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Revista Brasileira de Psicoteratia

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Rev. bras. psicoter. 2014; 16(2):18-37



Artigos Originais

Sexo na "telinha": da fantasia erótica transferencial ao enactment em "Sessao de terapia"

Sex on the screen: from the transferential erotic fantasy to the enactment in the "Therapy Session"

Antonio Marques da Rosa

Resumo

Inicialmente é delineada uma aproximaçao entre o cinema e a psicanálise, lembrando suas mútuas influências desde o nascimento, no mesmo ano de 1895. Depois é apresentado um breve histórico do surgimento do sexo nas telas. A seguir, através de uma psicoterapia ficcional de uma série para televisao, examina-se como uma fantasia erótica transferencial pode evoluir para uma transferência e contratransferência erotizadas, e daí para um enactment, quando a dupla terapeuta-paciente perde a noçao do "como se". Por fim, enumeram-se algumas conclusoes.

Descritores: Sexo; Cinema; Transferência; Contratransferência; Enactment.

Abstract

Initially a parallel between cinema and psychoanalysis is drawn, outlining their mutual influences, since their birth in the same year, 1895. Subsequently, a brief history of the advent of sex on the screens is presented. Next, through a fictional psychotherapy from a television series, it is examined how a neurotic transferential fantasy may evolve to an erotized transference and countertransference, and thence to an enactment, when the therapist-patient couple loses track of the "as if". Finally, some conclusions are outlined.

Keywords: Sex; Cinema; Transference; Countertransference; Enactment.

 

 

INTRODUÇAO

Diversos vínculos aproximam cinema e psicanálise, a começar pelo ano de nascimento. O autor italiano Tullio Kezich1 justifica o axioma de que seriam "irmaos gêmeos": de fato, o cinema surgiu com a invençao do cinematógrafo pelos irmaos Lumière e a psicanálise com a publicaçao dos "Estudos sobre a histeria" de Freud e Breuer, ambos em 1895. Na verdade o cinema é um irmao inicialmente enjeitado pela psicanálise, diz outro italiano, Fausto Petrella2. Ele lembra que a primeira incursao psicanalítica na nova expressao artística só ocorre quase uma década depois com o artigo de Otto Rank sobre "o duplo", publicado na revista Imago em 1914, onde ele analisa o filme "O estudante de Praga", rodado em 1913. O protagonista da película, precursora dos modernos filmes de terror, vê seu duplo sair do espelho. Angustiado ao depararse com essa entidade, acaba por matá-la, o que provoca sua própria morte3. Casualmente ou nao, o primeiro artigo psicanalítico sobre cinema de que se tem notícia aborda justamente a gemelidade.

Afora a importância cultural, de lazer e econômica do cinema, cabe ressaltar outra, aqui de maior interesse: a presença nos filmes de fantasias inconscientes. Isso conduz a duas influências recíprocas. A primeira é que os conflitos humanos sao representados nos filmes e estes, por sua vez, influenciam o comportamento e os conflitos humanos. A outra é que há muito tempo terapeutas e analistas escrevem sobre cinema e, por seu turno, os filmes os representam nas telas. O seriado para TV "Sessao de terapia", que será examinado adiante, é um exemplo. Na Jornada de 1994, em Gramado, Kernberg diz que "os filmes sao hoje o setor das artes que mais ricamente expressa os conflitos". E acrescenta, em um artigo: "o cinema é considerado a mais poderosa influência sobre o comportamento humano"4. As fantasias inconscientes, sexuais ou agressivas, vivificadas na tela sao uma amálgama de fantasias inconscientes de toda a equipe: do autor da obra original, do roteirista, do diretor e também de cenógrafos, iluminadores, maquiadores, de todos que participam da criaçao da cena que o espectador "vive" no cinema. Os atores, claro, merecem ênfase por serem os participantes do processo criativo que se oferecem como objetos de identificaçao. Mais tarde, na sala escura, a esse aglomerado de fantasias inconscientes, nós, espectadores, adicionaremos as nossas.

Além do ano de nascimento e das influências recíprocas, outra conexao entre cinema e psicanálise é a semelhança das linguagens cinematográfica e onírica (a linguagem do inconsciente), com o uso de flashbacks, cortes, enquadramentos, narrativa nao linear, close-up, etc3. Cinema e sonho têm essa importante característica em comum, que é serem produçoes essencialmente visuais. Como produçao imagética, portanto, o cinema aproxima-se do sonho. Além disso, ambos remetem a um estado oniroide. Sem limites de espaço e tempo e com total liberdade associativa, talvez nenhuma outra forma de arte assemelhe-se tanto aos sonhos como os filmes. O autor italiano Cesare Musatti5 afirma, em 1961, que o sonho é nosso filme particular e o filme é nosso sonho coletivo. Dois anos depois Bion6 relaciona sonhos e mitos e ressalta que "o sonho, caso seja considerado como um mito privado, tem uma nova importância". Na mesma trilha, Campbell7,8, antropólogo e mitólogo consagrado, equaciona mito e sonho: "o mito é o sonho público, o sonho é o mito privado". O fato a seguir ilustra como esses "sonhos públicos", que habitavam os mitos greco-romanos da antiguidade, hoje povoam nossa mitologia contemporânea, o cinema. George Lucas, ao idealizar a série "Star wars", foi grandemente influenciado pela leitura de "The hero with a thousand faces", de Campbell. O "mestre Yoda" de Lucas foi o antropólogo. Descobrir o mito do herói através do seu livro foi a chave para o estrondoso sucesso de "Star wars". Depois do lançamento do primeiro filme, Campbell creditou a Lucas o revigoramento do mito do herói na cultura moderna e ambos se tornaram amigos9.

Sob o conteúdo manifesto, como no sonho, o cinema abriga um conteúdo latente. Talvez a fonte do fascínio sobre as multidoes esteja no conteúdo latente, espelho das fantasias inconscientes da plateia. Na fruiçao desse conteúdo satisfazemos, de forma deslocada e segura, desejos e fantasias inconscientes. O encantamento da tela, portanto, parece consistir na suspensao provisória do cotidiano por "outra vida", de sexo, aventura, romance, heroísmo, ou tudo isso combinado. Os valores sao esquecidos e o superego ludibriado, pois a plateia está sendo perversa, egoísta, tirana, voraz, "lá" na tela, em pele alheia. Afinal, ela sabe que em um par de horas tudo volta ao "normal". Na sala de projeçao conseguimos extrair do filme - sem remorso, sem indignaçao e sem repulsa, como diz Musatti5 - a realizaçao de nossas aspiraçoes latentes.

