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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2014; 16(2):49-61



Artigo de Revisao

O complexo fraterno: reflexoes acerca do ciúme e da inveja entre irmaos

The fraternal complex: reflections about jealousy and envy among siblings

Silvia Bassani Schuch Goi

Resumo

Em psicoterapia de orientaçao analítica e psicanálise, entende-se o complexo fraterno como um conjunto organizado de desejos hostis e amorosos que a criança experimenta em relaçao aos seus irmaos. A compreensao do complexo de Édipo pode ser complementada pelo entendimento das repercussoes que a fratria insere na dinâmica familiar. Reúne desde os aspectos amorosos e as identificaçoes até a ambivalência e a consolidaçao da raiva e da inveja. Este trabalho destina-se a uma revisao sobre o tema complexo fraterno e suas repercussoes na formaçao do ciúme e da inveja, discutindo algumas teorias de autores clássicos e contemporâneos acerca desse tema, contextualizando com uma vinheta clínica.

Descritores: Relaçoes entre irmaos; Ciúmes; Relaçoes mae-filho; Relaçoes pais-filho; Filho único.

Abstract

In psychoanalytic psychotherapy and in psychoanalysis, the fraternal complex is understood as an organized group of loving and hostile wishes that the child experiences in relation to their siblings. Understanding the Oedipus complex can be complemented by understanding the impact that the phratry inserts in family dynamics. It comprises a large scope of aspects, from loving and identification to ambivalence and consolidation of anger and envy. This work propose a review on the fraternal complex and its impact on jealousy and envy formation. It discuss some theories of classical and contemporary authors on this subject, and contextualize with a clinical vignette.

Keywords: Siblings; Family Relations; Jealousy; Parents.

 

 

INTRODUÇAO E CONTEXTUALIZAÇAO

"Nao pretendo sustentar que o Complexo de Édipo esgota o vínculo dos filhos com os pais; este pode ser muito mais intrincado"1
Este trabalho destina-se a uma revisao sobre o tema complexo fraterno e suas repercussoes na formaçao do ciúme e da inveja. Em psicoterapia de orientaçao analítica e psicanálise, entende-se o complexo fraterno como um conjunto organizado de desejos hostis e amorosos que a criança experimenta em relaçao aos seus irmaos.

As funçoes materna e paterna e as relaçoes entre pais e filhos têm sido muito estudadas, mas poucos sao os estudos acerca da importância da funçao fraterna para o sujeito. Com exceçao de alguns autores clássicos, como Freud e Lacan, somente a partir do século XXI outros teóricos se interessaram pelo tema da relaçao entre irmaos, como René Kaës e Luis Kancyper.

Ser e ter um(a) irmao(a) vai se constituir numa das três contingências vitalícias, pois, assim como nao há ex-pais nem ex-filhos, nao existem ex-irmaos.

Segundo Kaës2, o complexo fraterno nao se reduz ao complexo de Édipo, do qual seria seu deslocamento; também nao se limita ao complexo do intruso, que seria seu paradigma. Nao se caracteriza somente pelo ódio, pela ambiçao e pela inveja; compreende também o amor, a ambivalência e as identificaçoes com o outro semelhante e diferente.

Kancyper3 define o irmao como um semelhante demasiado similar, a primeira apariçao do estranho na infância. O irmao seria um outro, diferente e complementar simultaneamente, que funciona como fundador do eu e constitutivo da alteridade. "E por meio dos vínculos fraternos, o sujeito instala-se - mediante sentimentos de pertinência - nos efeitos estruturantes-desestruturantes que provêm da realidade social".

Assim como ao nascer o primeiro filho de um casal inaugura a família e o conflito intergeracional, o segundo filho inaugura a fratria e dá origem ao conflito intrageracional4. A chegada do irmao é a chegada do "estrangeiro", daquele que com sua presença perturba o equilíbrio constituído. Com ele é introduzida a noçao de mudança, de paridade. A partir do nascimento do segundo filho terao início partilhas, negociaçoes, julgamentos. O filho mais velho necessitará reorganizar seu espaço e sua maneira de pensar, levando em conta a existência do mais novo. A fratria desloca o primogênito do lugar único e privilegiado que este, até entao, ocupava na relaçao com seus pais. Ao colocar o filho mais velho na situaçao de "apenas mais um, um entre outros", a fratria possibilita sua introduçao na rede de relaçoes sociais4.

