Rev. bras. psicoter. 2014; 16(2):38-48
Silva KL, Victor MM, Vitola ES, Bau CHD. Genética além dos rótulos. Rev. bras. psicoter. 2014;16(2):38-48
Artigos Originais
Genética além dos rótulos
Genetics beyond labels
Katiane L. Silvaa; Marcelo M. Victorb; Eduardo S. Vitolac; Claiton H. D. Baud
Resumo
Abstract
INTRODUÇAO
Para muitos interessados em genética psiquiátrica, pode parecer difícil separar essa disciplina de conceitos como os de imutabilidade e determinismo. Neste sentido, ao longo do tempo, as descobertas e avanços da genética foram naturalmente se mesclando a fatores sociológicos, históricos e ideológicos que a posicionaram no centro dos debates mais acalorados dos últimos 100 anos. Mais especificamente, a ausência de informaçao sobre a base genética de transtornos psiquiátricos alimentou mitos, culpas e preconceitos, que geraram ainda mais dificuldades para aqueles que já têm que lidar com as consequências de uma doença. Por tudo isso, o estudo dos aspectos genéticos do comportamento é relevante nao apenas porque de fato existe um componente genético nos transtornos mentais, mas também porque se trata de um conhecimento que pode auxiliar os profissionais a entender a complexidade envolvida na origem e curso desses transtornos. O desenvolvimento científico atual exige uma abordagem que integre as perspectivas biológicas, sociais e psicológicas, em oposiçao ao determinismo, seja ele genético ou ambiental. Tal abordagem apresenta-se como fundamental para o desenvolvimento de uma concepçao psicopatológica orientada pela ética do cuidado que, ao considerar as bases comuns dos transtornos bem como a variabilidade individual destes, busca personalizar as condutas psicoterapêuticas e/ou farmacológicas.
EM NOME DA GENÉTICA
Nao cabe nos limites deste artigo revisar amplamente aspectos históricos do bom e mau uso da genética, mas seria interessante destacar dois exemplos que enfatizam as relaçoes entre preconceito, genética e sociedade. Trata-se de recortes que devem ser lidos como interpretaçoes inadequadas e sobretudo oportunistas do que seriam seus principais conceitos. O primeiro deles é extremo e provavelmente ainda alimenta um certo estigma contra a genética contemporânea, em alguns núcleos de ciências sociais e humanas: a eugenia sob o nazismo. O segundo é recente e oposto ao primeiro pelo descarte da biologia como causa, na tomada de decisoes políticas preconceituosas.
Muito do preconceito contra a genética como explicaçao para a causalidade dos transtornos mentais tem origem na história da psiquiatria durante a primeira metade do século XX. A psiquiatria e a medicina foram fortemente influenciadas por ideais eugênicos naquele período. A eugenia recomendava que houvesse um estímulo à reproduçao de estirpes julgadas sadias e uma restriçao à fertilidade de indivíduos com características hereditárias julgadas inferiores1. Embora pareçam estranhas a um clínico moderno, as ideias eugênicas eram a ciência oficial daquela época. Eram apoiadas por uma fraçao considerável da comunidade científica e tinham o respaldo de muitos artigos e livros1. A aplicaçao dessas ideias evoluiu de programas iniciais, presentes em formas mais brandas em diversos países, inclusive Brasil e Estados Unidos2, para a segregaçao racial e esterilizaçao de grupos selecionados, e, no caso específico da Alemanha nazista, para o extermínio desses. Mesmo no American Journal of Psychiatry há artigos clamando pelo direito de matar crianças em casos sem esperança de cura, "erros da natureza que nunca deveriam ter nascido"3. Naquele momento, os argumentos para tal resultado catastrófico foram pautados pela reintroduçao da ideia de desigualdade nos direitos humanos, sendo essa desigualdade especificamente buscada na biologia, mais especificamente na variabilidade genética.
Uma condiçao para o pensamento nazista foi a desumanizaçao dos ditos inferiores. Em 1920 Alfred Hoche, professor de psiquiatria, e Rudolf Binding, professor de direito, criaram o conceito de "Lebensunwerten Lebens", ou vida indigna de ser vivida, em um livro chamado "A permissao para destruir vida indigna de viver". Os autores salientavam o caráter terapêutico da eliminaçao, que seria um tratamento curativo do social4.