Depois de cem anos de cinema, milhares de filmes "sonhados" por seus produtores acumularam-se em um enorme acervo onírico de filmes/sonhos partilhados, filmes/sonhos coletivos, prontos para serem usados por nossas projeçoes - na expressao anos cinquenta de Kezich1, os filmes sao verdadeiros sonhos prêt-à-porter.

Qualquer dimensao do humano é encontrável nesse imenso acervo "onírico-cinematográfico": violência, luto, infância, envelhecimento, amor, guerra, ciúme, uma lista quase interminável do que se pode sentir ou imaginar, em todos os seus matizes e combinaçoes. No presente trabalho interessa-nos um tema específico: o sexo no cinema.


O SEXO NO CINEMA

O primeiro nu das telas está por celebrar um centenário: no filme Inspiration (1915) a americana Audrey Munson10,11, na vida real modelo vivo para escultores, torna-se a primeira "atriz nua" do cinema. Desde lá o sexo no cinema acumula uma história tumultuada. As cenas de sexo irritam os moralistas, que se organizam em comitês de censura. Em 1922 os comitês criam um Código de orientaçao para os estúdios americanos em suas produçoes. As regras chegam ao requinte de fixar a duraçao máxima de três segundos para um beijo. Já sob o Código, a primeira representaçao de um orgasmo surge no filme checo Ecstasy(1933), inaugurando a efetiva censura no cinema. Além de novidade, trata-se de "orgasmo adúltero", pois Eva (Hedy Lamarr) é casada com outro homem. Nos Estados Unidos a primeira cópia é queimada e a segunda importaçao segue a soluçao adotada na Alemanha para o adultério: o acréscimo de uma cena onde Eva se separa antes do orgasmo e outra em que casa com Adao (o amante) depois10,12. Durante os três minutos da cena a câmera concentra-se no rosto de Lamarr, que expressa um prazer cada vez mais intenso. O momento do orgasmo é representado com delicadeza pelo colar que se rompe espalhando pérolas pelo chao. Vao-se as pérolas, fica o primeiro orgasmo da história do cinema.

Por pressao da Igreja Católica, o Código de 1922 endurece em 1934. Nem animaçoes como Fantasia(1940), de Disney, escapam ao furor restritivo: na sinfonia "Pastoral", de Beethoven, animada por várias jovens centauros com seios à mostra nas cenas à meia distância, os animadores viram-se obrigados a desenhar guirlandas florais no pescoço, de forma a ocultar os seios nas cenas mais próximas10. Também desse período, Notorius (1946), de Hitchcock, traz Cary Grant e Ingrid Bergman no mais longo beijo da história do cinema até entao. Nos três minutos do beijo os dois nao desgrudam nem quando caminham pela sala até o telefone. Hitchcock dribla a regra dos três segundos intercalando momentos de lábios unidos com outros de murmúrios e beijocas no pescoço10,13. Também de 1946, Gilda traz Rita Hayworth dançando e dublando "Put the Blame on Mame" no imortal striptease fetichista da luva10,14. É impossível enquadrar como imoral o despir de uma luva e a cena sensual vence os censores.

Com o fim da Primeira Guerra a censura arrefece. Entretanto, por pressao da Igreja Católica, II Miracolo (1948), de Rosselini, é considerado sacrílego pelos censores de Nova Iorque. A controvérsia chega à Suprema Corte americana, que decide, por unanimidade, que a objeçao ao filme fere a Primeira Emenda da Constituiçao, considera o cinema uma forma de livre expressao e autoriza a exibiçao. A decisao é um marco liberador na história cinematográfica. Anos depois, produçoes europeias trazem o conceito de "filme de autor", com Truffaut e Vadim como principais precursores. O novo conceito propoe que o cinema é uma forma de arte e representa a expressao pessoal do diretor. Após uma resistência inicial aos europeus, a censura retrocede ainda mais, ficando progressivamente mais tolerante até os dias de hoje10.

Nascido como simples entretenimento e maturado sob as investidas dos guardioes da moral, o cinema conquistou status de expressao artística e tem, cada vez mais, sido objeto da atençao psicanalítica. Após um século de polêmica trajetória, o sexo está hoje presente no cinema, seja com imagens mais ou menos explícitas ou apenas como tema, nos filmes de autor, em animaçoes para adultos, em filmes de terror, em comédias, em dramas e também em seriados para a televisao, como este que será examinado agora.


"SESSAO DE TERAPIA"

O objetivo nao é apresentar aqui uma revisao bibliográfica dos conceitos de transferência e contratransferência erótica, erotizada e de enactment, temas exaustivamente estudados por inúmeros autores. A meta é realizar um exercício prático de aplicaçao de conceitos por meio de uma obra ficcional.

A compreensao psicodinâmica aqui exposta nao pretende ser a única, muito menos a "definitiva". É apenas uma compreensao, a do autor. Afinal, como reconhece Phillip Roth15 (p. 35, em uma traduçao livre): "compreender as pessoas nao tem nada a ver com a vida. Nao as compreender é que é a vida; nao as compreender, nao as compreender, nao as compreender, e depois, reconsiderando com atençao, nao as compreender novamente. É assim que sabemos que estamos vivos: nao compreendemos. Talvez o melhor seja esquecer o compreender ou nao compreender as pessoas e aproveitar a jornada. Se você consegue isso - bom, melhor pra você".

Sempre que nova temporada da série Sessao de terapia é lançada, é inevitável que ela invada nossos consultórios como personagem de alguma sessao. Questoes variadas como curiosidade, comparaçoes, identificaçoes e críticas emergem no material. Criada em Israel em 2005, a série foi adaptada com sucesso em mais de 30 países e nos Estados Unidos conquistou um Globo de Ouro e dois Emmys. Apesar de adaptada à realidade de cada país, mantém os mesmos personagens. No Brasil, dirigida por Selton Mello, "Sessao de terapia" tem três temporadas completas. Cada temporada apresenta de 35 a 45 episódios curtos, com 22 a 30 minutos de duraçao.

A narrativa, em geral apoiada em apenas dois atores por episódio - a dupla terapeuta-paciente daquele dia - e ambientada quase sempre no mesmo cenário, que é o consultório do terapeuta, tem raríssimas cenas externas, numerosos diálogos e enquadramento quase sempre em close-up. Por essas características, a série poderia ser facilmente apresentada como peça teatral. Mas longe de ser monótona na tela, os conflitos bem compostos dos personagens e a boa atuaçao da maioria dos atores prendem a audiência e garantem o sucesso da série em todos os países onde é apresentada.