Ao irmao mais novo cabe a funçao de descobrir, conquistar e cultivar os novos territórios. O filho mais novo costuma ser eximido do papel de portador e fiador responsável pela tradiçao familiar imperante.

Segundo Rufo: "Cada um de nós nutre a fantasia de ser alguém único, de ser o único a contar para os outros e no mundo. Abandonar essa ideia é difícil, mas necessário para viver entre os outros, com toda a sua vulnerabilidade"4.

O fato de, ao se considerar as relaçoes entre irmaos, haver uma tendência a enfatizar mais a relaçao de inveja, ciúme, rivalidade, em detrimento de um possível bom relacionamento, pode fazer com que nao se dê a devida importância ao papel que a fratria, através da funçao fraterna, desempenha na estruturaçao familiar5.

Losso6 define a funçao fraterna como sendo de ajuda recíproca, de colaboraçao, de assistência em um nível de igualdade, de defesa dos direitos das geraçoes e de provisao de modelos de identificaçao entre os irmaos, que, por pertencerem à mesma geraçao, funcionam como modelos de identificaçao diferentes dos pais.


2. O COMPLEXO FRATERNO: O RIVAL E O INTRUSO
"E amava Isaque a Esaú, porque a caça era de seu gosto, mas Rebeca amava a Jacó. [...]

E disse Esaú a Jacó: Deixa-me, peço-te, comer desse guisado vermelho, porque estou cansado. [...].

Entao disse Jacó: Vende-me hoje a tua primogenitura.

E disse Esaú: Eis que estou a ponto de morrer; para que me servirá a primogenitura?

Entao disse Jacó: Jura-me hoje. E jurou-lhe e vendeu a sua primogenitura a Jacó.

E Jacó deu pao a Esaú e o guisado de lentilhas; e ele comeu, e bebeu, e levantou-se, e saiu. Assim desprezou Esaú a sua primogenitura."

Gênesis 25:28-347
O complexo fraterno comporta duas formas que podem opor-se: uma, arcaica, mantém com o irmao ou a irma relaçoes que têm essencialmente a consistência psíquica de um objeto parcial, apêndice do corpo materno imaginário ou de seu próprio corpo imaginário; a outra inscreve-se num triângulo rivalitário, pré-edipiano e edipiano2.

O complexo fraterno exerce sua funçao estruturante desde o começo, independentemente da existência ou nao de irmaos reais. O irmao é um semelhante demasiado similar e a primeira apariçao do estranho na infância. O confronto com o outro - o intruso, o duplo - comporta compromissos narcisistas consideráveis e pode ou nao reativar, ao mesmo tempo, conflitos edípicos. Sobre o irmao recai a idealizaçao e o desdobramento narcisistas3.

Laplanche8 contribuiu para a separaçao do triângulo edipiano e o complexo fraterno, ao abordar a ideia do triângulo rivalitário: ego - pais - irmao ou irma. Afirma que este nao deve ser considerado como anterior ao triângulo edipiano.

Esse complexo nao pode ser reduzido a uma situaçao real, à influência exercida pela presença dos irmaos na realidade externa, porque transcende a vivência individual. Também o filho único requer assumir e tramitar os efeitos gerados pela forma singular como esse complexo se constrói em cada sujeito9.

Em um artigo sobre o filho único, Winnicott10 escreveu que o que falta ao filho único é descobrir o ódio quando o novo bebê ameaça a relaçao segura estabelecida com a mae e o pai. Também ressalta que a chegada de um novo bebê significa que a mae e o pai se amam sempre.