Os chamados higienistas raciais viram na genética e na eugenia uma ferramenta para resolver supostos problemas sociais (como os transtornos mentais e as raças inferiores) com justificativas biológicas, logo científicas. O ambiente em todas as suas versoes, do familiar ao social mais amplo, foi desvalorizado na sua capacidade de alterar a natureza humana. A herança genética foi alçada à posiçao determinista de causa principal, primeira ou única do humano. Condiçoes históricas particulares na Alemanha permitiram que ideias amplamente difundidas pela ciência da época em todo o mundo fossem desenvolvidas às últimas consequências após a desumanizaçao das vítimas. A genética, entao uma muito jovem ciência, foi usada para legitimar o que de fato eram preconceitos culturais da época, biologizando-os.
Um segundo exemplo, de certa forma oposto ao da eugenia, é recente e ocorreu em fevereiro de 2014 quando o presidente de Uganda, Yoweri Museveni, assinou uma lei criminalizando homossexuais e cidadaos que nao denunciassem à polícia pessoas suspeitas de serem gays5. Curiosamente o presidente disse ter tomado essa atitude após considerar texto de cientistas ugandenses6 determinando a nao existência de um gene da homossexualidade, o que transformaria a condiçao em um desvio de comportamento. Tal opiniao, apresentada sem referências e de forma panfletária em jornais ugandenses, contraria concepçoes bem estabelecidas na literatura sobre a influência dos genes na orientaçao sexual humana7. "Nenhum estudo mostrou que alguém pode ser homossexual por natureza. É por isso que eu concordei em assinar a lei", disse o presidente5. No Ocidente a homossexualidade foi moralmente amenizada quando passou a ser considerada como uma característica, e nao uma opçao. Convém lembrar que a psiquiatria trata a homossexualidade como uma variaçao normal da orientaçao sexual e a excluiu da lista de transtornos mentais a partir da décima versao da Classificaçao Internacional de Doenças (CID-10)8 realizada em 1983 e da revisao da terceira ediçao do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III-R)9 em 1987. As lentes da ciência e uma causalidade multifatorial, incluindo a genética, ajudaram a reduzir certas discriminaçoes sobre a orientaçao sexual. O que o episódio de Uganda esclarece é que achados científicos bem embasados foram abandonados por cientistas e políticos pouco rigorosos em um ambiente em que um comportamento geneticamente (ou nao) determinado já estava culturalmente discriminado. A genética, a biologia e a ciência foram aqui solenemente abandonadas para entao permitir a criminalizaçao desejada por setores conservadores ugandenses. Como no nazismo, mas de modo inverso, comportamentos ou etnias foram primeiramente discriminados e a genética a seguir (des)convocada para justificar a perseguiçao dos segregados.
Pode-se concluir que qualquer ciência, incluindo a genética, está muitas vezes à mercê das preferências e opçoes das sociedades que utilizam seus achados ou os distorcem na direçao de seus interesses, conceitos e preconceitos. Os achados biológicos nao produzem valores sociais, nao sao bons ou maus em si; quem decide seu uso sao as leis, costumes e definiçoes do humano, do sadio e do doente em cada época. A ideia de que humanos diferentes sao iguais entre si em dignidade e direitos nao é natural e surgiu no Iluminismo, inspiraçao da Revoluçao Francesa, da Constituiçao Americana e da Declaraçao Universal dos Direitos Humanos. Hoje há um império invisível das ideias iluministas de igualdade, ao menos jurídica, dos cidadaos, a era dos direitos. Que os desenvolvimentos da genética nao se tornem perigosos está na dependência da manutençao de um arcabouço ético ou jurídico que nao foi desenvolvido pela biologia, genética ou medicina, mas sim pela civilizaçao nos últimos séculos. Um temor presente até hoje nas ciências humanas a respeito dos avanços da genética é o de que eles justifiquem atitudes autoritárias contra os socialmente desfavorecidos. O engano aí talvez seja supor que o autoritarismo seja resultado da biologia quando na verdade ele a precede. Assim, os exemplos citados têm dupla funçao: tanto servem para advertir que sao precisos cuidados e limites éticos quanto ao uso dos achados genéticos quanto para demonstrar que nao surgiu na genética o mau uso que se fez dela.