Sem perder de vista que "Sessao de terapia" é apenas uma série de televisao e como tal é entretenimento e, portanto, tem tanta obrigaçao de ser fiel à realidade quanto um gibi ou a novela das oito, ela pode ser utilizada como material ilustrativo do que acontece quando o esfacelamento do setting e a transgressao de fronteiras acompanham um enactment. É curioso imaginar o que a plateia conclui no final da temporada. Como diz Gabbard16, em artigo sobre contratransferência no cinema, para o espectador comum, que talvez nunca tenha tido contato com um terapeuta exceto em filmes, a série nao está apresentando UM terapeuta, mas sim O terapeuta, da mesma maneira que Bond é O agente secreto e Corleone, O mafioso. A audiência nao tem parâmetros para julgar se determinada conduta é adequada ou se é frequente na vida real; isto é, os filmes sao arquétipos que representam uma profissao inteira. Gabbard16 comenta que, apesar disso, a crescente presença de terapeutas nas telas reflete o grande interesse tanto dos produtores quanto das audiências. E conclui parafraseando Oscar Wilde: a única coisa pior do que ser representado na tela é nao ser representado na tela.

Na verdade, o modo como somos representados nas telas variou ao longo das décadas e do meio cultural. Nos anos 1940, quando a psicanálise tentava desembarcar em solo americano, predominaram representaçoes negativas. Mais tarde, quando psicanalistas europeus refugiados da guerra lá iniciaram seu ofício, os grandes estúdios começaram a incorporar e a retratar o poder do inconsciente em suas produçoes. Depois de uma "idade do ouro" da psicanálise no cinema, cujo melhor exemplo é o filme "Freud - Além da alma", de John Houston (1962), nas duas últimas décadas do século XX essa visao dourada do padrao ético dos terapeutas começou a declinar e proliferaram terapeutas assassinos e violadores de fronteiras (como exemplos, respectivamente: "Vestida para matar", direçao de Brian de Palma, 1980; "O príncipe das marés", direçao e atuaçao de Barbra Streisand, 1991)17.

Na atualidade, a mútua influência entre cinema e psicanálise tem mostrado maior tolerância em ambas as direçoes: os filmes contemporâneos têm retratado os terapeutas com um olhar mais positivo e menos caricato, por um lado, enquanto por outro temos cada vez mais nos debruçado sobre o cinema para refletir a respeito das questoes e perplexidades da vida real, num modelo conceitual que captura a dialética dessa construçao conjunta18. Amostra disso é que a atriz Lorraine Bracco recebeu da Associaçao Psicanalítica Americana uma premiaçao por seu papel como a psiquiatra Dra. Melfi na série para TV "Família Soprano" (1999-2007). Em seu discurso ela creditou a boa atuaçao à experiência como paciente17.


OS PERSONAGENS

O psicoterapeuta Theo (o ator Zé Carlos Machado) recebe um paciente em seu consultório a cada dia da semana, de segunda a quinta. Nas sextas ele conversa com Dora (interpretada por Selma Egrei) - sua terapeuta? Supervisora? Colega e amiga? Como nas caixinhas chinesas ou matrioskas russas, a série tem a peculiaridade de permitir a observaçao da terapia de Theo com a paciente Júlia (a atriz Maria Fernanda Cândido) e depois acompanhar seus reflexos na sessao de Theo com Dora.

Theo, 65 anos, casado, três filhos, psicólogo. Júlia, 34 anos, noiva, médica anestesista. Psicoterapia com frequência de uma sessao semanal, de início há um ano. As sessoes de Júlia ocorrem nas segundas às 9 da manha.

Setting: consultório de Theo, que, estranhamente, parece ser a sala da residência. Theo ocupa uma poltrona e na frente dele há um sofá de três lugares, onde sentam os pacientes. Entre ambos existe uma mesa de centro.


THEO E JULIA - SESSAO 1

Júlia chora pela primeira vez na terapia. Conta que esperava sua sessao na frente do consultório desde as 5 horas da manha, que está com frio e com a cabeça explodindo. Theo levanta, apanha uma manta na cômoda e alcança a ela. Após brigar com o noivo na noite passada foi a um bar com uma amiga e fez coisas horríveis. Agora está nauseada.

- Mas fica tranquilo, Theo, que nao vou vomitar aqui no seu tapete.

- O tapete nao importa. Quero que fique à vontade.

- A vontade pra vomitar na sua frente?

- Qual o problema em vomitar na frente do seu terapeuta?

- Na frente do terapeuta, nada... Mas é na sua frente.

Júlia diz que a terapia nao está funcionando. André, o noivo, dera um ultimato: ou casam ou ele termina. Os dois brigaram e ela foi com a amiga ao bar onde beberam bastante. A amiga foi embora e um homem abordou Júlia. Quando ela vai ao banheiro, o homem a segue.

- Fiquei com medo, mas aí lembrei que nunca tinha transado com ninguém num banheiro público e decidi fazer isso por mim.

- Por você, ou pra machucar o André?

- Pela experiência. Ele fechou a porta, levantou minha saia, começou a me dar um tesao... Tô achando isso meio forte pra você. É, Theo?

- Nao, nao, de maneira nenhuma.

- Se for me diz. Isso te excita? Ele abriu o zíper, baixou a calça, e eu fiquei ali olhando pra aquele pau enorme. Quer dizer... De repente nem era tao grande assim. Fiquei me sentindo como uma menina de dezesseis anos, como se estivesse sentindo aquilo pela primeira vez. Ele me virou de costas, botou minha cara contra a parede, baixou minha calcinha. Parou e pegou uma camisinha da carteira. Foi aí que percebi que ele estava acostumado a fazer isso. Tem certeza que isso nao é muito forte pra você, Theo?

- Tenho, sim.

- Quando escutei alguém urinando na cabine do lado, lembrei do André. O som dele no banheiro. Deu um aperto no peito e fiquei triste. Eu nao podia fazer aquilo com André.

- Que noite, hein?

- Mas nao termina aí. O cara nao gostou da minha decisao, é claro. Acredita que o idiota começou a negociar comigo? Falei que tinha namorado. E ele: "Relaxa, gata. E daí? Veio até aqui, nao vai me deixar assim, nao. Uma punhetinha e tá tudo certo". Falei que ele estava louco. O clima pesou, ficou tenso. E aí pensei em você, no que você diria, pensei na gente conversando aqui, que você nao iria entender, iria achar nojento.

- Mesmo assim fez questao de me contar. Você queria me chocar. Saiu correndo do sujeito e veio direto pro consultório.