Podemos diferenciar quatro funçoes do complexo fraterno3,9,11:
a. Substitutiva: uma alternativa para substituir e compensar o fracasso nas funçoes parentais. Também pode funcionar como funçao elaborativa do complexo de Édipo e do narcisismo e, por outro, como funçao defensiva contra angústias e sentimentos hostis relacionados aos progenitores, mas deslocados para os irmaos.

b. Defensiva: quando o complexo encobre situaçoes conflitivas edípicas e/ou narcisistas nao resolvidas.

c. Elaborativa: colabora no trabalho de elaboraçao e superaçao dos remanescentes normais e patológicos do narcisismo e da dinâmica edípica que se apresentam ao longo da vida.

d. Estruturante: caráter fundador da organizaçao anímica do indivíduo, dos povos e da cultura. Participa da gênese e manutençao dos processos identificatórios no ego e nos grupos, na constituiçao do superego e ideal do ego e na escolha do objeto de amor.
A relaçao entre os irmaos na primeira infância vai ser marcada pela disputa do amor e da atençao dos pais, além de pelo desenvolvimento da própria personalidade, através da diferenciaçao com os irmaos.

Vários fatores, tais como gênero, diferença de idade, intervençoes parentais e temperamento infantil, intervêm na relaçao para facilitá-la ou dificultá-la. Se o irmao surge precocemente, durante o desmame, por exemplo, pode suscitar impulso de destruiçao imaginária ou regressao ao objeto anterior, materno. O nascimento de um irmao no período pré-edípico vai levantar as questoes sobre sexualidade e mobilizar a investigaçao que precipitará sua entrada no Édipo: a descoberta da diferença sexual na infância, a origem dos bebês, a cena primária, a angústia de castraçao.

Para Freud, a posiçao da criança dentro da série de filhos é um fator relevante para a conformaçao de sua vida ulterior e sempre deve ser levada em consideraçao na descriçao de uma vida12.

Os irmaos convivem intimamente por um período razoavelmente longo, e possuem uma necessidade e um desejo comuns, especialmente o amor preferencial dos pais. Essa condiçao transforma-os em um grupo com grande potencial na criaçao de desafetos, podendo vir a transformá-los inclusive em adversários.

As disputas fraternais sao comuns à maioria das famílias, apesar das diferenças de valores, estilo ou filosofia de vida de cada uma delas. Essas disputas, características de todo grupo fraternal, têm um caráter mais lúdico do que agressivo. A finalidade é conquistar e preservar um espaço dentro do grupo, garantir uma individualidade, buscar o atendimento satisfatório de interesses e necessidades e ocasionalmente desfrutar das vantagens do poder.

Além de saudáveis, as disputas sao importantes, pois ensinam a administrar os sentimentos relativos a perdas e ganhos, apontam limitaçoes e modos de tentar superá-las, mostram as questoes em que têm maior facilidade e como valorizá-las, promovem alianças, ensinam a dividir, compartilhar, solidarizar-se e a postergar.

O dicionário Houaiss define fraternidade como "amor ao próximo, uniao ou convivência, amizade e harmonia"13. A funçao fraterna também deve ser entendida como sendo de ajuda recíproca, de colaboraçao, de assistência em um nível de igualdade, de defesa dos direitos das geraçoes e de provisao de modelos de identificaçao entre os irmaos que, por pertencerem à mesma geraçao, funcionam como modelos de identificaçao diferentes do modelo dos pais. A relaçao entre os irmaos implica um contexto em que se pode elaborar a angústia e desenvolver a criatividade6.

Para Freud, o amor na fratria é uma formaçao reacional aos movimentos hostis que surgem pela vinda de um irmao ou irma. Tal hostilidade nao teria outra saída a nao ser a repressao ou a superaçao pela ternura homossexual. Já Kaës, em oposiçao, pensa que o amor fraterno tem outras nuances, a saber: confiança, solidariedade, apoio, gratidao, atençao para com o outro2.