A GENÉTICA PSIQUIATRICA NAO É TAO "TAXATIVA" QUANTO PODE PARECER
Fatores genéticos estao envolvidos em variaçoes entre indivíduos no que diz respeito a comportamentos patológicos e nao patológicos. Genericamente, podemos dizer que o estudo dos fatores genéticos envolvidos em comportamentos patológicos e patologias psiquiátricas é objeto da genética psiquiátrica. Variaçoes de traços de personalidade, inteligência, orientaçao sexual e comportamentos violentos, entre outros, sao objeto da genética do comportamento. Sabemos que a genética psiquiátrica precisa lidar também com o conhecimento e domínio da genética do comportamento, na medida em que alguns comportamentos psicopatológicos acontecem em um contínuo com comportamentos normais, como nos casos da ansiedade ou dos modelos de personalidade.
Um dos erros dos eugenistas do início do século XX foi nao compreender que as interpretaçoes baseadas na genética, especialmente em traços do comportamento, sao bastante complexas. Antes do desenvolvimento da genética molecular, a genética psiquiátrica limitava-se a métodos baseados em famílias, gêmeos e adotados para avaliar a presença de fatores genéticos em doenças e a herdabilidade de muitos traços complexos. Se ainda hoje é difícil a inserçao dos conceitos da genética nas ciências do comportamento, pode-se inferir que essa dificuldade era ainda maior quando a genética estava em seus estágios iniciais.
O conceito de herdabilidade parece simples, mas, na realidade, esconde alguma complexidade. Herdabilidade é a parcela da variaçao de um traço ou patologia em estudo (fenótipo), que pode ser atribuída a fatores genéticos, em uma determinada populaçao. Ela apresenta uma fraçao (por exemplo, 0,2 ou 0,4 ou 0,8). Porém, isso nao significa que uma característica em um indivíduo específico é, por exemplo, 80% (ou 0,8) explicada por fatores genéticos. O cálculo da herdabilidade em genética humana é geralmente obtido a partir de estudos que comparam a concordância em gêmeos monozigóticos e dizigóticos. Parte-se do princípio de que, se houver uma semelhança maior entre os pares monozigóticos (100% do material genético em comum) do que entre os dizigóticos (50% do material genético em comum), esta deve ser ao menos em parte devida aos genes. Assim, a herdabilidade é um conceito relativo que representa a parcela da variaçao total em uma característica (fenótipo) que é devida a fatores genéticos.
Vamos utilizar uma situaçao hipotética para exemplificar. Em um país desenvolvido, onde é rara a desnutriçao, o peso de fatores genéticos para explicar a diferença de altura entre indivíduos vai ser grande, porque a desnutriçao (fator ambiental) nao explica a variaçao entre as pessoas, na medida em que é muito rara. Da mesma forma, em um país pouco desenvolvido o peso da desnutriçao para a variaçao na altura pode igualmente ser pequeno, porque a escassez de alimentos poderia atingir a todos da mesma forma, nao induzindo variaçao entre os indivíduos. Portanto, neste último caso, mesmo que a desnutriçao determine fortemente a altura atingida por muitos indivíduos dessa populaçao, ela influenciaria pouco no cálculo da herdabilidade. Pode-se ter uma herdabilidade alta, dando a falsa impressao de que o fator desnutriçao nao é importante. Ainda assim, avaliadas e descontadas essas limitaçoes, podemos ler, nas estimativas de herdabilidade, um indicativo da presença e intensidade dos fatores genéticos e, por consequência, dos fatores ambientais também, em diferentes traços, comportamentos ou patologias10.