- Nao, nao vim direto pra cá. Eu bati a punheta pra ele antes. Nao me pergunta por quê. Eu nao sei. Ainda nem lavei a mao. O ó dele ainda tá todo aqui (vai ao banheiro).

A mesa entre terapeuta e paciente, essa "barricada" no setting, já explicita o problema. Theo entende o frio da paciente concretamente e alcança-lhe a manta. Nao cogita que possa estar se referindo à relaçao de ambos. Também nao percebe a mensagem contida na náusea e no vômito, ele fica no manifesto: diz que Júlia pode vomitar no tapete sem problema. Assim, Theo emite a mensagem de que os conflitos devem ser atuados concretamente, e nao entendidos no significado simbólico. Frio é frio, vômito é vômito; logo, desejo sexual na sessao será só isso, nao será preciso ver além. Também lhe escapa que, como fez André, Júlia dá a ele um ultimato: ou eles "casam" - casamento como manifestaçao simbólica de casamento psicoterápico, o que nao está ocorrendo - ou ela atuará extratransferencialmente. A terapia iniciou há um ano e é difícil crer que esse acting out de Júlia nao fora antecedido por outras manifestaçoes de transferência erótica. Num gambito defensivo contratransferencial, talvez Theo tenha negado o surgimento dos desejos sexuais da paciente (e os seus) e assim a impelido a uma atuaçao extratransferencial. Júlia mantém Theo cativo e excitado, "masturbando-o" com o relato da aventura sexual, situaçao de grande risco e exposiçao, um grave acting out que lembra as atuaçoes características do transtorno de personalidade Borderline. O que diz Theo? "Que noite, hein?" Se Theo nao interpretar as emoçoes inconscientes de sua paciente e nao passar ao nível do simbólico, permanecendo no manifesto como até aqui, estará pavimentando o terreno para a terapia deslizar para uma mútua atuaçao.

De volta ao sofá, Júlia fala que André suspeita que ela tenha um caso, e ele está certo.

- Tô enganando o André há muito tempo.

- Por que você nunca trouxe a questao pra cá?

- Eu trouxe. Essa questao tá aqui há muito tempo. Quer que eu acredite que você nunca notou?

Júlia imaginara dois cenários após essa confissao. No primeiro Theo levanta da poltrona, abraça-a e diz "eu também te amo, Júlia", depois transam no sofá. O segundo cenário é igual, só nao transam no final. Sente isso por ele desde o início, há um ano. Foi ficando mais forte e Theo virou o centro da vida dela.

- Você pode estar agindo assim pra nao ter que lidar com toda essa coisa do ultimato. Júlia, eu sou seu terapeuta. E sendo seu terapeuta eu nao sou uma opçao. Você pode estar me usando como desculpa pra terminar com André.

Júlia diz que agora entendeu por que nao transou com o cara no banheiro. Nao foi pelo André, foi pelo Theo. Entende que Theo é seu terapeuta, mas seu corpo nao entende. Tranquiliza Theo e diz que ela nao é como a Glen Close naquele filme. Já na porta, ao sair, Júlia pergunta como dar sentido pra uma vida que só parece ter sentido com ele.

Evidencia-se, no final da sessao, uma transferência maciça, a essa altura claramente uma transferência erotizada. Júlia faz uma exigência egossintônica de gratificaçao amorosa e sexual, persistente e sem noçao da inadequaçao de seus desejos. A transferência erótica ainda manteria um atributo egodistônico, às vezes com certa vergonha e sempre com a noçao da impossibilidade do desejo se realizar. Aqui, a relaçao com Theo perdeu seu caráter fantasioso e agora é sentida e vivenciada concretamente. A transferência erotizada, mais intensa e mais vívida que a erótica, representa uma resistência muito poderosa e pode dominar a mente do terapeuta de forma mais perturbadora. A exigência tenaz de contato sexual esconde o ataque ao setting. Theo, contra a parede, tenta se safar com uma imposiçao categórica. "Comigo nao! Vade retro, Satanás! Sou seu Terapeuta!" Após invocar um espírito dos infernos mediante astutos encantamentos, como na metáfora impecável de Freud, quando Júlia admite a transferência Theo pede a ela que renuncie aos seus desejos e tenta exorcizar o espírito de volta, sem aproveitar o fenômeno em benefício da paciente. Como alertara Freud, é a maneira insensata de lidar com os desejos de Júlia, nao a maneira analítica. Além disso, a violência e gravidade do acting de Júlia, verdadeiro ataque contra si mesma, contra André e contra a terapia, é solenemente ignorada por Theo.


THEO E DORA - SESSAO 1

Theo agenda um encontro com Dora, uma terapeuta mais experiente. A relaçao dos dois é confusa, uma miscelânea de conversa entre velhos amigos e colegas, psicoterapia e supervisao. Os papéis sao obscuros. Dora abre a porta, Theo entra e senta.

- Theo, este é o meu lugar.

- Desculpe.

Theo levanta da poltrona de Dora e senta no sofá em frente. Entabulam uma conversa inicial de aproximaçao e Dora oferece bolo. Dora pede notícias da família de Theo, a esposa Clarice e seus três filhos. Depois Theo narra que se sente impaciente com seus pacientes, que tem pulado etapas e perdido a calma. Menciona de passagem a atitude de Júlia e dificuldades com outros pacientes. Quando Theo marcou hora, Dora suspeitou que se tratasse de algo em casa, pois ele nao a procurava há oito anos.

- Você parou sua supervisao há oito anos e disse alto e em bom som que eu estava interferindo no seu trabalho.

Dora insiste em saber sobre a família de Theo. Irritado, ele pergunta o que ela está insinuando. Depois, mais calmo, prossegue.

- Estou sempre discutindo. Com Clarice, com os filhos, discuto o tempo todo.

Mesmo impaciente com a insistência de Dora na vida conjugal, combinam de continuar as sessoes às sextas. Theo revela que a vida sexual com Clarice vai mal e que ignora onde ela anda durante a semana. Dora pergunta se ele suspeita de traiçao e expoe sua ideia de que a presença de transferência erótica na terapia é uma maneira de medir o estado do casamento do terapeuta: quando um terapeuta nao consegue lidar com a transferência erótica é sinal que seu próprio casamento está desmoronando. Theo contrapoe que o seu nao está desmoronando, mas troca o nome de Clarice por Júlia. Dora também troca nomes, chamando Júlia de Juliana. Theo diz-se chocado porque Dora insinua que ele já dormiu com a paciente e correu para confessar-se. Dora associa a transferência de Júlia com a história pessoal do pai dele, que saiu de casa com uma paciente. Theo insiste que é diferente, pois o pai era cirurgiao e ele nao irá se separar por uma paciente. Dora sugere que ele deveria falar com Clarice ao invés de se atormentar por ignorar seu paradeiro, deixando Theo ainda mais irritado.