Em Totem e tabu, Freud assinalou que os sentimentos fraternais sociais exercem uma profunda influência no desenvolvimento da sociedade. Tem expressao na santificaçao do laço de sangue, na ênfase dada à solidariedade por toda a vida, garantindo assim a vida uns dos outros. Evitam a possibilidade de uma repetiçao do destino do pai (o parricídio, na religiao totêmica): "[...] A proibiçao, baseada na religiao, contra a morte do totem juntou-se entao a proibiçao socialmente fundamentada contra o fratricídio. Foi somente muito depois que a proibiçao deixou de limitar-se aos membros do cla e assumiu a forma simples: 'Nao matarás.' A horda patriarcal foi substituída, em primeira instância, pela horda fraterna, cuja existência era assegurada pelo laço consanguíneo. A sociedade estava agora baseada na cumplicidade do crime comum; a religiao baseava-se no sentimento de culpa e no remorso a ele ligado; enquanto que a moralidade fundamentava-se parte nas exigências dessa sociedade e parte na penitência exigida pelo sentimento de culpa [...]"14.

Na literatura, uma história que exemplifica o amor entre irmaos é a de Vincent Van Gogh e seu irmao, Theo. Vincent tinha outros quatro irmaos, mas ele era seu preferido. As cartas que trocavam ao longo da vida comprovaram a força do laço de fraternidade, da benevolência e uniao entre eles15.

Freud já assinalava, em 19161, que "[...] uma criança pequena nao ama necessariamente seus irmaos e irmas; muitas vezes, obviamente nao os ama. Sem dúvida ela os odeia como rivais seus, e é fato sabido que esta atitude frequentemente persiste por muitos anos, até ser atingida a maturidade ou mesmo até mais tarde, sem interrupçao. Com efeito, muito amiúde esta atitude é substituída, ou melhor, digamos, é encoberta por outra, mais cordial".

Freud observava como a vinda de um rival ao mundo constitui uma ameaça à supremacia do primogênito, suscita nele sentimentos de inveja, de hostilidade, de ódio diante do intruso, mas também ressentimentos contra a mae por ter lhe imposto os irmaos. Escreveu numa carta a Fliess, ao falar da morte de seu irmao Julius: "[...] que saudei o nascimento de meu irmao (que era um ano mais novo do que eu e morreu depois de alguns meses) com desejos hostis e verdadeiro ciúme infantil, e que sua morte deixou em mim a semente das autocensuras"16.

Com a observaçao do pequeno Hans17, Freud admitiu outros efeitos da chegada de um irmaozinho: a queda narcísica e o impacto traumático que pode trazer. A criança nao é mais o centro do mundo, é invadida pela inveja e pelo ódio a este intruso que a expulsa da posiçao que ela acha que tem no amor dos pais.

Isso pode ser considerado, na visao de Kaës2, como um traumatismo para o narcisismo primário, quando o primogênito é obrigado a renunciar a seus fantasmas de onipotência infantil.

Lacan define o complexo fraterno pela "experiência que o sujeito primitivo faz quando ele se distingue dos irmaos". Ele reitera que as condiçoes dessa experiência variam segundo as culturas e a extensao que elas dao ao grupo doméstico, além da ordem de nascimento2,18,19.

Para Lacan, o complexo fraterno é pensado como complexo do intruso, forma arcaica da relaçao com o outro, cujo destino evolutivo é tornar-se um rival e ser em seguida reconhecido como um igual a si mesmo. O complexo do intruso (o irmao ou a irma recentemente nascidos) exerce um papel estruturante na formaçao do ego. A agressividade nasce da identificaçao narcísica alienante, de que o "ego é um outro". Outro efeito é constituir o irmao como imago ou duplo, com sua dupla valência de ideal e de perseguidor2,19.

Lacan19 nomeia complexo de intrusao a experiência que o sujeito primitivo realiza quando se percebe em relaçao com seus semelhantes, ou seja, quando se reconhece como tendo irmaos. O irmao se apresenta, para o infante, como pequeno sujeito humano, como um duplo que vem desestabilizar a identidade imaginária da criança em relaçao à sua imagem no espelho.

A entrada de um pequeno semelhante no campo narcísico da criança pode fazer com que ela confunda a si mesma com o outro. Para a criança, a imagem do outro está ligada à estrutura de seu próprio corpo. Entretanto, a partir da percepçao da imagem unificada do corpo do outro, o infante identifica a reunificaçao do seu próprio corpo, até entao supostamente percebido como despedaçado2.

