Rev. bras. psicoter. 2014; 16(2):1-3
Epifanio EB. Precisamos integrar nossos Kevins: discussao a partir do livro "Precisamos falar sobre Kevin" (Shriver) e do assassinato de Bernardo Boldrini. Rev. bras. psicoter. 2014;16(2):1-3
Carta ao Editor
Precisamos integrar nossos Kevins: discussao a partir do livro "Precisamos falar sobre Kevin" (Shriver) e do assassinato de Bernardo Boldrini
We need to integrate our Kevins: discussion based on the book "We need to talk about Kevin" (Shriver) and of the murder of Bernardo Boldrini
Ellen Bornholdt Epifanio
O best-seller "Precisamos falar sobre Kevin", de Lionel Shriver1, versa sobre um adolescente que, antes de completar 16 anos, dispara contra colegas da escola e os mata. No decorrer da narrativa fica implícito que há vários fatores contribuintes para o desfecho trágico. A grandeza da história consiste, a meu ver, justamente em fugir da posiçao maniqueísta do bem versus o mal.
É possível refletir sobre uma série de fatores convergentes na consumaçao do crime: a mae, desde a gravidez, apresenta certa indisposiçao para a maternidade e uma clara falta de intimidade/empatia com o filho após seu nascimento; Kevin revela-se um bebê extremamente demandante, pois chora até a exaustao e apresenta, desde muito cedo, características opositoras que dificultam as malsucedidas tentativas de conexao da mae com ele; o pai parece permissivo e alimenta um conluio perverso com o filho; e ainda, no contexto social norte-americano, esse tipo de crime tem extensa repercussao.
O próprio título convida a que se pense no que ocorre para a eclosao desse tipo de carnificina. "Precisamos falar sobre Kevin" sugere que precisamos mesmo falar sobre os "nossos Kevins", incômodos habitantes de nosso mundo interno. E aqui espero nao confundir o leitor com a psicopatia assumida, com o aspecto destrutivo que habita em todo ser humano e que Winnicott2 esclarece, ao postular que a tendência antissocial pode existir em um indivíduo normal, neurótico ou psicótico. Para o autor2, diferentes formas de destruiçao podem ser encaradas como procura de algo, como se a criança buscasse a estabilidade ambiental capaz de suportar a tensao resultante de seu comportamento impulsivo. Quando nao há essa estabilidade do meio, esse continente, o resultado arrisca-se a ser trágico.
Crimes explícitos como os que aqui mencionados confrontam com nossas tendências violentas. Na saúde, a integraçao as mantém sob controle e reprimidas. Também sao objeto de nosso estudo na psicanálise e podemos denominá-las de pulsao de morte predominante, segundo Freud3, de inveja e voracidade inata intensa, segundo Melanie Klein4, de parte psicótica da personalidade sem integraçao, segundo Bion5.
Um caso real e perto de nós é o do menino Bernardo Boldrini, de 11 anos, encontrado morto no interior do RS após ter sido dado como desaparecido em abril de 2014. Conforme as investigaçoes da Polícia - continuam as investigaçoes a respeito da participaçao do pai -, Bernardo foi sedado e depois enterrado por sua madrasta. Seriam, esse pai e essa madrasta, os responsáveis por sua morte, os "nossos Kevins"?
Esse crime chocou o Brasil, talvez por ter a ver com uma situaçao de desamparo extremo e desfecho violento. A repercussao midiática tao extensa possivelmente se deu também pelos requintes de crueldade; por acontecer perto de nós; por se tratar de uma família com nível terciário de educaçao e pertencente à classe média/alta; pelo absurdo do assassinato planejado de um menino por adultos responsáveis por ele; e porque o próprio menino já havia procurado o Ministério Público denunciando falta de cuidado.
Infelizmente, Bernardo foi uma vítima a mais. Nós nos revoltamos e sentimos dor pelo ocorrido também como fruto do próprio controle sobre nossas tendências violentas. Como sociedade e como cidadaos somos corresponsáveis de alguma forma por "Bernardos" que nao sao ouvidos. Precisamos mesmo falar sobre os Kevins, Bernardos, Joaos e Marias que se manifestam sob as mais diversas formas, bem aqui, ao nosso lado.
REFERENCIAS
1. Shriver L. Precisamos falar sobre Kevin. Rio de Janeiro: Intrínseca; 2012.
2. Winnicott DW. La tendencia antisocial (1956). In: Escritos de pediatría y psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós; 1999.
3. Freud S. As duas classes de instintos (1923-1925). In: Ediçao standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago; 1996. v. 19.
4. Klein M. Observando la conducta de bebes (1952). In: Envidia y gratitud y otros trabajos. Buenos Aires: Paidós; 2004.
5. Bion W. Diferenciaçao entre a personalidade psicótica e a personalidade nao psicótica (1957). In: Estudos psicanalíticos revisados. Rio de Janeiro: Imago; 1988.
Psicóloga (PUCRS). Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS). Doutora em Psicologia Geral (Universidad Del Salvador - Buenos Aires/UFRGS). Especialista em Psicoterapia de Orientaçao Psicanalítica (IEPP). Docente do IEPP. Membro Aspirante da SPPA
Correspondência
Ellen Bornholdt Epifanio
Av. Carlos Gomes, 1550/503
90480-002 Porto Alegre-RS
ellenb@terra.com.br
Submetido em: 11/06/2014
Devolvido para correçoes em: 25/07/2014
Retorno do autor em: 04/08/2014
Aceito em: 13/08/2014
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