- Tudo o que estou dizendo é que você precisa de supervisao com relaçao à Juliana.

- Júlia!

- Júlia, desculpe. Você precisa conversar sobre isso.

Dora volta a insistir que ele deve falar com Clarice sobre sua desconfiança.

- Foi um erro vir aqui! Eu nao estou em terapia! Eu vim aqui pra falar com você sobre um assunto profissional!

- Estou muito confusa. Você me procurou como supervisora ou amiga? Ou como uma colega que pode dar os conselhos que você quer?

Exasperado, Theo sai dizendo que nao retornará.

Os papéis nessa sessao sao confusos. Dora, acertadamente, percebe que Theo está rumando para uma violaçao de fronteiras com sua paciente. Dora denomina o encontro de supervisao, mas se intromete em assuntos íntimos de Theo, violando, ela também, as fronteiras de uma supervisao. Nao procura saber dos conflitos de Júlia, do conteúdo das interpretaçoes e das reflexoes do terapeuta, como faria um supervisor. Ao contrário, como numa terapia, interessa-se pelos conflitos de Theo, especificamente com a esposa e o pai. Dora pauta a sessao e impede Theo de seguir sua própria linha associativa.

Theo também parece desconhecer seu lugar nessa primeira conversa, pois concretamente ocupa o lugar que nao é seu e senta na poltrona de Dora. Zelosa de sua posiçao assimétrica em relaçao a Theo, imediatamente Dora aponta o engano, ao invés de examinar e decifrar o lapso.

Dora apresenta sua teoria bastante estapafúrdia. A transferência erótica só ocorreria quando o casamento do terapeuta está mal. Ou seja: para ela, é do terapeuta que parte o estímulo para o desenvolvimento de uma transferência erótica complicada. O corolário dessa tolice é que terapeutas em matrimônios felizes jamais terao pacientes com transferência erótica.

Até aqui, os sentimentos de Theo por Júlia evidenciam um fenômeno normal nas psicoterapias, que é o surgimento da contratransferência erótica. Em busca de compreensao procura Dora, mas nao é escutado. Se mais adiante puder entender os próprios sentimentos, abrirá caminho para os sentimentos e fantasias infantis de Júlia. Na trilha oposta, caso renuncie à autorreflexao e resolva contra-atuar, retribuindo aos anseios sexuais de Júlia, rumará para uma contratransferência erotizada e reforçará o baluarte das resistências da paciente. A transferência-contratransferência erotizada, como fenômeno intersubjetivo que é, surge da interaçao da dupla e com contribuiçoes de ambos. O mau manejo da sessao por Dora, ao invés de entendimento, desperta em Theo hostilidade e sentimentos paranoides no final da sessao.


THEO E JULIA - SESSAO 2

Theo tenta desentupir o vaso sanitário enquanto espera Júlia. Ela conta que disse sim ao pedido de casamento de André. Pergunta se Theo está feliz e se irá à festa. Theo responde que será uma honra, mas que ela nao parece segura da decisao. Júlia rebate que Theo nao aceita sua felicidade. O terapeuta assinala a grande diferença entre o clima da sessao passada e desta.

- Vou casar e foda-se.

- Você ainda nao respondeu a minha pergunta, Júlia. De onde veio esse 'sim'?

- Jura que você ainda nao entendeu por que eu disse sim pro André? Porque você disse nao pra mim.

Theo relembra umas férias de Júlia em Parati, aos 15 anos, com um casal de amigos do pai. A mae dela morrera há pouco e o pai estava muito deprimido, dependente dos cuidados da filha. Júlia descrevera Beto, o amigo do pai, como alguém cheio de vida que a levava para pescar. Sentia-se atraída por ele. Queria que o casal a adotasse.

- Esse Beto era sua tábua de salvaçao, assim como você acha que agora eu sou. Mas dessa vez nao é do seu pai que você precisa se salvar. É do André. E de tudo que ele representa pra você. Insegurança, ansiedade, dependência, mediocridade. O que acontece agora é igual ao que aconteceu em Parati. Você sabe que ficarmos juntos nao é uma possibilidade, mas mesmo assim você quer que eu te leve pra pescar e nunca mais te traga de volta.

- Mas com uma diferença: nao quero que você me adote, quero que você me coma.

Júlia recorda que quando conheceu Theo pensou que era um homem morto, que tinha deixado de viver. Teve vontade de soprar vida dentro dele. Depois viu que apenas a presença dela segurou e apertou o coraçao de Theo até voltar a bater.

- Eu queria tanto te abraçar (dirigindo-se à saída). Só quero que você me diga uma coisa. Você me deve isso. Nao como paciente, mas como mulher. Vou me casar e... Só me responde sim ou nao... Você também me quer?

- Nao (após uma hesitaçao).

O banheiro entupido exprime as projeçoes, para dentro da mente de Theo, dos desejos, exigências e ataques ao setting perpetrados por Júlia. Pelo fardo que é conter os próprios desejos e ansiedades, Theo se sente "entupido". Nao há espaço nele para os conteúdos mentais de Júlia, está difícil contê-los, elaborá-los e simbolizá-los de maneira compreensível para sua paciente. Theo nao percebe que, enquanto é objeto de amor e desejo sexual, simultaneamente é alvo do desejo inconsciente de Júlia de tirá-lo do prumo e de rumo e aniquilar sua capacidade terapêutica. Responder "sim" à Júlia seria endossar esse ataque. Responder "nao", além de ser uma inverdade, é um ataque à correta percepçao de Júlia a respeito de seus sentimentos contratransferenciais. O "sim" de Júlia para André é um acting out. O "nao" de Theo é um acting in. O silêncio, ou o convite a refletir sobre isso na próxima sessao, seriam melhores opçoes para Theo. A sessao revela que Júlia teve, aos 15 anos, uma mae morta e um pai deprimido, mentalmente morto. Ela vê o terapeuta como morto. O desejo de Júlia de reviver os pais, através da transferência, nao é abordado. Nem tampouco seu ataque vingativo ao abandono.