Lacan, através da estruturaçao do complexo do intruso, configura quatro componentes que formariam, segundo ele, o complexo fraterno: a) identificaçao com o semelhante fundada no sentimento do outro imaginário, b) agressividade consecutiva a essa identificaçao, c) ambiguidade especular da estrutura do ego narcísico, d) o "drama da inveja", como constituiçao do ego e do outro2,19.

Kaës2 ressalta que Lacan aborda "o drama do ciúme" como formador da constituiçao correlativa do eu e do semelhante. O drama permite a percepçao de um terceiro objeto que substitui a confusao afetiva e a ambiguidade especular pela concorrência de uma situaçao triangular. O autor considera o complexo fraterno como uma organizaçao fundamental dos desejos amorosos, narcísicos e objetais, do ódio e da agressividade perante esse outro que o sujeito identifica como irmao ou irma. Esse complexo se instaura na estrutura das relaçoes intersubjetivas, organizadas pela representaçao inconsciente, dos lugares correlativos que ocupam o sujeito, o irmao e a irma em relaçao ao objeto do desejo da mae e/ou do pai.

Klein20 afirma que a inveja primária, mais antiga que o ciúme, é uma fantasia sádica de impulsos orais e anais dirigidos a um objeto parcial - o seio -, que nao só fica despojado do que possui de bom como também recebe toda a maldade. Entende ela que isso se deve ao ego, que, a serviço da pulsao de vida, desvia a pulsao de morte para o seio externo para livrar-se dessa ameaça interna. Diz que o ciúme, por sua vez, se baseia no amor que o indivíduo sente que lhe é devido e que foi ou será tirado pelo rival. Diz também que ele pode ser usado, tal como a voracidade, como defesa contra a inveja.

Segal21 traduz melhor o pensamento kleiniano dizendo que o ciúme visa à posse do objeto amado e à exclusao do rival; e que a inveja ("má") visa a estragar a bondade do objeto, quando nao consegue têla tanto quanto o objeto (inveja "boa"). Nao considera a inveja "boa" como inveja, porque nao expressa o desejo de destruir, mas apenas o desejo de ter um bem igual ao do outro, sem prejuízo para ele.

Segundo Klein2,20, todas as crianças sofrem fortes ciúmes dos irmaos. A autora enfatiza que as crianças menores que nao têm conhecimento sobre geraçao e nascimento têm um conhecimento inconsciente que os bebês crescem no útero da mae. Os ciúmes direcionariam um grande ódio e agressividade contra esse irmao ainda dentro do útero.

Além disso, enquanto, para Klein20, a inveja primária é uma expressao pulsional sádica nao dependente da estimulaçao externa para a sua geraçao, para outros autores2,18 ela é a expressao de afeto, desejo e comportamento agressivo gerados pelo processamento das informaçoes - o bem do outro que desejo, mas que nao tenho ou que é melhor do que aquele que tenho - por sistemas neuropsíquicos22. Na medida em que tais sistemas estao sujeitos à ativaçao e à inativaçao pelas informaçoes processadas, as manifestaçoes invejosas, assim como as ciumentas, sao, normalmente, episódicas, a menos que esses sistemas estejam ativados cronicamente.

A inveja normal está ligada à dor sentida pela perda do objeto amado, à humilhaçao narcísica que está ligada a ela. No sujeito, o protesto fraterno se origina do roubo da crença narcisista a respeito do poder ilimitado empunhado por "Sua Majestade, o Bebê". A presença do outro quebra essa crença inconsciente, o que costuma encenar-se na fantasia a qual Kancyper denominou "a fantasia do unicato". O unicato tenta desmentir, nas realidades psíquica e material, a inevitável e estruturante confrontaçao fraterna, ato que poe um limite nessa fantasia onipotente18.

Nao é raro que a violência contra o irmao, segundo Kaës, seja uma tela ou um escudo do ódio em relaçao à mae. O ódio do irmao também pode ter por funçao poupar os pais e protegê-los do ódio contra eles2.

