquisador independente entraria em contato com eles posteriormente. Nesse momento, eles receberiam informaçoes mais detalhadas sobre o estudo e receberiam um questionário. Os terapeutas também foram instruídos a esclarecer a seus pacientes sobre a natureza anônima de suas participaçoes.
Finalmente, a terceira seçao - Dados dos Pacientes - consiste de uma série de formulários preenchidos pelos terapeutas contendo informaçoes sobre os pacientes com quem eles contataram formalmente e quais deles aceitaram participar da pesquisa. Perguntou-se, para cada paciente, seus nomes (para contatos futuros), sexo, idade, tipo de intervençao psicoterapêutica (psicoterapia/psicanálise frente a frente), início e final da terapia, a frequência semanal das sessoes, além de um espaço para notas e comentários que os clínicos quisessem adicionar.
Para obter a análise da meta: analisar a mudança de percepçao da relaçao terapêutica em dois momentos diferentes (inicial e final) no processo psicanalítico/psicoterapêutico em relaçao à percepçao dos pacientes depois de um ano ou mais de o processo ter sido finalizado. Nós analisamos as perguntas: "É possível para você descrever como sentiu e/ou sente seu terapeuta? Como você vivenciou a relaçao com seu terapeuta durante o processo terapêutico?". Essas análises foram feitas pelos autores, todos os psicólogos clínicos e um psicanalista.
RESULTADOS
Para a análise dos dados, consideramos dois momentos diferentes, a fim de obter os resultados que respondessem a nossos objetivos. Assim, dividimos as entrevistas (n=13) em momento inicial e momento final. A partir daí, analisaremos primeiramente esses dois momentos separadamente e, entao, os compararemos.
Momento inicial
Começando pela análise do momento inicial, surgiram seis unidades de significado divididas em três componentes da estrutura, como podemos ver na Tabela 1.
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