THEO E DORA - SESSAO 4

Theo pede a Dora que guarde na geladeira os camaroes que comprou para fazer um risoto para Miriam, ex-colega de faculdade. Elogia a aparência de Dora e a convida para esse jantar, para servir de álibi para o convite a Miriam. Dora diz que ele a corteja para mostrar como se sente um terapeuta cortejado pela paciente. Theo conta que esqueceu seus remédios no banheiro dos pacientes e que outra paciente os tomou e desmaiou no consultório. Depois passa a relatar que pela primeira vez em muitos anos há uma mulher realmente interessada nele, linda, que o vê como homem, e nao como terapeuta. Conta que Júlia foi para a cama com outro paciente dele e na sessao seguinte descreveu o que ambos fizeram. Confessa que sentiu ciúme, mas, por outro lado, ela está tao interessada nele a ponto de transar com um paciente dele.

Theo cogita encaminhar Júlia a outro terapeuta e esperar uns seis meses, pra esfriar, e depois ficar com ela. Dora responde que nao tem como esfriar. Theo replica que muitos terapeutas discordariam. Dora nao cede e diz que ele está flertando com Júlia e que, assim que ele der o primeiro passo, ela o abandonará.

- Nao há nada de errado em fantasiar, Theo. Mas me sinto na obrigaçao de interferir e perguntar se você se lembra do propósito de tratar a Júlia.

Theo se sente agredido por Dora. Ela assinala que agora, como há oito anos, quando levantou e foi embora, ele toma as críticas como ofensa pessoal. Theo segue atacando e Dora aponta que ele ataca para esconder a gravidade da situaçao.

Theo relata que Júlia chorou pela primeira vez e que tinha algo vivo e tocante no choro que quase o fez jogar tudo para o alto. Como poderá se controlar quando estiver a sós com Júlia? Nao quer abusar do seu poder de terapeuta. Dora, tranquilizadora, diz a Theo que nao irá abandoná-lo nem criticá-lo e nem deixará que ele faça algo do que se arrependerá pelo resto da vida.

- Eu amo a Júlia. Adoro olhar pra ela. A cada gesto. A cada palavra. Quero transar com ela. Quero ficar com ela o tempo todo. Quero que seja minha, nao importa o preço que eu tenha que pagar. Eu amo a Júlia.

- Nao sei o que dizer, Theo. Vou pensar com calma. Conversamos na semana que vem. Vou pegar suas compras.

Theo pede a Dora para guardar na geladeira os camaroes. Entre tantas outras compreensoes, o pedido pode ser traduzido como "Dora, seja continente, acolha meus sentimentos por Júlia e os esfrie para que nao deteriorem mais, senao a coisa vai feder".

Dora percebe o tamanho da ladeira pela qual Theo está escorregando com Júlia e se preocupa. Mas sua atitude oscilante entre didática ("você se lembra do propósito de tratar a Júlia?") e maternal ("nao vou te abandonar") é insuficiente para ajudar Theo a reverter o enactment, a essa altura já completamente engatilhado. Protetora, Dora previne Theo de que Júlia irá abandoná-lo assim que ele der o primeiro passo, invertendo a lógica de que Theo é que irá abandonar Júlia nesse passo. Júlia é quem mais precisa ser protegida, cara Dora.

Theo convida Dora a servir de álibi para o jantar com Miriam, mas também a quer como álibi para o acting contratransferencial que está por cometer. Ele vê Dora semanalmente; logo, em caso de transgressao de fronteiras com Júlia, nao será culpa dele. Dora nao percebe o veneno no convite para o risoto.

Theo ignora que é a identificaçao projetiva de Júlia que cria a ilusao de que os sentimentos dela dirigem-se à pessoa real do terapeuta. Ele se esquece do princípio do "como se" e acredita na miragem do amor de Júlia. Sua crença no amor ilusório dela cria uma miragem especular, que é o amor dele por ela. Essa cegueira leva Theo a crer também que o acting sexual de Júlia com outro paciente, narrado detalhadamente na sessao seguinte, ao invés de grosseiro ataque ao setting é prova do interesse dela por ele. A medida que Theo vai afundando na contratransferência erotizada, sua compreensao analítica vai se tornando progressivamente mais turva, até o completo "congelamento da metáfora"19,20. O desmaio da outra paciente no consultório denuncia, no plano simbólico, que sua atividade interpretativa afunda do estado de obnubilaçao rumo ao estado de coma vigil. Como terapeuta Theo desmaiou, como sua outra paciente. Ele crê no poder purificador de deixar em quarentena por alguns meses o amor transferencialcontratransferencial, que seria assim purgado de sua origem no enactment. Infelizmente, os camaroes já começam a feder.


THEO E JULIA - SESSAO 6

Júlia traz chocolate. O pai sofreu um infarto e ela se sente responsável. Theo pergunta se ela acredita ter esse poder. Júlia diz que contou ao pai que aos 15 anos teve relaçao sexual com Beto, o amigo dele. Contou ao pai como Theo mandou, para agradá-lo. O infarto ocorreu dois dias depois. A seguir falam sobre a interrupçao na terapia que Júlia fez. Theo revela que a possibilidade de nunca mais vê-la o assustou. Confessa que gosta e sente falta dela. Júlia parece assustada.

- O que a gente faz agora, Theo? É assim? Você diz sim e a gente fica juntos? Faz parte da terapia? Isso tá muito estranho.

- Estranho porque nao é mais uma teoria, virou realidade?

Júlia convida Theo a sentar-se ao lado dela. Theo senta próximo à Júlia.

- E agora, Theo?

- A fantasia é sua, nao joga pra mim.

- Nao era para ser assim.

- Qual era a fantasia com o Beto?

- Salvaçao.

- Do quê?

- Nao sei. De nada. Da vida.

- Mas por que um homem trinta anos mais velho?

- Porque eu queria um homem de verdade.

Theo relata, entao, que aos 14 anos apaixonou-se por uma professora trinta anos mais velha. Certo dia, a sós no laboratório, ele pediu um beijo. Ela apagou a luz, chegou bem perto e disse: "você quer me beijar? Beija". Theo saiu correndo. Hoje agradece pelo susto e pela chance de pensar a respeito. Júlia lembra que Beto nao apagou as luzes. Theo fala que ela deve entender que nao teve participaçao no que aconteceu com Beto. Júlia associa com uma punçao lombar que fez num menino, corajoso. Na hora em que a agulha entrou ele ficou em silêncio, só fez cara de surpresa, como se ela o tivesse traído. Nao esquece o rosto do menino, sua expressao de que nao sabia o que estava acontecendo. Theo diz que com Beto ela também nao sabia o que estava acontecendo. Júlia conta que nao queria sexo com Beto. Queria ser abraçada e que ele a ajudasse a fugir. Theo levanta e Júlia pede que permaneça. Júlia acha que estragou tudo de novo, pois ele nao a quer mais.