Na situaçao analítica, reeditam-se com o analista as confrontaçoes parental e fraterna. No atendimento de pacientes, observamos que estes se queixam muitas vezes de seus irmaos, sentem-se prejudicados por eles, consideram que os pais os favorecem em seu prejuízo.

Segundo Kancyper, o analista deve reconhecer de que modo interjogam nele as diversas fantasias de seu próprio complexo fraterno (fantasias de complementaridade, confraternidade, gemelidade, furtivas, de excomunhao, rivalidade e fratricidas). Essas fantasias sao reativadas nao somente na pessoa do analista, mas também nos pacientes. As angústias e as relaçoes de domínio entre irmaos, e os sentimentos de rivalidade, ciúme, inveja ressentimento e remorso, podem ser tao insistentes e secretos que causam um tormento psicológico que pode operar resistencialmente no processo analítico3.

Devemos estar atentos sobre em que medida os irmaos "entram" no campo analítico ou em que medida somos colocados a assumir uma posiçao fraterna no campo. A paciente Mariana, de 27 anos, iniciou tratamento psicoterápico de orientaçao psicodinâmica, com frequência de duas vezes na semana, logo após casar-se, há aproximadamente um ano e meio. Estava mantendo um relacionamento extraconjugal, e nao sabia qual rumo tomar. Durante a avaliaçao, Mariana conta também sobre como sentiu-se excluída e rechaçada do núcleo familiar quando seu irmao mais novo nasceu. Ela tinha cinco anos na época. Desenvolveu intensos desejos e fantasias hostis e de inveja. Comentava em praticamente todas as sessoes sobre a "negligência" de seus pais, que nao prestavam mais atençao nela, apenas queriam cuidar do "bebê da casa". Antes de ele nascer, sentia-se como a "princesa da casa". Com o irmao, Mariana mantinha uma conduta de afastamento, nao brincava com ele, demonstrava pouca preocupaçao quando algo lhe ocorria. Quando os pais faziam algo para o irmao, imediatamente exigia que eles lhe fizessem a mesma coisa para compensar, para que nao ficasse para trás.

Transferencialmente, reativou-se tal situaçao nos momentos em que, por identificaçao projetiva, a terapeuta foi colocada em um papel de ser "a intrusa", a pessoa a ser vencida. Contrariava minhas interpretaçoes, solicitava com frequência mudança no horário das sessoes, e irritava-se se nao pudesse atendê-la. Também questionava a atençao por mim dada a outros pacientes. Em um determinado dia, encontrou-me na sala de espera auxiliando uma paciente com dificuldades para se locomover, e disse, em tom irônico: "Claro que se fosse comigo tu nao irias me ajudar". Contratransferencialmente, existia o impulso de eu ser sua "irma", de diminuir sua angústia por sentir-se abandonada pelos pais em detrimento de um outro. Instalou-se uma idealizaçao maciça da terapeuta, até mesmo na maneira de se vestir, de agir, de falar. Isso pode ser entendido como uma forma de se tornar parecida ao irmao-rival, e assim conquistar o "amor perdido". O conflito entre seu casamento e seu novo relacionamento poderia ser entendido também como o triunfo sobre o "abandono". Agora ela é quem pode escolher, ela é quem pode abandonar. Segue abaixo trecho de uma sessao, no décimo mês de tratamento:
"[...]

Meu marido e meu cunhado estao competindo sempre, uma inveja sem tamanho. Mais da parte do meu cunhado. Se ele puder se dar bem às custas do irmao, vai fazer isso. Eu nao aceito isso. Até porque nunca me vi pensando ou planejando nada de ruim pro meu irmao. Só quero o bem dele.

TU ME DISSESTE EM OUTROS MOMENTOS QUE TINHA SIM CIUMES DO TEU IRMAO.

Ah, mas nao nessa proporçao! Eu fiquei mal quando ele nasceu, eu já estava certa de que seria filha única. Aí ele chega e acaba com a minha festa. Tive que dividir tudo, e nao só dividir. As atençoes todas mudaram de foco. Saí de cena. Fiquei sendo quase uma intrusa.