No que se refere às patologias psiquiátricas, recomendamos a revisao de Bienvenu et al.11, que sumarizou as estimativas de diferentes doenças psiquiátricas, como transtorno de humor bipolar (85%), esquizofrenia (81%), doença de Alzheimer (75%), transtorno por uso de cocaína (72%), anorexia nervosa (60%), dependência de álcool (56%), transtorno por uso de sedativos (51%), transtorno por uso de maconha (48%), transtorno de pânico (43%), transtorno por uso de estimulantes (40%), transtorno depressivo maior (37%) e transtorno de ansiedade generalizada (28%). O transtorno de déficit de atençao e hiperatividade apresenta herdabilidade de 0,88 em crianças e 0,72 em adultos12 e o autismo de 80% a 90%13.
A QUESTAO DA CAUSA
Podemos fazer uma imagem da complexidade das equaçoes causais em transtornos mentais e traços do comportamento se pensarmos que essas múltiplas variaçoes genéticas exercem sua influência a partir de interaçoes entre si e entre diferentes e múltiplos fatores ambientais. É importante destacar que os fatores ambientais podem ser biológicos precoces, desde a gestaçao, passando pelas várias fases do desenvolvimento até a vida adulta. Aspectos socioeconômicos, educacionais (estilos de "criaçao") e psicológicos também podem exercer influência em alguns traços. Essa concepçao de etiologia multifatorial (influenciada por genes, ambiente e suas interaçoes) é, portanto, intrinsecamente ligada às ideias de complexidade e heterogeneidade, afastando as noçoes simplistas ou deterministas na compreensao da causalidade do comportamento e dos transtornos mentais.
Por tudo o que foi exposto, o entendimento da base genética em transtornos mentais já estava claro antes da identificaçao de variaçoes genéticas e moleculares envolvidas na suscetibilidade. A partir das últimas décadas, tornou-se possível investigar essas associaçoes, a partir de pelo menos dois grupos de estratégias: aquelas baseadas em genes "candidatos" e as varreduras genômicas.
No primeiro caso, trata-se de estudos de caso-controle onde sao testados genes específicos, chamados de candidatos em virtude de serem escolhidos pela sua participaçao em funçoes biológicas relacionadas com uma determinada patologia (ex. gene do receptor da dopamina no transtorno de déficit de atençao e hiperatividade ou na esquizofrenia). Chama-se esse tipo de abordagem de "orientada por hipótese", em oposiçao às grandes varreduras citadas. A abordagem orientada por hipótese também investiga interaçoes gene x ambiente. Nesse caso, testa-se a possibilidade de que o efeito de uma variaçao genética em um gene candidato seja influenciado por fatores ambientais. É o caso do estudo que demonstrou uma interaçao entre uma variaçao na regiao promotora do transportador da serotonina com o estresse, tendo como desfecho a depressao14. Outro estudo mais recente, do mesmo grupo15, mostrou que a interaçao da mesma regiao promotora em interaçao com maus-tratos na infância aumentaria o risco para depressao recorrente. Uma revisao recente sobre interaçoes gene x ambiente aponta várias perspectivas para o campo16, destacando também a contribuiçao de um estudo brasileiro na área17.
Desde os anos 2000, iniciaram-se os estudos de varredura genômica de associaçao. Sao estudos que "varrem" todo o genoma em busca de trechos com variaçoes genéticas com frequências diferentes entre grupos de casos e controles, sendo também chamados estudos de associaçao. Os primeiros resultados desses estudos na área da psiquiatria foram decepcionantes porque se evidenciou que o tamanho do efeito de cada variaçao genética era muito pequeno e cada estudo teria que ter um número gigantesco de indivíduos genotipados. Mais recentemente, os estudos começaram a atingir o número necessário de indivíduos, a partir de colaboraçoes internacionais entre grupos de pesquisa. Isso reanimou os pesquisadores com relaçao aos resultados. Ao que parece, variaçoes genéticas em números na ordem de dezenas podem estar relacionadas às mais graves doenças psiquiátricas.
DETERMINISMO GENÉTICO? AMBIENTAL?