- Júlia, eu quero. Quero tanto que nao sei o que fazer.

- Entao nao faz, nao pensa, é tao simples.

- Se nao pensar eu vou te machucar e nao quero. É por isso que fico tentando entender o que está acontecendo aqui. Você disse que queria que o Beto te consertasse. E eu? O que você quer que eu conserte?

- Nada. Só quero você.

Theo pergunta a Júlia se acredita mesmo que apaixonar-se por ele nao tem a ver com Beto, com o pai ou com o trauma que agora ficou claro. Fala que Beto nao consertou nada. Ao contrário, quebrou a capacidade de Júlia se comunicar com os homens pela amizade, pela confiança, e nao pela relaçao sexual. Júlia discorda, diz que confia nele.

- Mas você quer transar comigo, Júlia. Você sempre leva a relaçao pra o lado sexual.

Júlia nao vê nada de terrível nisso. Theo diz nao acreditar que seja sexo o que ela quer, pois se assustou quando ele sentou ao seu lado. Fala que Júlia sente que ele desaparecerá se ela nao dormir com ele.

No plano manifesto Júlia se diz culpada pelo infarto do pai. Nao vem à mente de Theo que a culpa possa estar vinculada aos ataques à terapia. Na sessao anterior, quando diz à Júlia que deveria contar ao pai o que ocorreu com Beto, Theo ingenuamente acredita em uma reparaçao com o objeto externo, o pai real de Júlia, e nao no mundo interno dela. Júlia afirma que o fez para agradar a Theo (outro mimo, outro chocolate).

Theo faz a confissao contratransferencial de seus sentimentos por Júlia. Depois aceita o convite para sentar ao lado dela no sofá, em um acting in defendido pela racionalizaçao de que para ele, aos 14 anos com a professora, o susto funcionara. Na adolescência Júlia refugiou-se da solidao e do abandono causado pela morte da mae e luto do pai na excitaçao da aventura com Beto. No campo intersubjetivo da terapia Júlia tenta reviver com Theo o mesmo refúgio. A transferência erotizada camufla a fantasia de evitar o abandono. Ao invés de simbolizar isso, Theo contra-atua, deixando Júlia abandonada de novo. Ele retraumatiza a paciente com sua contratransferência invasiva como uma agulha de punçao. A associaçao de Júlia do menino corajoso que enfrentou a punçao lombar, mas se sentiu traído, sanciona isso.

Assim como Beto nao consertou nada, Theo nao está reparando coisa alguma. Ao invés de mostrarse um novo objeto, aceita e repete o papel dos objetos primitivos de Júlia, num enactment complexo e de múltiplas camadas: Beto-Júlia, Theo-professora, Theo-Júlia, Theo-Dora. É uma cilada que o próprio terapeuta armou, por onipotência ou medo de enfrentar os desejos sexuais de ambos. Inicialmente nega a transferência de Júlia durante todo o primeiro ano da terapia, depois nega sua contratransferência. Foge assustado como aos 14 anos. Quando resolve encará-la é como rendiçao, nao para lutar por compreensao. Theo capitula ante a pressao exercida por ambos, paciente e terapeuta, para reencenar antigos papéis com novos atores.


EPISODIO FINAL

Júlia abandona definitivamente a terapia. Theo vai ao apartamento dela. Júlia o recebe e diz que precisa superar essa história e que se afastou para esquecê-lo. Theo responde que nao queria que a terapia findasse assim e foi tudo culpa dele. Atrapalha-se na explicaçao. Júlia, irritada com o tom terapêutico, diz que, de novo, ele nao se assume.

- Toda vez que chegava segunda-feira a vida ficava diferente pra mim. Todo terapeuta tem um paciente que o estimula, que o motiva. Você precisava se apaixonar por mim e precisava que eu me apaixonasse por você. Pra enxergar aquele ponto importante da sua vida. Eu tinha que encarar essa situaçao sem medo, sem fuga. Eu precisava atingir o limite do abismo, olhar lá pra baixo, mas nao cair.

- Isso quer dizer o que, Theo? Que a gente tá no limite? Que a gente já caiu? O quê?

- Eu queria que você voltasse pra terapia.

- Voltar? Com você?

- Júlia, isso pode parecer estranho, mas é a maneira certa de lidar com isso. Foi na terapia que isso cresceu e é na terapia que tem que ficar.

- É nisso que você acredita? Você vai se esconder no seu consultório? É essa a vida que você quer? Você é um homem morto, Theo.

Júlia sai da sala. Após um momento, Theo a segue. Encontra-a no quarto, sentada na cama, costas para a porta. Sem se virar, Júlia despe a blusa e solta o cabelo. Theo avança alguns passos e senta.

Na cena seguinte Theo, abatido, procura Dora. Conta da visita e que nada aconteceu: teve uma crise de ansiedade com falta de ar e saiu correndo. Nao por questoes morais ou profissionais, diz, mas pela ansiedade. Acusa-se de ser terapeuta, pai e marido "de merda". Dora diz que Theo deve assumir a responsabilidade pelo que aconteceu e pelo que nao aconteceu. Ele revela que saiu de casa, que essa pode ter sido a última chance da vida, mas que abriu mao.

- E agora, Dora? Você nao tem nada pra me dizer? A psicologia nao tem nada pra me dizer?

Theo chora e Dora, calada, observa.

Gabbard e Hobday salientam que o violador de limites é mestre na autoindulgência e realiza racionalizaçoes, verdadeiras ginásticas mentais para convencer-se de que nao cometeu transgressao de fronteiras e, sim, que se tratava de algo de natureza excepcional. Quando diz à Júlia "você precisava se apaixonar por mim e precisava que eu me apaixonasse por você pra enxergar aquele ponto importante da sua vida", Theo tenta convencer-se de que agiu de forma "altruísta" e nega a existência do binômio transferência-contratransferência e da assimetria de poder nessa relaçao, ainda que tais fenômenos nao possam ser declarados irrelevantes por decreto, de tal forma que o enactment atingisse a categoria de "verdadeiro amor" ou de um encontro de "almas gêmeas". Outra forma de autoindulgência que os autores apontam é o splitting temporal do tipo "aquela pessoa nao era eu, este que está aqui agora é que sou eu". Quando Theo diz "Eu queria que você voltasse pra terapia. Júlia, isso pode parecer estranho, mas é a maneira certa de lidar com isso. Foi na terapia que isso cresceu e é na terapia que tem que ficar", ele realiza uma compartimentalizaçao do self, de forma que o terapeuta do consultório "nao é o mesmo" que está agora no apartamento da paciente oferecendo o que deveria ter feito desde o início. Uma terceira forma de lidar com a transgressao é a confissao: logo ao chegar ao apartamento de Júlia, Theo diz que nao queria que a terapia findasse assim e foi tudo culpa dele. Theo espera, assim, o perdao de Júlia e de si mesmo e, uma vez admitido o escorregao, a conduta seria "desfeita" magicamente. A confissao funcionaria como um "desfazer". Finalmente, uma quarta forma de autoindulgência é Theo justificar-se quanto à benignidade de sua intençao ao procurar Júlia, o que revela, por parte do terapeuta, falta da capacidade de mentalizaçao, isto é, de imaginativamente colocar-se na mente da paciente e reconhecer como seria escutado ou sentido por ela. Após o convite para retomar a terapia, Júlia, surpresa, indaga: "Isso quer dizer o que, Theo? Que a gente tá no limite? Que a gente já caiu? O quê?" Fica claro aqui que a deficiência de Theo na mentalizaçao leva à discrepância entre intençao e impacto21.