[...]."
Entretanto, deve existir a todo momento a preocupaçao de nao enviesar as interpretaçoes sobre outros fenômenos que se passam no campo analítico. O entendimento do "complexo fraterno" é bastante abrangente e enriquecedor, mas pode limitar o trabalho psicoterápico caso nao haja esse cuidado.


3. CONCLUSOES
"[...] uma criança, até com uma diferença de idade de apenas 11 meses, [...] nao perdoa ao indesejado intruso e rival nao apenas a amamentaçao, mas sim todos os outros sinais de cuidado materno. Sente que foi destronada, espoliada, prejudicada em seus direitos; nutre um ódio ciumento em relaçao ao novo bebê e desenvolve ressentimento contra a mae infiel. [...]

Nao faz muita diferença se acontece a criança continuar sendo a preferida de sua mae. [...] As exigências de amor de uma criança sao ilimitadas; exigem exclusividade e nao toleram partilha."23
Pelo exposto, o complexo fraternal pode ser pensado como um conceito psicanalítico básico para explicar as relaçoes nas quais os rivais disputam, permeados de afetos, desejos e comportamentos ciumentos e invejosos, a detençao de uma figura de posse, pelo valor que ela possa ter para eles24.

A concepçao do complexo de Édipo segue sendo de fundamental importância no entendimento das relaçoes triangulares e familiares. Nao há a pretensao de que o complexo fraterno seja reducionista; pode ser sim uma visao adicional e complementar. Enriquece a compreensao inter e transgeracional de um conflito.

Concepçoes distintas, como a do irmao e da irma como usurpadores do amor da mae e do direito do pai (para Freud), ou como usurpadores do seio e do ventre materno (para Klein), à do intruso como representante do outro e como obstáculo à realizaçao dos desejos do sujeito (para Lacan), complementam formas de pensar o complexo fraterno2,16,19,20.

A vivência da relaçao fraterna deixará suas "marcas" no psiquismo individual. Os modelos vinculares daí decorrentes, tais como ambivalência, rivalidade, sentimentos amorosos, necessidade de reparar, impulso de domínio, sujeiçao ao irmao e outros, tendem a se repetir ao longo da vida nos vínculos com outros pares.

O ciúme seria a manifestaçao natural do sofrimento de ter de compartilhar o amor. Entretanto, com o tempo, percebemos que a perda do amor indivisível é necessária, pois também é compartilhada grande parte do amor que vivenciamos na sociedade. Assim, a relaçao entre irmaos seria um laboratório para expressao e compartilhamento desse sentimento legítimo que a vida nos impoe ao estarmos com um outro.

O vínculo fraterno, portanto, nao é um simples derivado do vínculo com os pais, mas tem vida própria. Contribui para a atmosfera de intimidade e manutençao da unidade familiar, no sentido de perenidade dos vínculos. Intervém ativamente na transmissao do saber e da lei. Quando há afinidade, os irmaos podem amenizar a dureza das obrigaçoes e os mais velhos podem direcionar os mais novos para o mundo. Se, porém, a rivalidade fraterna for exacerbada, esses afetos estruturantes vao ser reprimidos, cindidos ou se tornar inalcançáveis. Além do ensinar e aprender recíprocos, permite também a descarga moderada de agressividade. A possibilidade de exercer essas funçoes com o consequente desenvolvimento de representaçoes vinculares conscientes e inconscientes implica facilitar o estabelecimento de relaçoes "suficientemente boas" com os pares na vida adulta.


REFERENCIAS

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Médica psiquiatra. Especialista em Psicoterapia de Orientaçao Analítica pelo Centro de Estudos Luís Guedes. Doutoranda em Psiquiatria - UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil

Instituiçao: Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Faculdade de Medicina, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Centro de Estudos Luís Guedes.

Correspondência
Silvia Bassani Schuch Goi
Rua César Lombroso, 49/504
90420-130 Porto Alegre/RS
silvia_schuch@yahoo.com

Submetido em: 30/10/2013
Devolvido para correçoes em: 05/02/2014
Retorno do autor em: 10/02/2014
Aceito em: 04/04/2014

 

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