É preciso ter em conta que, mesmo quando as associaçoes entre genes e transtornos psiquiátricos estiverem bem definidas, os genes identificados provavelmente nao poderao ser chamados de "genes da depressao" ou "genes da ansiedade", por exemplo. Tratar-se-ao, provavelmente, de alelos comuns na populaçao, presentes em pessoas com ou sem esses problemas. Determinadas combinaçoes de alelos, aliadas a fatores do ambiente, poderiam desencadear o problema. Mas provavelmente nenhum desses alelos, isoladamente, seria específico, suficiente ou necessário para o desencadeamento, o que afasta a ideia de determinismo genético. Um exemplo do exposto acima é uma metanálise recentemente publicada que reuniu quatro estudos do Psychiatric Genomics Consortium Bipolar Group. O estudo apontou que pelo menos seis vias funcionais (regulaçao hormonal de corticotropinas, sinalizaçao através de receptores de glutamato, canais de cálcio, sistemas de segundos mensageiros e sistemas de desenvolvimento neuronais) estao envolvidas na patogênese do transtorno de humor bipolar a partir de efeitos pequenos de variaçoes em 226 genes18.
O fato de que os transtornos psiquiátricos apresentam uma etiologia multifatorial, com a participaçao de fatores genéticos e do ambiente, já deveria ser suficiente para afastar a concepçao de determinismo, seja ele genético ou ambiental. Na verdade, os genes e o ambiente atuam de maneira probabilística, e nao determinística. Ou seja, embora a presença, em um indivíduo, de determinados fatores possa aumentar a sua predisposiçao a um transtorno, isso nunca será garantia de que a pessoa irá desenvolvê-lo.
Talvez o maior benefício da identificaçao de variaçoes genéticas de risco para os transtornos psiquiátricos esteja na possibilidade de facilitar uma intervençao mais precoce e efetiva logo após o diagnóstico. Por exemplo, a fenilcetonúria é uma doença genética autossômica recessiva que pode ser diagnosticada logo após o nascimento, no teste do pezinho. A deficiência intelectual que pode ser provocada pela doença tem sido prevenida por uma simples mudança na dieta. Esse exemplo ilustra como é errada a noçao de que um transtorno genético implicaria imutabilidade. O maior conhecimento sobre a genética e a variabilidade individual pode personalizar e otimizar a conduta, a partir da escolha de abordagens psicoterapêuticas e/ou farmacológicas mais adequadas para cada indivíduo.
POR UMA ABORDAGEM INTEGRADA NA COMPREENSAO DOS TRANSTORNOS MENTAIS
A complexidade e heterogeneidade dos transtornos mentais colocam em xeque nossa capacidade de uma compreensao ampla. O hiato entre genótipo e fenótipo confirma a atuaçao de múltiplos mecanismos, que atuam de forma inter-relacionada, na determinaçao desses transtornos. Assim, a dicotomia natureza x criaçao (nature x nurture) tem sido superada através do fortalecimento da visao multifatorial19.
Nesse sentido, a questao da causa deve ser constantemente revisada e embasada em evidências que apontem para fatores que ajudem na compreensao da origem e curso de um transtorno. Kendler20 propoe um modelo etiológico baseado no "pluralismo de base empírica" que encontra-se aberto para que diferentes níveis de causalidade (biológicos/genéticos, psicológicos, sociais e culturais/econômicos) contribuam com suas evidências científicas para um melhor entendimento dos transtornos psiquiátricos.
A partir da perspectiva da interaçao cérebro-psiquismo, embora qualquer estado subjetivo pode ser lido, interpretado ou explicado por diversas concepçoes psicológicas ou psicanalíticas, todo evento mental corresponde a um estado cerebral, assim como as mudanças psíquicas causam alteraçao do sistema nervoso. Portanto, analisar um fenômeno extremamente complexo a partir de um único modelo de conhecimento conduz a um reducionismo que empobrece as possibilidades de compreender e intervir clinicamente. A discussao desse tema deve ir além da preponderância ou nao de bases biológicas e genéticas na causa e desenvolvimento dos transtornos mentais, pois a natureza e a cultura estao fortemente imbricadas na determinaçao do comportamento, gerando, a partir de uma conjunçao de fatores, um resultado particular em cada indivíduo.