Enfim, todas as racionalizaçoes de Theo na casa de Júlia soam ocas. Aniquilado e oco, ele busca, em vao, respostas com Dora. Quando um cego conduz outro, todos caem no pântano, como na parábola retratada por Brueghel (1568). Através da transferência sexualizada Júlia buscou trazer à vida, na figura de Theo, objetos internos mortos da adolescência. A transferência de Júlia foi mais do que apenas a manifestaçao de seus conflitos preexistentes: foi também a tentativa de recriá-los na intersubjetividade da terapia para poder finalmente resolvê-los. Essa fantasia nao foi simbolizada por Theo, talvez porque o uso abusivo e persistente da identificaçao projetiva por parte de Júlia debilitou seu sentido de self. O resultado, como decretou Júlia, foi a morte de Theo como terapeuta. Novo abandono para Júlia. Os objetos internos, irresponsivos, sao alvo de luto, mas também de raiva. A transferência aparentemente amorosa e sexual mostra a outra face, que é de ataque. Theo nao percebeu que na transferência erotizada o componente mais forte sempre é o agressivo, nao o sexual.


CONCLUSOES

Neste artigo tentei examinar como uma fantasia erótica transferencial pode evoluir para uma transferência e contratransferência erotizadas, e daí para um enactment, quando a dupla terapeutapaciente perde a noçao do "como se". Claramente existem limitaçoes nesse tipo de exame por tratar-se de um caso ficcional. Alguns aspectos de uma psicoterapia real foram propositalmente dramatizados para conferir maior "apelo" ao seriado. Entretanto, em sua essência, os aspectos humanos da complexa relaçao paciente-terapeuta estao presentes.

Baseada nos sentimentos da dupla terapeuta-paciente, nas atuaçoes de ambos e nas consultas de Theo com Dora, ao fim da temporada uma plateia leiga pode se sentir impelida a algumas conclusoes:

  • Ao procurar um terapeuta, é melhor certificar-se de que ele é feliz no matrimônio, ou entao a terapia irá descambar; terapeutas em matrimônios felizes jamais terao pacientes com transferência erótica e isso garante segurança ao paciente.
  • Todo terapeuta tem um paciente especial e motivador para ele.
  • Supervisao e psicoterapia de terapeutas sao conduzidas pela mesma pessoa.
  • Se for supervisao o que Theo e Dora realizam, isso nao ajuda ninguém.
  • Ter um caso com outro paciente do próprio terapeuta é uma forma adequada de demonstrar amor e interesse pelo terapeuta.
  • Um terapeuta de 65 anos, casado e pai de três filhos, que trata de uma paciente trinta anos mais jovem, noiva, tem duas opçoes igualmente válidas: realizar a tarefa para a qual foi procurado, que é ajudá-la com seus conflitos, ou entao apaixonar-se e querer que seja sua.
  • Se a paciente abandonar a terapia, é normal que o terapeuta vá a casa dela e peça para que volte à terapia, mas dessa vez para resolver mesmo a situaçao.
  • E para nós, psicoterapeutas, quais as possíveis conclusoes?

    Antes de tudo, que é preciso ter a humildade de abandonar certa arrogância e presunçao ao nos compararmos a Theo ou Dora. É confortável e reassegurador depositar nos personagens tudo aquilo que acreditamos que jamais nos acontecerá. É fácil esquecer que guardado em segredo no inconsciente existe o desejo de ver-se livre das regras e imposiçoes de limites do cotidiano e também as do setting. Espiar, com certo prazer voyeurístico, o drama que se desenrola no consultório de Theo e fruir da excitaçao despertada por sua bela paciente é parte da história. Acompanhar, em segurança, o doloroso calvário de Theo, cujo ponto de partida é uma contratransferência erótica usual que descamba para contratransferência erotizada após a perda da noçao do "como se" e termina com um enactment da dupla, e pensar com alívio "nao é comigo", é a outra parte da mesma história. Portanto, primeiro espiamos no sentido de observar furtivamente, secretamente, o que se passa com Júlia e Theo. Segundo, expiamos (com xis - no sentido de purificaçao de pecado), uma vez que Theo é punido em nosso lugar. É a vida dele, a paciente dele, o arrependimento dele. De modos diferentes, gozamos duas vezes.

    É bom que seja assim. "Sessao de terapia" é apenas entretenimento e, como tal, é esperado que a plateia se identifique com os personagens, os inveje ou acuse à vontade, ao sabor de suas tendências inconscientes. Todas as formas de expressao artística permitem a mesma fruiçao, nao só o cinema. Entretanto, na nossa prática diária, devemos ter em mente que toda contratransferência tem início de forma inconsciente e só nos apercebemos dela depois de nos sentirmos coagidos a exercer um papel que nos foi atribuído. Temos como salvaguardas o tratamento pessoal e a busca de ajuda na supervisao quando a pressao para atuar um papel que nao nos compete for demasiada.


    REFERENCIAS

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    Médico psiquiatra pela UFRGS. Professor e supervisor convidado dos cursos de Especializaçao e Extensao em Psicoterapia de Orientaçao Analítica do Centro de Estudos Luís Guedes - CELG/Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - FAMED/UFRGS

    Correspondência:
    Antonio Marques da Rosa
    Alameda Major Francisco Barcelos, 88 - Bairro Boa Vista
    91340-390 Porto Alegre, RS, Brasil
    antoniocarlosmr@hotmail.com

    Submetido em: 23/04/2014
    Devolvido para correçoes em: 10/07/2014
    Retorno do autor em: 05/08/2014
    Aceito em: 07/08/2014

     

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