A falta de convergência entre as diferentes abordagens (psicoterapêuticas e biológicas) prejudica a comunicaçao entre os profissionais da área ao gerar uma confusao de "línguas" que se estabelece nessa "torre de babel". Por consequência, o entendimento do comportamento de forma mais integrada fica prejudicado. Assim, é premente a necessidade de apoiar novos modelos que levem em consideraçao o caráter multifatorial dos transtornos mentais e auxiliem efetivamente no entendimento das doenças, bem como no desenvolvimento de estratégias de prevençao e tratamento que minimizem o sofrimento advindo desses transtornos.
CONSIDERAÇOES FINAIS
Há um consenso de que todo tratamento deve ser personalizado, levando para isso em conta características próprias de cada paciente. Para chegar a esse objetivo, muitos psiquiatras e psicoterapeutas imaginam, com razao, ser necessário fugir a todo custo de concepçoes deterministas e rotuladoras. Vale destacar, no entanto, que a visao contemporânea envolvendo pluralidade de causas e extraordinária variabilidade individual, por si só, já afasta a antiga sombra dos estigmas. Talvez a melhor forma de permitir uma visao verdadeiramente personalizada e individualizada de um transtorno psiquiátrico hoje seja ir além dos rótulos, sem deixar de avaliar junto ao paciente os múltiplos fatores determinantes da sua condiçao e possibilidades terapêuticas.
A acomodaçao a um simples diagnóstico de depressao, por exemplo, pode de fato limitar o manejo dinâmico com o paciente. No entanto, ainda mais deletério é desconsiderar as várias possíveis implicaçoes neurobiológicas envolvidas no diagnóstico inicial. É somente indo além da neurobiologia, mas sem desconsiderar a mesma, que pode ser possível levar em conta as peculiaridades individuais daquele paciente, oferecendo a ele tudo o que décadas de pesquisa em psicoterapia e psicofarmacologia têm desenvolvido e ainda vao desenvolver. Ou seja, o diagnóstico nao é um fim, mas sim um meio para alcançar melhores possibilidades terapêuticas.
É preciso considerar também que, do ponto de vista da evoluçao humana, é fácil compreender que todas as pessoas podem enfrentar dificuldades de adaptaçao à cultura vigente em cada época, fato que se aproxima do conceito de neurose como sintoma do processo civilizatório21. Se o vínculo entre a nossa estrutura biológica e a cultura por um lado predispoe à psicopatologia, por outro lado, ao ser assimilado, permite a busca por ajuda, ao romperem-se os estigmas.
Psiquiatras, psicoterapeutas e pesquisadores da área da etiologia de transtornos mentais devem juntos construir pontes na comunicaçao que conduzam ao desenvolvimento de uma concepçao psicopatológica regulada pela ética do cuidado em contraponto a uma visao fundamentalista, centrada em um único vértice de entendimento e, consequentemente, de tratamento. Mais do que nunca, é preciso que consideremos várias lentes na análise do comportamento que, de forma integrada, podem contribuir para uma maior compreensao dos transtornos mentais e, assim, ampliar as possibilidades de intervençoes.
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a. Psicóloga. Pós-doutoranda em Genética pela UFRGS. Doutora em Psiquiatria pela UFRGS
b. Médico psiquiatra. Pós-doutorando em Psiquiatria pela UFRGS. Doutor em Psiquiatria pela UFRGS
c. Médico psiquiatra. Mestre em Psiquiatria pela UFRGS
d. Professor associado do Departamento de Genética, UFRGS. Orientador nos Programa de Pós-Graduaçao em Genética e Biologia Molecular - PPGBM e em Ciências Médicas: Psiquiatria (UFRGS)
Correspondência:
Claiton H. D. Bau
Departamento de Genética, Instituto de Biociências, UFRGS. Caixa Postal: 15053
91501-970 Porto Alegre, RS, Brasil
claiton.bau@ufrgs.br
Submetido em: 02/05/2014
Devolvido para correçoes em: 13/07/2014
Retorno dos autores em: 22/07/2014
Aceito em: 30/07/2014
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